O destino do governo afegão foi apenas o mais recente da longa lista de casos de colapso de entidades fantoche criadas pelo ocupante estrangeiro quando a ocupação chega ao fim.
Gilbert Achcar, Esquerda.net, 24 de agosto de 2021
O Presidente dos EUA Joe Biden invocou a alcunha histórica do Afeganistão como "cemitério de impérios" para justificar a sua decisão de acelerar a retirada das tropas americanas deste pobre país. Afirmava assim que as tentativas de assegurar o controlo sobre o Afeganistão estão condenadas ao fracasso, ao mesmo tempo que atribuiu a culpa ao governo afegão que tinha sido estabelecido pela própria ocupação norte-americana. As trágicas imagens do colapso do governo afegão juntamente com o seu estado e o pânico que se instalou numa grande franja da sociedade, especialmente nas áreas urbanas e sobretudo na capital Cabul, levaram a reações divididas entre dois pólos opostos: enquanto um pólo culpou Biden por ter avaliado mal a situação e por não ter feito o que deveria ter sido feito para garantir que o governo pró-ocidental afegão prosseguisse, o outro pólo regozijou-se e celebrou a dimensão da derrota sofrida pelos planos dos EUA, comparando o que se passou em Cabul nestes últimos dias com o que aconteceu em Saigão, capital do Vietname do Sul, quando foi tomada pelas forças comunistas em 1975, dois anos após a retirada das tropas americanas. É difícil decidir qual destas duas reações é mais míope; ambas ignoram factos básicos.
Consideremos primeiro as censuras feitas a Biden pelo seu juízo errado (por outras palavras, o juízo errado dos seus serviços de inteligência) sobre a capacidade do governo afegão para resistir à ofensiva dos talibãs. É verdadeiramente extraordinário que alguém pudesse acreditar que o fracasso de vinte anos de ocupação na construção das fundações de um Estado com credibilidade e apoio popular suficientes para se erguer sem ser protegido por tropas estrangeiras, que esse fracasso poderia ter sido compensado prolongando a presença das tropas da NATO por alguns meses! A afirmação é tanto mais extraordinária quanto nenhum dos críticos é capaz de explicar o que a ocupação dos EUA poderia ter feito durante mais alguns meses do que não tinha feito durante duas décadas.
Na realidade, o destino do governo afegão é apenas o mais recente de uma longa lista de casos de entidades fantoche criadas por uma ocupação estrangeira que se desmoronam quando essa ocupação termina. Ashraf Ghani foi precedido neste mesmo caminho por Mohammad Najibullah, que tinha sido nomeado presidente do Afeganistão pelos governantes da URSS em substituição de Babrak Karmal, a quem tinham instalado no poder quando as suas tropas invadiram o país, da mesma forma que Ghani foi nomeado por Washington em substituição de Hamid Karzai, a quem as forças norte-americanas instalaram no poder quando invadiram o país. Isto remete-nos para o facto óbvio de que a ocupação norte-americana do Afeganistão, na sequência dos ataques de 11 de Setembro de 2001, não foi uma "libertação" daquele país, tal como não o foi a ocupação do Iraque menos de dois anos depois. Foi uma captura do país por razões relacionadas com a estratégia imperial americana na Ásia Central e em relação à Rússia e à China, revestida com o pretexto de libertar os afegãos, as mulheres em particular, do jugo obscurantista dos talibãs, aquele mesmo jugo que Washington e os seus aliados regionais tinham desempenhado um papel fundamental para ajudar a apoderar-se do país.
Aqueles que saúdam os talibãs a partir de um ponto de vista que se reclama de esquerda ou "anti-imperialista" devem ser lembrados de que apenas quatro governos reconheceram diplomaticamente o regime talibã depois de este ter assumido o controlo do Afeganistão em 1996, e esses não eram Cuba, Vietname, China ou mesmo Irão, mas sim o Paquistão, Turquemenistão, o reino Saudita e os Emirados Árabes Unidos! Acrescente-se a isto que é bem conhecido que por detrás dos talibãs estavam, e continuam a estar, os serviços secretos militares do Paquistão, o que aumenta a ansiedade dos países vizinhos, a começar pelo Irão.
A verdade é que Washington não teve muitas ilusões sobre o destino do Afeganistão, mas sabia pela derrota da URSS naquele país e pela sua própria experiência vietnamita que controlar o Afeganistão é impossível por várias razões, incluindo a geografia do país e a força dos antigos laços tribais e étnicos que ainda ali prevalecem. É por isso que a estratégia de Washington no Afeganistão foi desde o início qualitativamente diferente da sua estratégia no Iraque: enquanto que o seu objetivo era exercer o controlo total sobre o Iraque e destacar para lá forças adequadas a esse fim (na opinião do Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, apesar das advertências das altas patentes que a sua estimativa do número adequado de tropas era altamente otimista), Washington apenas destacou um número limitado de tropas no Afeganistão, ao mesmo tempo que contava com a Aliança do Norte anti-talibã para assumir o controlo do país e exercer pressão sobre os seus aliados da NATO para que enviassem tropas, de modo a que os EUA não precisassem de destacar mais.
Os objetivos estratégicos da ocupação americana do Afeganistão, ou mais precisamente de partes do território afegão, consistiam antes de mais na construção de bases aéreas norte-americanas neste país de localização estratégica altamente privilegiada e na extensão da influência dos EUA às repúblicas da Ásia Central que anteriormente faziam parte da URSS. Com o tempo, Washington chegou à conclusão de que o custo da sua presença contínua no Afeganistão já não era proporcional a estes benefícios estratégicos que tinham entretanto diminuído, e sobretudo que a ofensiva dos talibãs e a sua capacidade de controlar áreas cada vez mais vastas do país indicavam que o Afeganistão estava a caminho de confrontar Washington com um dilema semelhante ao do Vietname, entre a escalada interminável e a retirada.
Dito isto, a situação mais próxima do que está a ocorrer no Afeganistão não é, de facto, o Vietname: as forças sul-vietnamitas eram muito mais fortes do que as forças do governo afegão, e conseguiram impor-se durante dois anos contra forças comunistas que os próprios EUA tinham sido incapazes de derrotar e que gozavam de um apoio internacional e regional muito maior do que os talibãs alguma vez tiveram. A situação mais próxima do que aconteceu no Afeganistão é a que aconteceu às tropas do exército iraquiano que Washington tinha construído e que desabou vergonhosamente face à ofensiva lançada pelo chamado Estado Islâmico no Verão de 2014, da mesma forma que as forças do governo de Cabul caíram em frente à ofensiva dos talibãs. Escusado será dizer que a semelhança entre o Estado Islâmico e os talibãs só é igualada pela enorme diferença entre os dois grupos jihadistas, por um lado, e as forças comunistas vietnamitas, por outro.
Artigo publicado a 18 de agosto no diário Al-Quds al-Arabi e republicado em inglês pelo Anticapitalist Resistance. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net. Gilbert Achcar cresceu no Líbano e ensinou em Paris, Berlim e Londres. É atualmente professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres. Entre os seus muitos livros incluem-se The Clash of Barbarisms (2002, 2006); Perilous Power: The Middle East and US Foreign Policy, em co-autoria com Noam Chomsky (2007); The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives (2010); Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism (2013); The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013); e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).