A última obra do pensador camaronês Achille Mbembe tem um título gráfico. Brutalisme (La Découverte, 2020) é a continuação de Crítica da razão negra e Políticas da inimizade. Em seu último trabalho, Mbembe amplia sua análise crítica da lógica mercantil capitalista que impregna nossas vidas, sempre com a visão de quem observa o mundo da África, através do prisma pós-colonial.
Olivia Muñoz-Rojas, El País [Espanha], 24 de julho de 2021. A tradução é do Cepat.
Se em Crítica da razão negra Mbembe traça uma genealogia da razão ilustrada e capitalista, que vai do escravo africano ao cidadão mercantilizado e hipervigiado atual, em Políticas da inimizade examina a figura da guerra, a guerra contra o outro, herança dos processos coloniais, como “novo sacramento” de nossas democracias. Em Brutalisme, Mbembe sustenta que a lógica extrativista capitalista deu um passo a mais: nosso impacto sobre o planeta é tal que a “humanidade se tornou uma força geológica, assim, não podemos mais falar da história como tal”.
Mais do que nunca, a função do poder, diz Mbembe, é tornar possível a extração. Isto exige intensificar a repressão utilizando “a lei para multiplicar os estados de exceção e desmantelar a resistência”. Continua Mbembe: “A perfuração de mentes e corpos faz parte” dessa repressão, pois “a fratura, o fissuramento e o esgotamento não concernem apenas aos recursos, mas também aos corpos vivos expostos ao esgotamento físico e a todos os tipos de riscos biológicos, às vezes invisíveis”.
Fraturar, fissurar, extrair, esvaziar são vocábulos que Mbembe toma da mineração, uma das principais atividades econômicas no continente africano da época colonial. Seu imaginário também se inspira na arquitetura brutalista dos anos 1950 e 1960, prolífica nos países em desenvolvimento, e seu uso generalizado do concreto.
O despejo deste material maleável, composto de óxido de minerais, em grandes formas e sua posterior solidificação seria a contrapartida da extração: encher, moldar, substituir, eventualmente, o ambiente orgânico com matéria inorgânica. Mas não se trata apenas da substituição de ambientes naturais por cidades sem fim, mas também da substituição da atividade humana pela inteligência artificial.
Não sem ironia, Mbembe utiliza o conceito de “grande substituição” – empregado por setores da extrema direita em referência à substituição supostamente organizada da população branca ocidental por migrantes não brancos – para descrever a progressiva desumanização dos seres humanos e a humanização paralela dos dispositivos de inteligência artificial.
O telúrico, o biológico e o neurotecnológico convergem nesta lógica extrativa-criativa que Mbembe descreve com crueza. Assim como a extração de minerais gera resíduos, a extração dos corpos vivos produz matéria humana excedente. São os “corpos-fronteira” que se amontoam nos campos de refugiados e nas fronteiras dos países mais prósperos, populações indesejáveis, descartáveis, que carecem de valor acrescido para a economia capitalista.
A cada novo estado de exceção – atualmente, a crise sanitária –, sua mobilidade se restringe mais e suas possibilidades de fazer parte do sistema minguam. Pois, sugere Mbembe, o desejo da maioria de nós, inclusive daqueles que se insubordinam contra o sistema, não é mudá-lo, mas ser aceitos nele com todos os privilégios.
A leitura do mundo, e especialmente do momento atual, oferecida por Mbembe, não abre espaço para o otimismo. No entanto, o pensamento crítico, e em particular o pós-colonial, convida frequentemente ao paradoxo e a vislumbrar resquícios naquilo que parece mais sólido.
Ao mesmo tempo em que o mundo se africaniza, no sentido conferido por Mbembe, ou seja, que o destino do negro – originalmente o escravo negro das plantações, despojado de qualquer direito e dignidade – é o destino aguardado para mais e mais indivíduos, em um mundo que se parece cada vez mais a uma plantação gigante; Mbembe vê na África, berço da humanidade, o potencial para reverter esse processo de desumanização e desvitalização do mundo.
Há nas cosmovisões daquele continente uma relação diferente com os objetos inertes, que permite uma crítica às novas tecnologias e ao materialismo dominante que relativiza a dicotomia sem saída entre natureza e artifício que sustenta o pensamento ocidental. Acostumados há séculos a “recriar a vida a partir do invivível”, na experiência africana há também elementos para uma práxis global de adaptação a um futuro de escassez e brutalidade climática.
Contudo, o fundamental para Mbembe é recuperar o sentido dessa humanidade original: a capacidade de preservar o que nos é comum, de restituir e reparar, uma e outra vez, as relações entre nós e entre nós e os outros seres vivos. “Penser et panser”, pensar e cuidar, dizia Mbembe em uma entrevista ao Le Monde, “são inseparáveis para redefinir uma política do bem do mundo, para além do humano”.