Bruno Lupion, Deutsche Welle, 1º de junho de 2020
Há alguns meses, um roteiro dominical vinha se repetindo no Brasil: pequenas manifestações de apoio a Jair Bolsonaro saíam às ruas, em meio à pandemia, vociferando contra o Supremo e o Congresso e pedindo intervenção militar, com a participação eventual do próprio presidente. No último fim de semana, algo diferente ocorreu: atos contra Bolsonaro eclodiram nas ruas de algumas cidades, e manifestos reunindo sob o mesmo objetivo pessoas de linhas políticas variadas ganharam milhares de assinaturas.
Em São Paulo, torcidas organizadas de clubes rivais, entre eles Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, foram à Avenida Paulista defender a democracia e se opor à escalada autoritária do governo federal e de seus apoiadores. O ato se encontrou com um pequeno grupo de defensores de intervenção militar e acabou reprimido pela Polícia Militar com o uso de bombas de gás lacrimogêneo. O presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil, Alex Sandro Gomes, declarou ao portal UOL que há movimentos semelhantes sendo organizados em 14 unidades da Federação. No Rio e em Belo Horizonte, grupos antifascistas organizaram atos contra o governo.
Também foi lançado no sábado (30/05) o manifesto "Estamos #Juntos", que propõe a união de pessoas de esquerda, centro e direita para defender fundamentos da democracia. Até esta segunda-feira (1º/06), o texto tinha cerca de 200 mil assinaturas, incluindo as do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), do apresentador Luciano Huck, do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), dos deputados federais José Guimarães (PT-CE) e Luiza Erundina (PSOL-SP), de João Paulo Capobianco, da ONG SOS Mata Atlântica e próximo a Marina Silva, e do cantor Lobão, que fez campanha para Bolsonaro em 2017 e depois rompeu com o presidente.
Nas redes sociais, uma campanha intitulada “Somos 70 por cento", em referência à parcela aproximada da população que considera o governo Bolsonaro péssimo, ruim ou regular, segundo a última pesquisa Datafolha (o número exato é 65%), mobilizou apoiadores de diversas tendências políticas e algumas celebridades, como a apresentadora Xuxa.
Ainda no sábado (30/05), um grupo de cerca de 700 juristas e advogados lançou o manifesto "Basta", contra agressões de Bolsonaro aos poderes Legislativo e Judiciário, e o Colegiado de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, que reúne os presidentes das 27 Cortes estaduais, enviou um ofício ao Supremo Tribunal Federal manifestando “integral apoio” ao tribunal e afirmando não haver “espaço para retrocessos”.
Do lado de Bolsonaro, um grupo de cerca de 30 bolsonaristas com tochas e máscaras fez no sábado um protesto em frente ao Supremo, usando estética similar à do movimento americano Ku Klux Klan, que prega a supremacia branca. No domingo, apoiadores do presidente voltaram a se reunir na Praça dos Três Poderes, com faixas pedindo intervenção militar e contra o Supremo, e foram saudados pelo presidente, que sobrevoou o ato de helicóptero e depois cavalgou em meio aos manifestantes.
As ruas e a elite intelectual
Os atos do último fim de semana sugerem uma incipiente sintonia entre atos de rua com pessoas das periferias, a elite intelectual e as instituições públicas, que se mostram "saturadas" da dinâmica bolsonarista que busca o conflito permanente e o desgaste da democracia, avalia à DW Brasil o cientista político Milton Lahuerta, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Ele lembra que movimentos de periferia e de jovens, além de torcidas organizadas como a Gaviões da Fiel, do Corinthians, já vinham fazendo oposição ao governo Bolsonaro, mas o ato do último domingo trouxe algo "simbolicamente novo" ao unir torcidas adversárias em torno de uma mesma bandeira.
Esse mesmo movimento de junção, afirma, começa a se manifestar na "opinião pública ilustrada", que percebeu que a lógica de Bolsonaro é "esticar a corda e, se possível rompê-la". Para Lahuerta, isso coloca no horizonte a possibilidade de articular setores adversários, como integrantes do PT e liberais democráticos que apoiaram o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
"Até bem pouco tempo atrás, isso era impensável, mas agora temos uma perspectiva que remonta a formas históricas de luta pela democracia que foram bem sucedidas", diz, em referência ao movimento pelas Diretas Já.
Diante de um presidente e seu entorno que usam o caos como método para manter mobilizados seu eleitorado e sua base armada, "que está na Polícia Militar, nas milícias e nessa classe média sórdida que se move pela violência", ele afirma ser fundamental a aproximação dos movimentos de rua, da elite intelectual e da institucionalidade, que ainda estão "desarticulados".
Se não houver essa articulação, ele avalia haver risco de um enfrentamento sem controle nas ruas, o que poderia levar ao aumento da repressão e fortalecer a lógica na qual Bolsonaro investe. “É um cenário delicado, mas alvissareiro. Foi dado o sinal para que se levantem as vozes. Agora é necessário juntar forças, articular isso em torno de uma coalizão mais forte", diz.
Alerta para o governo
O engajamento das torcidas organizadas, que reúnem muitos moradores das periferias, também chamou a atenção de Emerson Cervi, professor de ciência política da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele afirma que as manifestações "sempre começam com as periferias" e que, em algumas situações, atraem em seguida as classes médias.
"Estamos passando por essa primeira etapa. A questão é se os atos [contra o governo] vão progredir ou se vão apenas estimular o renascimento do apoio a Bolsonaro", afirma. Diante da crise econômica batendo à porta das pessoas e do efeito trágico da crise sanitária, ele diz ser mais provável haver um crescimento das manifestações contra o governo nas próximas semana.
A maior incógnita, para Cervi, é se os atos bolsonaristas, que têm atraído poucas pessoas, terão a capacidade de mobilizar mais seguidores. A estrutura desses protestos, diz, continua disponível, com financiamento para pagar por trio elétrico, faixas e bandeiras. "Precisamos separar as duas coisas. Uma é a estrutura [pró-Bolsonaro], a outra é a adesão popular a ela", afirma.
Ao interpretar a última pesquisa Datafolha, o cientista político da UFPR identifica dois movimentos relevantes. Os que avaliavam o governo como regular estão migrando para avaliá-lo como ruim e péssimo, levando a uma polarização cada vez maior na sociedade entre os que apoiam o presidente e os que o desaprovam. E entre os que migraram do regular para o ruim ou péssimo, estão muitos homens de idade média, escolaridade alta e renda média e alta, um perfil identificado com a base do bolsonarismo. "Isso deve estar preocupando bastante o governo", diz Cervi.