Vanessa Koetz, Juliana Mastrascusa, Jordana Almeida, Helena Martins e Felipe Moda
“As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande”
Audre Lorde
Se você, como boa parte da população brasileira, começou a usar muito mais apps e redes sociais durante a pandemia, provavelmente deve concordar que precisamos refletir no que isso representa para nós como partido. As tecnologias nos ajudam a manter reuniões online, campanhas eleitorais e quase todas as dinâmicas cotidianas, mas não podemos esquecer que são ferramentas pensadas pelos de cima.
Nenhuma tecnologia é neutra. Todo sistema é pensado para resolver um problema de seu desenvolvedor. O Facebook - que também detém Instagram e WhatsApp - se vende como um site para criar conexões e construir comunidades, mas nasceu de um jogo sexista que Mark Zuckerberg e seus amigos criaram para dar notas às garotas da universidade. Essa “motivação inicial” para pensar tecnologias é chamada por pesquisadores de “Bias”, que pode ser traduzido como viés. E se o viés depende de quem desenvolve, olhe rapidinho para os aplicativos e ferramentas que você mais usa no cotidiano: provavelmente a maioria vai pertencer ao chamado GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft). Já deu pra sacar que de salvadoras essas tecnologias não têm nada, né? E estão aí para perpetuar as opressões do capitalismo e dinâmicas sociais, que afetam sobretudo as pessoas mais pobres, assim como as negras, as mulheres, as LGBTQIA+ e as populações que sequer têm o direito de escolher acessar as tecnologias, como a maioria das comunidades tradicionais e povos indígenas.
Apesar do cenário caótico, a saída não é desligar tudo e simplesmente excluir as contas nas redes sociais. É urgente um debate crítico sobre o assunto, que aprofunde temas como reconhecimento facial e vigilância, proteção de dados e algoritmos do ódio, se quisermos mudar as tecnologias - e também o mundo.
Tecnologias da informação e da comunicação no centro do capitalismo
As tecnologias da informação e da comunicação são fundamentais para processos como a aceleração do tempo (que se revela, por exemplo, na correria do cotidiano e na exaustiva da jornada de trabalho); o espalhamento das corporações para diversas partes do mundo (com o controle no Norte e a exploração do trabalho precarizado no Sul global); a produção “just in time" (relacionada também à segmentação de públicos); a financeirização e a própria globalização.
Hoje, está ainda mais nítido que as plataformas impactam a geopolítica na contemporaneidade. A briga em torno do 5G, que viabilizará uma série de aplicações que serão comercializadas, está no centro das controvérsias entre EUA e China. A questão geopolítica é notável quando observamos que os cabos que conectam o mundo são de corporações norte-americanas essencialmente. Aliás, a origem da imensa parte dessas corporações é de apenas uma região dos EUA: o Vale do Silício. Tais corporações capturam e vendem dados sobretudo das populações do Sul global, onde o uso de aplicações como WhatsApp é maior e onde há menos mecanismos de proteção, como legislações sobre dados pessoais.
As transformações tecnológicas são muito profundas. Elas aceleraram mudanças no mundo do trabalho, viabilizando ampliação da incorporação de conhecimentos em códigos e softwares e o desenvolvimento de novas formas de exploração e precarização, como o chamado trabalho mediado por plataformas. Esse processo gera dificuldades de organização dos e das trabalhadoras, pois é aumentada a jornada de trabalho, diminuída a remuneração, impossibilitada a convivência no mesmo espaço de trabalho, além de mudanças culturais e subjetivas que impactam o processo de se ver como classe e de se auto-organizar para transformar as relações sociais.
Em 2019, o Governo Federal publicou Carta Brasileira para Cidades Inteligentes que seriam aquelas “comprometidas com o desenvolvimento urbano, com a sustentabilidade, a inovação, a inclusão social, a gestão colaborativa e a melhoria de serviços públicos''. Quem não queria uma cidade assim?
Sem refletir um milímetro sobre violência urbana decorrente da desigualdade social, ganha muito espaço o discurso das smart cities - repleta de câmeras, reconhecimento facial e de monitoramento/mineração de dados -, com modelos de cidades "seguras", limpas e racionais. A ideia aqui é a de uma inteligência preditiva onisciente e neutra que, a partir dos seus dados (inclusive os biométricos) e do fim da sua privacidade poderia prever possíveis crimes e sujeites suspeites.
A inserção dessas tecnologias é apresentada como algo inescapável e positivo, uma postura que expressa o pensamento positivista que associa modernidade e progresso e esconde que as tecnologias são produtos sociais e, portanto, carregadas de todos seus fundamentos econômico-sociais.
As cidades não podem ser espaços determinados a receber qualquer tecnologia , sob o determinismo de que toda solução tecnológica representa a saída ao "progresso". No terceiro país que mais encarcera a população negra no mundo, esse papo, de que qualquer tecnologia é inevitável para o "progresso", não cola. Precisamos disputar esse sentido de cidades inteligentes para cidades democráticas e de realização de direitos!
No Brasil, todas essas questões estão postas. O governo Bolsonaro aumenta a vigilância, com a implementação de sistemas como o Córtex e a criação do Cadastro Base do Cidadão, que reúne nossos dados e coloca à disposição de órgãos como a Abin. Além disso, há total negligência com a segurança das nossas informações. Só até março de 2021, pelo menos três megavazamentos de dados aconteceram, sem explicações, responsabilização ou reparação. Apesar de tudo isso, falta debate aprofundado na esquerda sobre o assunto. Acabamos sem dar muita importância a questões como privacidade e segurança de dados e bases de contato ou sem compreender o lugar das tecnologias na arquitetura e no programa de ruptura com a sociedade em que vivemos.
Aceleração das transformações tecnológicas na pandemia
Tudo isso tem sido acelerado e aprofundado no contexto da pandemia do coronavírus, que ampliou a mediação tecnológica das mais diversas atividades sociais e facilitou a justificação de mudanças como entrega de dados, educação à distância, plataformização do trabalho e práticas de vigilância.
Com o argumento de controlar a circulação de infectados, países como China e Rússia adotaram práticas de reconhecimento facial por câmeras. Drones passaram a ser utilizados para mapear a população e avisá-la sobre a necessidade de estar em casa na Espanha. No Brasil, há cooperação com empresas de telecomunicações para mapear o deslocamento da população.
Nada é feito com controle social ou comprovação de eficácia. O que é nítido é o argumento da pandemia ser usado sem discussão e contra direitos. Um exemplo: em Fortaleza, a prefeitura chegou a iniciar processo de licitação para instalação de reconhecimento facial em todas as escolas públicas, argumentando que isso ajudaria no combate ao coronavírus.
Essas políticas são implementadas sem debate público nem transparência e para reforço de opressões. Isso foi diagnosticado pela Rede de Observatórios da Segurança, que monitorou o uso de reconhecimento facial na segurança pública, entre janeiro e outubro de 2019. Nos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia imagens dos abordados – 42 ocasiões –, 90,5% das pessoas eram negras.
Há, obviamente, possibilidades de uso no sentido transformador das tecnologias. Existem debates em curso sobre socialismo digital, cooperativismo de plataformas, planejamento democrático com base em plataformas e algoritmos etc, bem como diversas lutas que, no Brasil e em diversos outros países, têm levado à afirmação de direitos no âmbito da rede e ao reconhecimento da necessidade de proteção de dados pessoais, além de denunciado as plataformas, os vieses algorítmicos e a instrumentalização de tecnologias para a destruição da democracia.
Não se trata, pois, de ser ludista ou tecnofóbica, mas refletir sobre a produção das tecnologias no capitalismo. Sem isso, podemos cair nas armadilhas do solucionismo tecnológico, que, na verdade, esconde os impactos das políticas de austeridade sobre os direitos sociais sob o neoliberalismo, a transformação de direitos em serviços pelos quais temos que pagar, além da ampla captura de dados pessoais, base para novas formas de mercantilização de produtos e controle populacional.
É descolado da realidade, por tudo isso, debater democracias e o Bolsonarismo, entre outros governos, sem debater o peso das redes sociais e grupos de Whatsapp. Ora, as tecnologias não são neutras e têm sido usadas contra nós! Além da mercantilização, do impacto sobre nossos comportamentos e da vigilância, é importante destacar que esses espaços são, muitas vezes, violentos, como as ameaças contra nossas parlamentares por meio das redes, sobretudo mulheres e trans, evidenciam.
O espaço aqui é curto, mas para mudar o mundo neste século XXI, temos que politizar e transformar tecnologias. Esse desafio está posto para o PSOL e convidamos o partido a refletir sobre estes temas, sobre a sua própria organização interna e disputa externa.
Arte: Cesar Fernandes, Time de Comunicação da Insurgência