Alexander von Humboldt e o meio ambiente
José Eduardo Pereira Wilken Bicudo, A terra é redonda, 7 de fevereiro de 2021
Em Berlim, em janeiro de 2020, pouco antes de a Organização Mundial da Saúde anunciar que a propagação mundial do coronavírus de 2019 (COVID-19), causador da Síndrome Respiratória Aguda Severa, ou SARS-Cov-2, resultara em uma pandemia, a vida em geral parecia correr de maneira tranquila e normal. O Museu de História Natural de Berlim encerrava naquele mês de janeiro uma belíssima exposição comemorativa dos 250 anos do nascimento de Alexander von Humboldt (1769-1859), inaugurada em setembro de 2019.
A conexão entre esses dois acontecimentos parece não existir ou até mesmo ter qualquer significado de maior relevância. Entretanto, se nos aprofundarmos na obra de Humboldt poderemos inferir que a pandemia causada pela COVID-19 é uma das inúmeras consequências da degradação sistemática e continuada da natureza, como resultado das interferências provocadas pelas atividades humanas. E, sobretudo, que a maneira pela qual enxergamos a natureza nos dias de hoje foi inicialmente concebida por Humboldt no século XIX e detalhada na sua vasta obra científica.
É curioso notar que o nome de Humboldt, mais do que o de qualquer outra pessoa, foi dado a cidades, rios, cadeias de montanhas, um pinguim, uma lula gigante e até mesmo um “mar” na Lua, o Mare Humboldtianum.
Pouquíssimo lembrado nos dias de hoje, a escritora Andrea Wulf o considera como “o grande cientista perdido”, em sua magistral biografia da vida intelectual de Humboldt [1]. Suas ideias, no entanto, revolucionaram a ciência, influenciaram os movimentos de proteção da natureza, a política, a arte e não menos importante a concepção da teoria da evolução. Sua maneira de pensar estava muito à frente do seu próprio tempo e os seus pensamentos e toda sua obra permanecem relevantes até hoje. Ele foi inclusive capaz de prever, já no século XIX, mudanças climáticas induzidas por atividades e intervenções humanas. E, para infortúnio da humanidade e dos ambientes naturais, demasiadamente aceleradas nas últimas três décadas, causando, por exemplo, o aquecimento global, fenômenos meteorológicos extremos, migrações humanas em massa e zoonoses resultantes da destruição de florestas, entre as quais o vírus Ebola, a MERS-CoV (Síndrome Respiratória do Oriente Médio provocada por um tipo de coronavírus) e a Covid-19, entre outros, segundo relatos científicos recentes.
A sua obra mais conhecida e também sua favorita é Ausichten der Natur [2], ou Visões da Natureza, publicada em 1808 na Alemanha, na qual Humboldt expõe seus pensamentos inovadores sobre a estrutura das coberturas vegetais e suas origens a partir de padrões climáticos. Visões da Natureza, uma combinação de informações científicas detalhadas com descrições poéticas das paisagens naturais observadas por Humboldt, influenciou sobremaneira vários reconhecidos grandes escritores e naturalistas, entre os quais Goethe, Darwin, Emerson e Thoreau.
Muito embora Kosmos seja a sua obra mais extensa, compreendendo ao todo cinco volumes, publicada na Alemanha entre 1845 e 1862, e considerada como o “Livro da Natureza” de Humboldt, Visões da Natureza continua sendo a sua obra mais importante e de maior impacto até hoje.
Visões da Natureza possui um apelo adicional porque a obra foi praticamente toda baseada em observações e medições pormenorizadas feitas por Humboldt e seu amigo francês, Aimé Bonpland, sobretudo na América do Sul (1799-1804), no início do século XIX.
A viagem ao continente sul-americano teve como um dos objetivos confirmar a existência do misterioso Rio Cassiquiare, reportado 50 anos antes por um padre jesuíta como sendo o elo de ligação entre as duas maiores bacias hidrográficas do continente, a do Rio Orinoco e a do Rio Amazonas. Humboldt provou que, na realidade, o Rio Cassiquiare constituí uma ligação entre os rios Orinoco e Negro. Mas, como o Rio Negro é um tributário do Rio Amazonas, consequentemente, as duas bacias encontram-se de fato conectadas, concluiu Humboldt.
O restante da viagem foi ocupado com observações e medições realizadas em determinados pontos da cordilheira dos Andes, principalmente no Equador e no Peru. O grande mérito do trabalho de Humboldt a partir de sua expedição à América do Sul foi juntar informações sobre geografia, geologia, meteorologia, fauna e flora de uma maneira completamente inovadora. Humboldt mostrou pela primeira vez a íntima inter-relação e interdependência entre os seres vivos e seus respectivos entornos.
Durante a viagem, Humboldt foi também à Cuba, onde teve oportunidade de constatar as atrocidades cometidas pelo sistema escravocrata reinante nas plantações de cana de açúcar ali existentes, deixando-o extremamente estarrecido. Constatou também os problemas decorrentes do esgotamento do solo, além de encontrar vários ambientes naturais completamente devastados em decorrência do uso indiscrimado da terra para dar lugar às plantações de cana de açúcar. O agravamento desse tipo de cenário ambiental, do qual hoje somos testemunhas, é ainda mais evidente no modus operandi do agronegócio do século XXI.
Após retornar à Europa, em 1804, Humboldt conheceu Simon Bolívar, em Paris, e também deu início a novos preparativos para realizar uma segunda expedição à América do Sul a fim de dar continuidade às suas medições e observações. Porém, essa nova expedição acabou nunca ocorrendo. Quem retornou ao continente foi Bolívar, em 1807, com o intuito de liberar o seu país do colonialismo espanhol. Levou junto consigo os ideais de liberdade do Iluminismo, da separação dos poderes e do conceito de um contrato social entre a população e seus governantes. A remoção dos espanhóis acabou demorando quase duas décadas e as lutas travadas durante esse período tiveram como uma de suas fontes de inspiração os escritos de Humboldt, divulgados por Bolívar junto aos povos colonizados. Estes, por sua vez, puderam, a partir das descrições feitas por Humboldt acerca da natureza e da gente que conheceu na América do Sul, apreciar o quão especial e magnífico era o continente em que viviam. “Apenas com sua pena Humboldt despertou toda a América do Sul”, Bolívar veio a afirmar mais tarde. Este fato reforça ainda mais a importância e o alcance da obra monumental de Humboldt, que resultou, inclusive, em profundas mudanças políticas.
Humboldt nunca chegou a visitar o Brasil e o impacto da sua obra no país não foi tão grande como aquele que ocorreu junto aos povos da América do Sul, subjugados pela colonização espanhola. O impacto se deu quase que exclusivamente nos meios acadêmicos brasileiros [3]. Humboldt, no entanto, influenciou vários naturalistas europeus, seus contemporâneos, que vieram ao Brasil em expedições científicas no decorrer do século XIX.
Lembrado em 2019, no aniversário dos seus 250 anos de nascimento, Humboldt, “o cientista esquecido”, cujas ideias e pensamentos inovadores continuam sendo avançados até para os dias de hoje, poderá, quem sabe, inspirar uma profunda revolução do pensamento e das ideias, e em última análise levar à devida proteção dos ambientes naturais que ainda restam no país que Humboldt acabou não visitando na sua única viagem à América do Sul.
José Eduardo Pereira Wilken Bicudo é professor titular aposentado do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Notas
[1] Andrea Wulf. The Invention of Nature. The Adventures of Alexander von Humboldt. The Lost Hero of Science. John Murray (Publishers), Great Britain, 2015.
[2] Alexander von Humboldt. Views of Nature. Eds. Stephen T. Jackson & Laura Dassow Walls. Tradução de Mark W. Pearson. The University of Chicago Press. Chicago & London, 2014.
[3] Helmut Andrä. Alexander von Humboldt e as suas relações com o Brasil. Revista de História, vol. 25, no. 52: 387-403, 1962.