O socialismo burocrático do partido único escapa ao império da lei. Até agora todos os modelos com estas características dissimularam um capitalismo de Estado com rasgos de corrupção e elitismo. É hora de debater sobre isto e de nos organizarmos para mudar.
Alina López Hernández, Esquerda.net, 22 de agosto de 2021
Um partido político que governe solitariamente, não compita com outra organização, nem deva apresentar-se a um processo eleitoral para ser ratificado, pareceria ter uma grande vantagem. Paradoxalmente, essa prerrogativa é, ao mesmo tempo, a sua maior debilidade.
Não ter que negociar o poder, dar por adquirido que não lhe será disputado, desencadeia ao nível político uma atitude perniciosa que julga inaceitável qualquer indício de pressão social e, quando esta ocorre, a reação consequente mostra uma incapacidade absoluta sob um disfarce de temeridade.
Esta perspetiva autoritária fortalece-se com a abordagem teleológica, mecanicista e anti-marxista da história que assume que a revolução socialista, uma vez vitoriosa, não pode retroceder. Este otimismo extremo acaba com a possibilidade de êxito de qualquer processo de aperfeiçoamento ou de reformas.
A queda do campo socialista desfez aos pedaços muitas constituições que o declaravam irreversível. Não é a letra num tratado legal, mas o envolvimento das pessoas que encontrem nesse sistema a encarnação das suas aspirações e que possam modificá-lo nesse sentido, o que permitirá o seu êxito.
A pressão das maiorias a partir de baixo foi o que fez evoluir os sistemas políticos da antiguidade até hoje. No modelo do socialismo burocrático de partido único não se admite a participação real e espontânea da cidadania na atividade política. Esta condição discriminatória é o que explica que, face à convulsão social de 11 de julho, o partido tivesse reagido com brutalidade, de maneira policial e não política.
Em Cuba não se aprendeu a lição de há trinta anos. Em 2002, mais de dez anos depois da desintegração da URSS, um artigo constitucional declarou irreversível o socialismo, enquanto a Constituição de 2019 estabeleceu que o partido é “a força dirigente superior da sociedade e do Estado”. Do alto dessa espécie de atalaia, o partido devia estar em melhores condições para perceber que em Cuba existiam as condições sociais para uma convulsão social. Mas não apenas não esteve como demonstrou também incapacidade para interpretar as verdadeiras causas do conflito e para atuar de forma consequente sobre elas.
As verdadeira causas do 11 de julho
As contradições internas dos processos sociais são fundamentais e determinantes. Esse princípio da dialética materialista não é aplicado pelo partido apesar da sua enunciada filiação marxista. Por isso, face à convulsão social preferiu cingir-se a uma narrativa que explica os factos com base unicamente em fatores externos, reais mas não determinantes: as pressões do bloqueio norte-americano sobre Cuba, um golpe suave, uma guerra de quarta geração.
Não existiu até agora uma análise profunda e auto-crítica do partido sobre si mesmo e a sua responsabilidade face à crise. A existir deveria admitir-se que nenhum dos marcos que nos últimos tempos criou esperanças de mudança para transformar o socialismo a partir de cima se materializou. Estes foram:
1. Um processo de reformas anunciado em 2007, há 14 anos, que prometeu – clarificando que o faria “sem pressas” – “mudanças estruturais de conceito” que ainda se esperam na economia cubana. E digo na economia porque o processo de reformas nunca incluiu uma dimensão política.
2. Uma Constituição aprovada em 2019 que, apesar do debate que suscitou e do nível de expectativas criado pelo conceito Estado Socialista de Direito, não aceitou fórmula nenhuma que apontasse para a transformação do sistema político.
3. Três congressos do partido: o sexto, o sétimo e o oitavo, que foram, durante três décadas, do mais ou menos na ideia de reformar o modelo. No último deles, há pouco mais de três meses, praticamente se lançou um balde de água gelada sobre a cidadania ao perpetuar a tese do imobilismo e não atender aos graves problemas sociais e políticos que estavam a gerar inquietude, não apenas nos jovens mas em toda a sociedade.
Um sistema socialista que não possa ser influenciado a partir de baixo é uma enteléquia e o nosso está preso numa contradição flagrante: aprovámos uma Constituição que não é viável porque uma parte dela tende a sustentar uma situação de violação de liberdades – concretizada sobretudo no seu artigo cinco que declara a superioridade do partido único – enquanto que outra reconhece tais direitos e liberdades num Estado Socialista de Direito.
Nenhum processo reformista exclusivamente económico é realizável, uma vez que quando não se envolve ativamente a cidadania como capaz de controlar a direção, os resultados e a velocidade das transformações, estas correm o risco de ser desmanteladas ou travadas. Cuba não foi exceção. A burocracia converteu-se entre nós numa “classe em si” e dificulta mudanças e reformas que, ainda que aceite no discurso, travou na prática.
Um grande conflito por resolver onde quer que se entronize o socialismo burocrático é a conversão da propriedade estatal em verdadeira propriedade social. Esta aspiração tem sido utópica devido à falta de democratização, às falhas de participação cidadã nas decisões económicas e ao facto de que os sindicatos deixam de ser organizações que defendam os interesses dos trabalhadores.
A atitude arrogante do partido é própria de um modelo político que fracassou. Em fevereiro de 1989, a revista soviética Sputnik dedicou um número ao imobilismo que caracterizara o período de Leonid Brezhnev, faziam-se ali estas perguntas:
“Deve a direção do partido converter-se num órgão especial de poder que estará acima dos restantes órgãos? Se o Comité Central é um órgão especial de poder, como controlá-lo? Pode-se protestar uma resolução sua como inconstitucional? Quem responde no caso de fracassar uma medida decretada? Se este órgão superior de direito dirige o país, não deve então todo o povo elegê-lo?”
Neste modelo político o partido é seletivo, “de vanguarda”, já não um partido popular aberto a todos, de modo que ao declarar-se como força Superior à sociedade e também se erige acima do povo. Para que assim não seja, o povo deveria começar por eleger quem encabeça o partido e ele não o permite. Se está acima de todos, e não é um “partido eleitoral”, fica fora do controlo popular. Esse modelo político é o que há que mudar.
Os setores mais jovens não têm memória das etapas iniciais e de mais êxito da política social do processo. A eles, a épica revolucionaria, as transformações evidentes e os benefícios das primeiras décadas não lhes dizem nada. Conheceram os últimos trinta anos, com as sequelas da pobreza, o aumento sustentado da desigualdade, projetos de vida falhados e expectativa de êxodo em idades cada vez mais precoces. A chegada da Internet coordenou-os como geração, permite-lhes contrastar opiniões, construir espaços virtuais de participação, que o modelo político lhes nega, e gerar ações. Então há que reconhecer que as contradições principais que levaram à convulsão do 11-J são eminentemente políticas. As exigências não foram unicamente por alimentos e medicamentos ou contra os cortes de eletricidade. Estes podem ter sido o catalisador mas as palavras de ordem de “liberdade” que correram a ilha indicam a exigência da cidadania de ser reconhecida num processo político que se ignorou até hoje.
Pão, circo e... Senado
As cenas brutais de repressão contra os manifestantes, as declarações apelando à violência do recém-nomeado primeiro secretário do partido – depois matizadas – uma reunião urgente do Secretariado Político no dia seguinte aos factos – do qual nada saiu – e os atos de reafirmação revolucionária com abordagens tradicionais quase uma semana depois, indicam que o partido ficou totalmente fora de jogo face ao 11-J. Não obstante, ainda que nunca reconheça nem peça desculpas, sabe que cometeu um erro dispendioso. Setores da esquerda, várias figuras e organizações de prestígio levantaram vozes que exigem respeito pelos direitos políticos de manifestação pacífica e liberdade de expressão em Cuba. Diversos governos, e a União Europeia como bloco, criticaram a violenta repressão, certamente anticonstitucional.
Já começam a notar-se medidas paliativas para aliviar a situação dramática de carestia: aumento, desde este mês e até dezembro, do arroz, um alimento básico na cesta padrão; distribuição gratuita de produtos doados a Cuba (grãos, pastas, açúcar e em certos casos azeite e carne); baixa de preços de alguns serviços da Etecsa, o monopólio das comunicações.
A elas se soma a aprovação de solicitações de velha data que teriam funcionado para mitigar a crise muito antes: importações sem restrições e com isenção de direitos alfandegários de alimentos e medicamentos e vendas em prestações nas lojas. Outras poderão ser anunciadas nos próximos dias.
Não há lugar a dúvidas de que se irá aliviar alguma coisa a situação mas o partido deve ter consciência de que nenhuma destas determinações resolverá o dilema cubano que é, como já afirmei, de natureza política.
Talvez pensem que ao aplicar estes paliativos estão a descobrir novos caminhos na política. Enganam-se. O poeta latino Juvenal, há milhares de anos, eternizou na sua Sátira X, uma frase que designava a prática dos governantes da sua época: “pão e circo”. Era o plano dos políticos romanos para ganhar a plebe urbana a troco de trigo e entretenimento, com a finalidade de despojá-la do seu espírito crítico ao sentir-se satisfeita com a falsa generosidade dos governantes.
Em Cuba precisamos de pão e circo, somos um povo sofrido, mas – sobretudo –, necessitamos governar a partir de baixo. Precisamos ser o Senado, já que o nosso desapareceu da cena política. Não há sequer uma declaração de qualquer deputada ou deputado da Assembleia Nacional do Poder Popular, enquanto tal, apesar da gravidade dos atos violentos contra uma parte do povo que eram supostos representar.
Violaram o cronograma legislativo justificando com a impossibilidade de se reunir em plena pandemia. Contudo, nestas mesmas condições o partido celebrou o seu oitavo congresso e depois do 11 de julho foram convocadas atividades massivas de apoio ao governo em todas as províncias. Ainda não houve um pronunciamento oficial da direção do partido no qual se analisem os factos, se ofereçam números exatos de cidades e localidades implicados, participantes nos protestos, pessoas detidas ou acusadas. Não serviu de nada ao partido único ter analisado no Secretariado Político, poucos dias antes do oitavo congresso, um relatório intitulado, “Estudo do clima socio-político da sociedade cubana”. Não entenderam nada desse clima ou quem o escreveu não refletiu nele a realidade.
O socialismo burocrático do partido único cria uma espécie de demiurgo político que escapa ao império da lei, já que se situa acima dela, acentua o extremismo político e separa-se da cidadania. Até agora todos os modelos com estas características, longe de conduzir a uma sociedade socialista, dissimularam um capitalismo de Estado com rasgos de corrupção e elitismo.
É hora de debater sobre isto e de nos organizarmos para mudá-lo. Agora podemos fazê-lo. Como muito bem declarou à imprensa internacional o presidente do Tribunal Supremo Popular, em Cuba a Constituição garante o direito à manifestação pacífica.
Alina Bárbara López Hernández é doutora em Ciências Filosóficas, professora, ensaísta e historiadora. Texto publicado no La Joven Cuba. Traduzido para o Esquerda.net por Carlos Carujo.