Silvio Luiz de Almeida, Blog da Boitempo, 23 de junho de 2020
Há dois fatores sistematicamente negligenciados pelas analistas da atual crise econômica. O primeiro é o caráter estrutural e sistêmico da crise. Em geral, são destacados como motivos determinantes da crise os erros e ou excessos cometidos pelos agentes de mercado ou pelos governantes da vez. O caminho intelectual dessa explicação é o individualismo, o que reduz a crise a um problema moral e/ou jurídico. Desse modo, a avaliação da crise e suas graves conseqüências sociais – fome, desemprego, violência, encarceramento, mortes – convertem-se em libelos pela reforma dos sistemas jurídicos, pela imposição de mecanismos contra a corrupção ou ainda, por campanhas pela conscientização acerca dos males provocados pela “ganância” ou pela sede de lucro. Enfim, tanto causas como efeitos recaem apenas sobre os sujeitos e nunca são questionadas as estruturas sociais que permitem a repetição dos comportamentos e das relações que desencadeiam as crises.
O segundo fator esquecido pelos estudiosos da crise – intimamente ligado ao primeiro – é a especificidade que a crise assume no tocante aos grupos sociais que a sociologia denomina de minorias. Minorias caracterizam-se pelos processos de discriminação direta ou indireta a que são submetidas pessoas socialmente identificadas como pertencentes a determinados grupos sociais (negros, judeus, mulheres, pessoas LGBT etc.). A discriminação sistemática, processual e histórica cria uma estratificação social que se reverte em inúmeras desvantagens políticas e econômicas aos grupos minoritários, vivenciadas na forma de pobreza, salários mais baixos, menor acesso aos sistemas de saúde e educação, maiores chances de encarceramento e morte.
São duas as conclusões até este momento: 1) a identificação de um grupo social minoritário deve levar em conta as peculiaridades de cada formação social, vez que a dinâmica do processo discriminatório vincula-se à lógica da econômica e da política; 2) a discriminação só se torna sistêmica se forem reproduzidas as condições sócio-políticas que naturalizem a desigualdade de tratamento oferecido a indivíduos pertencentes a grupos minoritários. Por isso, em face da estrutura política e econômica da sociedade contemporânea, formas de discriminação como o racismo só se estabelecem se houver a participação do Estado, que pode atuar diretamente na classificação de pessoas e nos processos discriminatórios (escravidão, apartheid e nazismo) ou indiretamente, quando há omissão diante da discriminação, permitindo-se que preconceitos historicamente arraigados contra negros, mulheres e gays se transformem em critérios “ocultos” ou regras “não inscritas” que operam no funcionamento das instituições, na distribuição econômica (emprego e renda, por exemplo) e na ocupação de espaços de poder e decisão.
Crise como crise do capitalismo
Em primeiro lugar, o que chamamos de capitalismo é uma relação social, em que detentores de dinheiro e dos meios de produção (máquinas, terra, escritórios, ferramentas, computadores etc.) e trabalhadores assalariados relacionam-se com o fim de produzir mercadorias. O objetivo fundamental da produção de mercadorias é gerar mais dinheiro do que o investido na produção, e não satisfazer necessidades humanas. Portanto, além de cobrir os custos da produção, a venda de mercadorias deve gerar um excedente que será revertido para a aquisição de mais capital, ou seja, na ampliação dos fatores de produção. O capitalismo se define como um processo socialmente orientado para o acúmulo de capital. Mas ainda que a base da relação mantenha-se a mesma, a produção capitalista será organizada das mais diferentes maneiras, e isso irá variar de acordo com o local, com o desenvolvimento tecnológico, com as condições dos trabalhadores, com as condições políticas etc. Em suma: as formas de acumulação podem variar a fim de garantir a expansão do capital, o aumento da produtividade e a obtenção do lucro.
Uma sociedade de troca mercantil não é um dado natural, mas uma construção histórica. O mercado ou sociedade civil não seria possível sem instituições, direito e política. Como nos adverte Robert Boyer “as instituições básicas de uma economia mercantil pressupõem atores e estratégias para além dos atores e estratégias meramente econômicos”. Para demonstrar como o mercado é de fato uma construção social, Boyer conta-nos como a intervenção estatal direta ou indireta foi imprescindível para: 1) tornar possível a concorrência, estipulando regras e limites à atuação das empresas. A concorrência que muitos consideram como da “natureza” do capitalismo só é possível pela mediação entre as esferas pública e privada; 2) liberar as forças de concorrência do trabalho, o que historicamente implicou na regulação das relações salariais, ora pelo direito privado (privilegiando regras pactuadas pela negociação entre capital e trabalho), ora ao denominado direito social (com imposição de certos limites ao contrato). Nesse sentido, a intervenção estatal “é mais evidente ainda quando referente à cobertura social: as lutas dos assalariados pelo reconhecimento dos acidentes de trabalho, dos direitos à aposentadoria e à saúde resultaram em casos de avanço em matéria de direitos sociais – avanços que dizem respeito tanto à natureza da cidadania quanto ao modo de regulação”. A relação salarial, independentemente de quais mecanismos jurídico-políticos atuam na fixação de seus parâmetros, é decorrente de uma mediação estatal.
É nesse sentido que além das condições objetivas – e aqui referimo-nos às possibilidades materiais para o desenvolvimento das relações sociais capitalistas – o capitalismo necessita de condições subjetivas. Com efeito, os indivíduos precisam ser formados, subjetivamente constituídos, para reproduzir em seus atos concretos as relações sociais, cuja forma básica é a troca mercantil. Nisso, resulta o fato de que um indivíduo precisa tornar-se um trabalhador ou um capitalista, ou seja, precisa “naturalizar” a separação entre “Estado” e “sociedade civil”, sua condição social e seu pertencimento a determinada classe ou grupo. Esse processo, muitas vezes, passa pela incorporação de preconceitos e discriminação que serão “atualizadas” para funcionar como modos de subjetivação no interior do capitalismo. Este processo não é “espontâneo”; os sistemas de educação e meios de comunicação de massa são aparelhos funcionam justamente produzindo subjetividades culturalmente adaptadas em seu interior. Não é por outro motivo que parte da sociedade entende como um mero aspecto “cultural” o fato de negros e mulheres receberem os piores salários e trabalharem mais horas mesmo que isso contrarie disposições legais.
Estado e crise
Mas o que é o Estado? Como define Joachim Hirsch, o Estado é a “condensação material de uma relação social de força”. Está longe de ser, portanto, o resultado de um contrato social, a corporificação da vontade popular democrática, o ápice da racionalidade ou o instrumento de opressão da classe dominante. Essas definições que passeiam entre o idealismo e a simplificação abstrata, não revelam a materialidade do Estado, enquanto um complexo de relações sociais indissociável do movimento da economia.
“Ele é bem mais uma relação social entre indivíduos, grupos e classes, a ‘condensação material de uma relação social de força’. Material, porque essa relação assume uma forma marcada por mecanismos burocráticos e políticos próprios no sistema das instituições, organizações e aparelhos políticos. A aparelhagem do Estado tem uma consistência e uma estabilidade e por isso é mais do que a expressão direta de uma relação social de força. Mudanças nas relações de força sempre produzem efeitos no interior do Estado, mas ao mesmo tempo a estrutura existente do aparelho estatal reage sobre eles. O Estado expressa em sua concreta estrutura organizativa relações sociais de força, mas também simultaneamente as forma e as estabiliza”.
O Estado é a forma política do capitalismo, e não um mero instrumento dos capitalistas. Pode-se dizer que o Estado é de classe, mas não de uma classe, salvo em condições excepcionais e de profunda anormalidade. Em uma sociedade dividida em classes e grupos sociais, o Estado aparece como a unidade possível, em uma vinculação que se vale de mecanismos repressivos e material-ideológicos. A manutenção desse modo de vida conflituoso depende da internalização, pelos indivíduos, das condições de funcionamento da sociedade capitalista como parte da “cultura”.
A ideologia – e quando esta não for suficiente, a violência física – fornece o remendo para uma sociedade estruturalmente marcada por contradições, conflitos e antagonismos insuperáveis. Esses fatores explicam a importância da construção de um discurso ideológico calcado na meritocracia, no sucesso individual e no racismo a fim de “naturalizar” a desigualdade.
Ressalte-se que alterações das relações de força e dos conflitos sociais pressupõem a capacidade do Estado de manter “as estruturas socioeconômicas fundamentais” e a adaptação do Estado às transformações sociais sem comprometer sua unidade relativa e sua capacidade de garantir a estabilidade política e econômica.
O conflito social entre capital e trabalho assalariado não é único conflito existente na sociedade capitalista. Há outros conflitos que se articulam com as relações de dominação e exploração, que não se originam nas relações de classe e tampouco “desapareceriam com ela”: são conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que remontam a períodos anteriores ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual. A relação entre Estado e sociedade não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações de opressão e de exploração sexuais e raciais são importantes na definição do modo de intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade.
“O racismo, tal como a moderna construção das relações de gênero, é um meio da divisão social e da desorganização das classes dominadas, seja no interior como no exterior das fronteiras estatais. Através desses mecanismos de opressão e de dominação funda-se o povo enquanto nação. Como as fronteiras estatais são sempre permeáveis e a unidade ‘étnica’ deve permanecer basicamente indefinida e instável, o racismo adquire sua contínua eficácia e dinâmica”.
Há, portanto, um nexo estrutural entre as relações de classe e a constituição social de grupos raciais e sexuais que não pode ser ignorado. Como afirmei no artigo “Estado, direito e análise materialista do racismo”, “as classes quando materialmente consideradas também são compostas de mulheres, pessoas negras, indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência, que não podem ser definidas tão somente pelo fato de não serem proprietários dos meios de produção. “Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias”.
O que é a crise afinal?
A crise é um elemento estrutural, inscrito na lógica da sociabilidade capitalista. Deste modo, em sendo a crise parte do capitalismo, defini-la é, de certo modo, determinar o funcionamento não apenas da economia, mas das instituições políticas que devem manter a estabilidade. O processo de produção capitalista depende de uma expansão permanente da produção e de uma acumulação incessante de capital. Entretanto, a acumulação incessante de capital e a necessidade de aumento da produção encontram limites históricos que se chocam com as características conflituosas da sociedade. A crise se dá justamente quando o processo econômico capitalista não encontra compatibilidade com as instituições e as normas que deveriam manter a instabilidade. As crises revelam-se, portanto, como a incapacidade do sistema capitalista em determinados momentos da história de promover a integração social por meio das regras sociais vigentes. Em outras palavras, o modo de regulação, constituído por normas jurídicas, valores, mecanismos de conciliação e integração institucionais entra em conflito com o regime de acumulação. A consequência disso é que a ligação entre Estado e sociedade civil, mantida, como foi visto, mediante a utilização de mecanismos repressivos e de inculcação ideológica, começa ruir. O sistema de regulação entra em colapso, o que resulta em conflitos entre instituições estatais, independência de órgãos governamentais que passam a se voltar uns contra os outros e funcionar para além de qualquer previsibilidade, falta de direção governamental e instabilidade política. Não se torna mais possível convencer as pessoas de que viver debaixo de certas regras é normal e, a violência estatal passa a ser recorrente como meio de controle social.
O racismo e as crises
A crise de 1873, o imperialismo e o neocolonialismo
A história do racismo moderno se entrelaça com a história das crises estruturais do capitalismo. A necessidade de alteração dos parâmetros de intervenção estatal a fim de retomar a estabilidade econômica e política – e aqui entenda-se estabilidade como o funcionamento regular do processo de valorização capitalista – sempre resultou em formas renovadas de violência e estratégias de subjugação da população negra.
A primeira grande crise do capital, de 1873, resultou na alteração brutal das relações capitalistas. Além de alterar toda a produção industrial do mundo, redefinir o equilíbrio político e militar e alterar todo o sistema financeiro e monetário internacional, a crise de 1873 foi o ponto de partida para o imperialismo e, mais tarde, para a primeira grande guerra.
O imperialismo marcou o início da dominação colonial e da transferência das disputas capitalistas do plano interno para o plano internacional. Isso porque a crise de superacumulação de capital obrigou o capitalismo a expandir-se além das fronteiras nacionais. Essa é a explicação econômica do imperialismo, mas que também teve como base um argumento ideológico preponderante: o racismo.
A ideologia imperialista baseou-se no racismo e na ideia eurocêntrica do progresso. Os povos da África, por exemplo, precisavam ser “salvos” pelo conquistador europeu de seu atraso natural. Essa ideologia racista, somada ao discurso pseudocientífico do “darwinismo social” – que afirmava a superioridade “natural” do homem branco –, foram o elemento legitimador da pilhagem, assassinatos e destruição promovida pelos europeus no continente africano.
“A fúria da conquista colonial, que teve em considerações racistas de ‘superioridade civilizacional’ seu principal alicerce ideológico (até setores da Internacional Socialista, confinada basicamente à Europa, admitiam a expansão colonial em nome da ‘obra civilizadora’ e seus países, e se definiam, como o alemão Eduard David, ‘socialimperialistas’) produziu vítimas em número maior aos holocaustos europeus do século XX, e fez também nascerem movimentos de resistência, que, finalmente, incorporaram os povos coloniais à luta política mundial contemporânea.”
Achille Mbembe, em Crítica da razão negra, apresenta os laços inextricáveis entre “morte” e “negócio” na esteira da relação entre imperialismo, colonialismo e racismo: “Esta brutal investida fora da Europa ficará conhecida pelo termo “colonização” ou “imperialismo”. Sendo uma das maneiras de a pretensão européia ao domínio universal se manifestar, a colonização é uma forma de poder constituinte, na qual a relação com a terra, as populações e o território associa, de modo inédito na história da Humanidade, as três lógicas da raça, da burocracia e do negócio (commercium). Na ordem colonial, a raça opera enquanto princípio do corpo político. A raça permite classificar os seres humanos em categorias físicas e mentais específicas. A burocracia emerge como um dispositivo de dominação; já a rede que liga a morte e o negócio opera como matriz fulcral do poder. A força passa a ser lei, e alei tem por conteúdo a própria força.
A bolsa de valores, o empreendimento colonial e o desenvolvimento do capital financeiro são, ao fim e ao cabo, os fundamentos econômicos que permitiram a constituição do racismo e do nacionalismo como a manifestação da ideologia do capitalismo após a grande crise do século XIX.
A crise de 1929, o Welfare State e a nova forma do racismo
Após a grande de depressão de 1929 e a segunda grande guerra, o arranjo social estabilizador resultou no regime fordista de acumulação e no Welfare State. A produção industrial em larga escala e o consumo de massa foram articulados com a ampliação de direitos sociais e políticas de integração de grupos sociais ao mercado consumidor. Entretanto, mesmo o Estado Social keynesiano ou Welfare State foi incapaz de lidar com os problemas sociais que estruturam o capitalismo. A desigualdade é um dado permanente do capitalismo, que pode ser, a depender de circunstâncias históricas e arranjos politicos específicos, no máximo, maior ou menor.
Mas como lembra David Harvey, mesmo na “Era de ouro do capitalismo”, o acesso aos direitos sociais pelos trabalhadores não foi simétrico e variava de acordo com a capacidade produtiva do país, o setor da economia e o grupo social a que pertencia o trabalhador. Setores de alto risco da economia e países de fraca demanda interna e com baixa capacidade de inovação tecnológica possuíam fracas redes de proteção social, com baixa permeabilidade às reivindicações da classe trabalhadora. Havia setores fordistas que se serviam de bases não fordistas de contratação, o que significa que alguns trabalhadores eram submetidos à superexploração ou mesmo ao trabalho compulsório, ainda que sob a égide de um Estado social e democrático.
Outra importante distinção feita por Harvey para se compreender as limitações do Welfare State é entre os setores “monopolista” e “competitivo” da indústria. O setor monopolista caracteriza-se por alta demanda, em que os conflitos encontravam lugar para converter-se em “direitos”. Já o “setor competitivo” é de alto risco, baixos salários e subcontratação e é nele que mulheres, negros e imigrantes estão alocados, longe da proteção de sindicatos fortes e da incidência de direitos sociais. Assim que racismo e sexismo colocam determinadas pessoas em seu “devido lugar”, ou seja, nos setores menos protegidos e mais precarizados da economia.
A enorme contradição de uma sociedade em que se pregava a universalidade de direitos e que, ao mesmo tempo, negros, mulheres e imigrantes eram tratados como caso de polícia, gerou movimentos de contestação social que colocavam em xeque a coerência ideológica e a estabilidade política do arranjo socioeconômico do pós-guerra. Ressalte-se que até mesmo o movimento sindical e as organizações de esquerda mostraram profundas limitações – assim como ocorre ainda hoje -, para a realização de uma crítica e até uma autocrítica que expusesse o racismo e o machismo que impregnavam suas próprias estruturas. A única forma de lidar com a denúncia dos movimentos sociais às contradições do Welfare State foi a criminalização e a perseguição aos “radicais”, “criminosos” e “comunistas” que ameaçavam as bases de uma sociedade livre.
Neoliberalismo e racismo
A crise do Estado de Bem Estar social e do modelo fordista de produção dá ao racismo uma nova forma. O fim do consumo de massa como padrão produtivo predominante, o enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada em alta tecnologia e a supressão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal tornaram populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou simplesmente abandonadas à própria sorte, anunciando o que muito consideram o esgotamento do modelo expansivo do capital.
Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos “direitos sociais” a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa “responsabilidade fiscal” segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso do empreendedorismo, da meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente martelados nos telejornais e até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo, naturalizase a figura do inimigo, do “bandido” que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela da gestão neoliberal do capitalismo. Mais do que isso, o regime de acumulação que alguns denominam de pós-fordista dependerá cada vez mais da supressão da democracia. A captura do orçamento pelo capital financeiro envolve a formulação de um discurso que transforma decisões políticas, em especial as que envolvem finanças públicas e macroeconomia, em decisões “técnicas”, de “especialistas”, infensas à participação popular.
O esfacelamento da sociabilidade regida pelo trabalho abstrato e pela “valorização do valor” resulta em terríveis tragédias sociais, haja vista que o movimento da economia e da política não é mais de integração ao mercado (há que se lembrar que na lógica liberal o “mercado” é a sociedade civil). Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente (e.g. corte nos direitos sociais) pelo Estado. Enfim, no contexto da crise, o racismo é um elemento de racionalidade, de “normalidade” e que se apresenta como modo de integração possível de uma sociedade em que os conflitos tornam-se cada vez mais agudos.
A superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não se alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que não podem ser resolvidos, no máximo mantidos sob controle. Todavia, a busca por uma nova economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar.
Silvio Luiz de Almeida é natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), é autor, entre outros de Sartre: direito e política: ontologia, liberdade, revolução coordenador do dossiê da Margem Esquerda sobre “Marxismo e a questão racial”, revista semestral da Boitempo, de cujo conselho editorial ele integra. Atualmente Preside o Instituto Luiz Gama, entidade com atuação na área direitos humanos e leciona nas Faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.