Setembro de 2020 foi o mais quente já registrado, com um aumento de 1,28 graus Celsius frente à media dos últimos dois séculos. E especialistas preveem que este ano pode destronar 2016 como o mais quente já registrado. A temperatura do planeta está muito perto dos limites estabelecidos pelo Acordo de Paris, de 2015, que visava mantê-la abaixo do 1,5 graus reduzindo as emissões humanas de carbono na atmosfera. Mas para certas regiões, a coisa está indo muito mais rápido.
José Correa Leite, São Paulo, 07 de outubro de 2020
O tempo de cada dia é uma manifestação de padrões climáticos complexos, que se movem dentro de extremos de calor e frio (para cada região) pouco usuais, episódios raros. Os cientistas só conseguiram compreender a esses padrões climáticos e antecipar o tempo com maior exatidão (a atividade da meteorologia, inventada no século XIX...) quando dispuseram de supercomputadores capazes de fazer bilhões de operações por segundo; hoje tanto a ciência do clima como a previsão do tempo estão bem estabelecidas. A temperatura média da Terra subiu, ao longo dos últimos dois séculos, 1,2 grau centígrado e o clima está se tornando mais quente, com ondas de calor mais frequentes. Como o sistema climático se tornou mais energético (acumulando mais calor), aumentam os fenômenos climáticos extremos, de furações e tornados à turbulências em voos aéreos.
Temos, no Brasil, uma das regiões mais crítica para o clima do planeta, a Floresta Amazônica. A América do Sul tem seu clima refrigerado pela floresta que capta, armazena e joga na atmosfera, todos os dias bilhões de toneladas de água, tornando a temperatura mais amena e impedindo que regiões como o Sudeste sejam desertos, como acontece, na mesma latitude, em outros continentes. Mas as pesquisas coordenadas por Luciana Gatti, do INPE, mostraram que isso está mudando rapidamente (como podemos ver a exposição de sua pesquisa clicando aqui).
Onde a Floresta se mantem preservada, como no estado do Amazonas, a temperatura vem se mantendo dentro de parâmetros históricos coerentes. Mas quanto mais desmatada a Floresta, maior a elevação média das temperaturas. Nas partes desmatadas do sudeste da Região Amazônica, com a floresta quase toda derrubada (leste e sudeste do Pará, norte de Mato Grosso e Tocantins), a temperatura na estação seca, entre julho e outubro, está em média 3 graus mais quente - é junto com partes do Ártico e a Sibéria, a região que mais rapidamente se aqueceu no planeta. Essa enorme zona é o coração do continente, e tem agora calor suficiente para bloquear muitas frentes frias que antes avançavam do Polo Sul pelos Pampas para amenizar a temperatura das regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil.
Mas esse é só o começo do problema climatológicos com os quais o Brasil se confronta. A água bombeada pela Floresta para a atmosfera alimenta os "rios voadores", que irrigam o Cerrado, o Pantanal e o Sudeste brasileiro. É a Floresta que garante as condições favoráveis à agricultura no resto do país, bem como o abastecimento de água para as cidades. Mas como o desmatamento está se dando na região que é a porta de entrada da umidade do Oceano Atlântico para a Floresta Amazônica, a devastação da mata no Pará cria uma gigantesca barreira térmica para a entrada da água no continente, que por um efeito de retroalimentação (chuvas e evaporação, chuvas e evaporação...) vai do Pará até a Colômbia e Peru e depois é levada para o Centro-Oeste (onde irriga o Pantanal) e todo o Sudeste do Brasil. O desmatamento no Pará afeta o regime de chuvas do conjunto do continente, tornando-se mais seco. É por isso que não é preciso desmatar tudo para que a Floresta Amazônica de conjunto entre em colapso; ela já está por um triz porque o cano pelo qual entra a água que a alimenta está sendo estreitado. Mais uns poucos anos de desmatamento na região mais próxima do Atlântico provocarão um efeito cascata de secas e morte de toda a Floresta. O que os cientistas chamam metaforicamente de "savanização" da Amazônia significará, de fato, não apenas a mudança da cobertura vegetal da região, mas o ressecamento e a desertificação de outras partes do Brasil, não em um futuro distante, mas - mantidas as atuais tendências - já na próxima década. Isso será acompanhado de ondas cada vez mais fortes, intensas e longas de calor, inclusive em períodos cada vez maiores de calor mortal, como a que estamos tendo neste final de setembro e início de outubro.
O Leste devastado da Amazônia é a região do planeta que (junto com o Ártico) está tendo o maior aumento de temperatura - 3 graus acima da média no período seco. Mas, se o derretimento das camadas de gelo é fruto de todos os complexos mecanismos de emissões de carbono e acúmulo na atmosfera de gases do efeito estufa (inclusive das queimadas da Amazônia), a destruição da Floresta Amazônica é feita com motosserras, como obra consciente de pecuaristas gananciosos e criminosos - estimulados por políticos conservadores e pelas megaempresas como a FBS, a Marfrig e a Minerva, cujas cadeias produtivas gera 80% da devastação hoje em curso. Tirar a produção capitalista de gado da Amazônia e proibir efetivamente a ação das madeireiras ainda pode evitar a precipitação do processo, evitando que em cinco ou dez anos a Floresta toda seja perdida em um efeito cascata de secas crescentemente devastadoras. Restaurar o clima que tínhamos já é bem mais complexo, exigindo o reflorestamento de boa parte da região desmatada.
José Correa Leite é professor e constrói a Assembleia Mundial da Amazônia em São Paulo.