É o grande negócio brasileiro. Suas plantações ocupam área equivalente à da superfície da Alemanha e foi o único setor que cresceu em 2020, apesar da pandemia. Território bolsonarista e berço de uma próspera classe empresarial, só teme a pressão dos ambientalistas e da Europa.
Naiara Galarraga Gortázar de Sinop (Mato Grosso), El País Brasil, 24 de abril de 2021
Desbravar evoca abrir caminhos, explorar o desconhecido, “civilizar”. O pai de Tamires Vasconcelos era um desbravador quando chegou a estas terras da Amazônia brasileira há quatro décadas. A bordo de uma escavadeira, ele ganhava a vida abrindo clareiras em meio à vegetação exuberante para construir estradas. Com elas, chegaram os colonos. E as cidades. Foram empurrados para fora a maior parte dos indígenas autóctones, como os Kayabi e os Apiakás. E anos depois, os cultivos. Os moradores relatam a colonização impulsionada pela ditadura militar como a epopeia dos pioneiros. As fotos em preto e branco do desembarque na década de 1970 contrastam com o verde dos campos de soja que se estendem até o infinito. Aqui e ali, pequenos grupos de árvores.
O berço do setor da soja fica no coração do Brasil, no Estado de Mato Grosso, a cerca de 2.300 quilômetros, terra adentro, do Rio de Janeiro. É o flanco sul da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. Esses campos, caminhões e silos representam o motor da economia brasileira. A fazendeira Vasconcelos, a única dos filhos do desbravador que optou por transformar o campo em sua vida, a herdeira, hoje pertence a uma próspera classe empresarial.
Aqui a soja reina. As plantações ocupam cerca de 38 milhões de hectares (como a superfície da Alemanha). A história econômica deste país continental acompanha o ritmo das matérias-primas. A soja é para o século XXI brasileiro o que o açúcar foi para o século XVII, o ouro para o XVIII e o café para o XIX.
Presente e passado
Vasconcelos e os 5.100 hectares de plantação da fazenda que dirige —a Minuano— representam o único setor econômico que conseguiu crescer durante a pandemia de coronavírus no Brasil. “Nosso principal cultivo é a soja, temos em segundo o milho, e também arroz e feijão”, explica esta engenheira agrônoma de 35 anos sentada em frente a um café, debaixo de uma árvore, em uma manhã ensolarada de março. Desta região sai boa parte da soja que alimenta vacas, porcos e galinhas, que por sua vez alimentam o mundo.
Mesmo na difícil conjuntura do coronavírus, o agronegócio brasileiro vive um doce momento. A produção está mais alta do que nunca, os preços internacionais disparam, o valor do real está muito baixo e nunca tiveram um aliado tão próximo na Presidência da República como Jair Bolsonaro. O país é o primeiro produtor do planeta. Para os empresários da soja, a única nuvem no horizonte é a pressão internacional pelo crescente desmatamento na Amazônia, crucial para mitigar as mudanças climáticas.
Não fosse pelo fato de falarem português, seria difícil acreditar que esta zona do Estado do Mato Grosso é Brasil. As camisas xadrez, os bonés, chapéus e botas, as caminhonetes têm o cheiro country do centro-oeste dos Estados Unidos. Em Sinop, como em outras cidades brasileiras, uma imponente Estátua da Liberdade preside a entrada da Havan, uma loja de departamentos de Luciano Hang, um amigo de Bolsonaro. A música sertaneja, o country local, é a trilha sonora dessas cidades agrícolas, embora o vírus tenha fechado os bares. Esta é uma região desconhecida até mesmo para muitos compatriotas. Não aparece em cartões postais. É território bolsonarista.
Antes do amanhecer, Vasconcelos vai de Sinop, a principal cidade da região, para a sua fazenda. Quem acredita que o nome deriva de sino, o vocábulo que designa a China, grande cliente que levou o negócio a níveis sem precedentes, está confundindo as coisas. Vem da própria origem de Sinop: significa Sociedade Imobiliária do Norte do Paraná, o Estado vizinho de onde vieram muitos dos colonos, como João Marcus Menegace.
O taxista Menegace era criança quando chegou com os pais e sete irmãos em uma van. “Comíamos no acostamento”, lembra ele. Após uma viagem de vários dias, chegaram à terra prometida. E prosperaram. A frota de veículos —com quase tantos carros como moradores—, a loja gourmet com delícias importadas e uma sofisticada butique de bolsas que não destoaria na zona opulenta São Paulo dão uma ideia da riqueza.
#OAgroNãoPara é o slogan que tem feito furor nas redes sociais e nestas terras desde que o coronavírus virou o mundo de cabeça para baixo. As máscaras lembram que a pandemia ainda existe, mas quase não afetou os negócios. “Os reflexos da pandemia foram menores porque, quando chegou, já havíamos negociado a safra 2020-2021”, explica a empresária agrícola. Os suprimentos estavam comprados e os grãos, vendidos. Trabalhar ao ar livre com escassa mão de obra e tecnologia abundante torna as coisas mais fáceis em tempos de covid-19.
A fazenda que ela comanda pouco tem a ver com a que fundou seu pai, Elmo Leitzke. Quase todos os processos adotam moderna tecnologia e os funcionários são qualificados. Eles fumigam as plantações em pequenos aviões. Vasconcelos mostra o silo construído dentro da propriedade e “pago à vista”, diz, com orgulho. Essa evidente bonança é fruto, ela explica, de “muitos anos de investimento em tecnologia e pesquisa sobre o clima, o solo, as sementes e os defensivos agrícolas”. No léxico local, “os defensivos” são o que os ambientalistas brasileiros chamam de agrotóxicos. Os pesticidas.
Os agroquímicos fazem parte do pacote tecnológico que, desde a década de 1990, elevou a produtividade em níveis imprevistos graças também à incorporação mais recente de sementes transgênicas. A União Europeia, que é um dos destinos dessas culturas, proibiu o cultivo de transgênicos e o uso de alguns pesticidas permitidos no Brasil, como acefato e atrazina. No Governo Bolsonaro a autorização de novos agroquímicos se acelerou em ritmo recorde: mil pesticidas em dois anos.
Entre os últimos dias de fevereiro e os primeiros de março, chuvas torrenciais dificultaram a colheita da primeira safra de soja em 2021 e o plantio da primeira safra de milho. Aqui, todos plantam duas safras, muitos três e alguns até quatro. Produção superintensiva destinada principalmente à exportação para China e União Europeia. O Brasil produz um terço da soja do mundo. Ou seja, em poucas décadas se equiparou aos Estados Unidos graças à duplicação da produção por lote e à triplicação das terras cultivadas desde a década de 1980, segundo a análise do Our World In Data.
O setor agropecuário brasileiro faturou cerca de 1 trilhão de reais em 2020, segundo dados oficiais. Mas, se somarmos toda a atividade econômica que o circunda, a contribuição do agronegócio para o PIB aumentou na última década de 20% para 26% atualmente, segundo o Instituto Cepea da Universidade de São Paulo, enquanto a indústria e os serviços minguavam.
O professor de economia agrícola Guilherme Miqueleto, da Universidade Federal de Mato Grosso, enumera outros fatores que também contribuíram para o aumento espetacular da produção: a estabilidade econômica, maior segurança jurídica e “a expansão da fronteira agrícola há 15-20 anos, que tem subido em direção ao norte”. Desbravando a Amazônia.
Em outros países, também derrubam árvores para dar lugar à pecuária e às plantações, mas em nenhum isso ocorre com a intensidade do Brasil, responsável por um terço do desmatamento mundial. O principal culpado é o gado. A soja esteve entre os principais responsáveis pelo desmatamento até 2006, quando as empresas se comprometeram com as ONGs e o Governo a não comprar grãos de terras de floresta derrubada ilegalmente. Sem demanda, a oferta desse tipo de soja caiu até quase desaparecer. A moratória da soja na Amazônia “é eficaz no controle do desmatamento diretamente associado à soja”, explica Cristiane Mazzeti, gestora ambiental do Greenpeace. Apenas 2% da produção atual vem de terras desmatadas ilegalmente.
Mas, como os grãos são mais lucrativos do que as vacas, existem trapaças. Primeiro desmatam, depois criam gado e, com o passar dos anos, voilà!, as pastagens se transformam em lavouras.
Política e negócios
O tráfego de caminhões carregados com a colheita que vão das fazendas para os silos é incessante apesar da enxurrada. Em uma das unidades de processamento, uma funcionária da empresa de auditoria internacional KPMG inspeciona a mercadoria e toma nota assim que detecta soja transgênica para que a Bayer-Monsanto cobre do produtor os direitos de patente.
Livre de impurezas, a mercadoria seguirá viagem em direção ao rio Tapajós, afluente do Amazonas, pela congestionada estrada que corta verticalmente o Mato Grosso. É a BR-163, idealizada pelos militares na década de 1970 para garantir que o império norte-americano não lhes arrebatasse esse vasto território.
Na estação das chuvas, circular em muitas estradas nesta região é um inferno. Por isso, os moradores de Sinop estavam fartos de visitas eleitorais e de promessas sobre a BR-163 até a chegada de Bolsonaro. Dito e feito. “Os presidentes que passaram nos últimos 24 anos não terminaram de asfaltá-la. E em menos de um ano, Bolsonaro pavimentou os 175 quilômetros que faltavam”, proclama em seu gabinete Ilson Redivo, presidente do Sindicato Rural da cidade, que reúne 270 empresários agrícolas.
Os 900 quilômetros agora todo asfaltados encurtam de quatro para dois dias o transporte de cargas até o porto. A outra rota envolve 2.500 quilômetros de caminhão até o Sul e 5.000 quilômetros de barco ao longo da costa do Brasil e países vizinhos para então se dirigir ao Canal do Panamá, explica Redivo. A economia de tempo e dinheiro é enorme. Agora eles confiam que o presidente também cumpra nos próximos meses a promessa de colocar em licitação o trem que seguiria em paralelo à BR-163 e lhes pouparia mais dinheiro. “Cada composição substituirá 300 caminhões”, diz Edeon Vaz, promotor do ferrogrão.
Praticamente oito em cada dez eleitores de Sinop votaram em Bolsonaro, um militar reformado de extrema direita, no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. E a admiração persiste. Não é para menos. Ele colocou a chefa da bancada parlamentar do agro como ministra da Agricultura. Aqui todos têm boas palavras para a discreta e decidida Tereza Cristina Dias porque ela abriu novos mercados para eles. E também contam entre seus aliados o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, como todo o Brasil viu em um vídeo de uma reunião do Ministério que causou um escândalo em maio de 2020. Lá, Salles propôs aproveitar a pandemia para “passar a boiada” (baixar normas a favor do setor agropecuário).
Os moradores de Sinop aclamaram o presidente durante uma visita em setembro, em plena pandemia. Redivo e o sindicato que dirige estão tão contentes com ele que lhe dedicaram algumas placas. Ao lado de um retrato de Bolsonaro com a faixa presidencial, um lema: “Acreditamos em Deus e valorizamos a família”. As pessoas por aqui são conservadoras. A poucos quarteirões de distância, uma loja vende moda feminina evangélica.
Para o Redivo, as placas são “um reconhecimento a uma pessoa que tenta endireitar os rumos deste país. Porque estávamos indo na direção da Venezuela, de Cuba. E 99% da classe produtora não quer que o comunismo se instale no Brasil”.
Após cada eleição, as fileiras da bancada do setor agropecuário engordam no Congresso. Já beira 300 parlamentares. Superam até os evangélicos. O deputado Nilson Leitão, membro destacado dessa frente e ex-prefeito de Sinop, explica que o agronegócio tem que estar na agenda política tendo em vista que “o Brasil é um país com população urbana, mas economia rural”.
Leitão agradece que, com este Governo, acabaram as invasões de terras pelos sem-terra. Mas está incomodado com as estridências de Bolsonaro com a China, seja porque é um regime comunista ou por causa das vacinas contra o coronavírus. O que o mercado precisa é de confiança e segurança, diz ele. “Brigar com o principal cliente (China) não é bom para os negócios.”
Cobrar para preservar?
A questão ambiental ganhou destaque no Brasil com a crescente conscientização mundial sobre as mudanças climáticas e a chegada de Bolsonaro, que acredita que a preservação ecológica atrapalha o desenvolvimento econômico. O objetivo do agronegócio é que “o que é economicamente viável seja ecologicamente correto”, afirma o deputado ruralista.
Muitos anos se passaram desde que a crescente consciência ecológica cruzou pela primeira vez o caminho dos pioneiros que transformaram este canto do Brasil em um dos mais prósperos à custa da natureza. Na década de 1970, os recém-chegados trabalharam com a madeira. O grande negócio era cortar e vender o principal tesouro daquelas terras. No início do século XXI, com o primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o desmatamento descontrolado, chegou a pressão dos ambientalistas e eles tiveram que buscar outra fonte de renda.
Foi então que aqui disparou a soja, um setor que cresce ano após ano. Agora, com o desmantelamento sistemático da política ambiental, o agronegócio sofre forte pressão de ambientalistas e dos europeus.
À frente, o presidente da França, Emmanuel Macron, que acusa a soja brasileira de desmatar a Amazônia. O prefeito de Sorriso, Ari Lafin, sentiu que aquelas palavras de Macron o atingiam. Lógico. Sua cidade, ao sul de Sinop, produz 3% da soja brasileira. O prefeito respondeu ao francês com um convite. “Eu o convidei para nos visitar, como fez o presidente (Bolsonaro), porque esta região deveria ser conhecida mais de perto”, explica em entrevista por vídeo. “A responsabilidade com o meio ambiente é uma das prioridades do setor agrícola local”, insiste. “Produzir destruindo é inútil”, conclui.
Com 100.000 habitantes, a população de Sorriso cresce a cada ano quase 8%. “Esta é uma terra, uma cidade, de oportunidades, de muito trabalho. Aqui temos que acordar cedo, quase não temos horário, quase não paramos para descansar. Você coleta a soja e já está plantando milho. Uma colheita após a outra e isso traz um movimento que chega até a farmácia, o vendedor de pneus ... “. A prosperidade é imensa. O PIB per capita está acima do de São Paulo. Os empregos que criam não são a mão-de-obra clássica, mas sim vinculados a serviços ou fornecedores. Escritórios de advogados, contadores, comerciantes de máquinas, incorporadores imobiliários, lojas, restaurantes...
A nova geração de fazendeiros na casa dos 30 anos, formada em universidades, mostra uma sensibilidade ambiental que seus pais e avós não tinham. “Nos últimos cinco ou dez anos houve uma mudança muito abrupta e nem todos os produtores souberam se adaptar”, diz Vasconcelos. “Produzimos de uma forma que impacte menos (no meio ambiente). Mas sofremos muito com essa pressão. Sobretudo com a desinformação”, diz.
A empresária explica que produzir com menos impacto significa seguir detalhadamente as orientações de uso, carência e aplicação de pesticidas, fertilizantes etc., “para cuidar do solo e devolver-lhe o que foi extraído na colheita”. E é importante também fazer o descarte correto dos recipientes: “São lavados três vezes antes de serem devolvidos à empresa que se encarregará deles de maneira adequada”.
Ela aceita a entrevista para este jornal porque quer que a versão dos produtores rurais seja ouvida. E também quer servir de exemplo. Com dois filhos e casada com um colega da faculdade de agronomia, ela quer que as meninas vejam que se quiserem cuidar de uma fazenda, elas podem. Embora já esteja no ramo há duas décadas, ainda encontra expressões de surpresa quando seus interlocutores descobrem que ela é a chefa.
Como todos aqui e, em linha com o mantra do Governo Bolsonaro, ela insiste em que “não há nenhum outro país que proteja tanto a natureza”. Essa ideia que o setor defende em uníssono é baseada em duas cifras que resumem o embate fenomenal que os produtores agropecuários e os ambientalistas travam. O Brasil conserva 66% de sua vegetação original (algo de que poucos países desenvolvidos podem se orgulhar) e a lei exige a preservação de 80% da vegetação de cada propriedade rural na Amazônia, para que apenas 20% possam ser cultivados. Nas demais regiões brasileiras de alto valor ecológico, a proporção é de 50/50.
De qualquer forma, “o Código Florestal não é respeitado em muitos casos”, diz Cristiane Mazzetti, gestora de meio ambiente do Greenpeace, que apresenta um dado eloquente: “Em 2019, 99% do desmatamento foi ilegal”.
Redivo, presidente do sindicato rural, argumenta que, tendo em vista o quão fenomenal é o negócio, as leis deveriam ser flexibilizadas para extrair todo o potencial de cultivo dessas terras, mesmo que sejam de altíssimo valor ecológico e cruciais, segundo cientistas, para impedir o aquecimento global.
Um caminhão circula dentro de uma fazenda nos arredores de Sinop, na Amazônia. A lei obriga que uma propriedade rural conserve 80% de sua vegetação.
Ele está entre os céticos em relação às mudanças climáticas. “O aquecimento global não tem nada a ver com o desmatamento da Amazônia”, proclama enfaticamente, e acrescenta sem constrangimento que “hoje se sequestra muito mais carbono em uma área cultivável do que em uma área de floresta”. Mas se o resto do mundo se preocupa tanto com a Amazônia, Redivo tem uma proposta: “Que nos paguem para preservar a biodiversidade, não podemos pagar nós mesmos sem obter contrapartidas”.
Os cientistas há muito alertam que os danos ecológicos causados pelo desmatamento na Amazônia são tantos que estão prestes a cruzar o limite em que deixará de capturar CO2 para começar a emiti-lo. É uma mudança importante porque passaria de mitigar as mudanças climáticas para agravá-las.
Miqueleto, o economista, ressalta que se as vacas e a soja continuarem ganhando terreno e avançando para o norte, os produtores agrícolas sentirão os efeitos. Secas ou chuvas intempestivas estragariam o negócio fenomenal.