No século 19, revoltosos da Cabanagem refugiaram-se em lugares remotos do Pará, onde criaram comunidades que hoje se empenham em manter a posse de suas terras. Depois de sofrer com impactos na caça e na pesca decorrentes da construção da hidrelétrica de Tucuruí, os quilombolas agora se veem envoltos em conflitos de terra com empresas associadas à extração do óleo de palma. Paralelamente, missionários religiosos exercem uma atividade de apagamento cultural, restringindo antigas tradições e rituais de cura e descaracterizando a identidade destas populações.
Miguel Pinheiro, Mongabay, 2 de maio de 2022
Em 1835, uma rebelião irrompeu no Baixo Amazonas, no então estado do Grão-Pará. A grande maioria da população era composta por afrodescendentes, caboclos e indígenas – usados como escravos ou mão-de-obra barata, que viviam nas várzeas e margens dos rios Guamá, Moju e Tocantins em precárias cabanas, ficando por isso conhecida como Cabanagem. Quando a revolta foi esmagada pelas tropas imperiais do Brasil, estima-se que mais de 30 mil pessoas tenham perecido. Algumas, porém, encontraram uma maneira de fugir para lugares remotos da floresta, onde criaram novos assentamentos – os quilombos ou mocambos, um desafio às autoridades da época em mais um registro histórico de resistência das comunidades afrodescendentes no Brasil.
Quase dois séculos depois, algumas destas comunidades prosperam no coração da maior floresta tropical do mundo. “Aí os cabanos, que eram os fugitivos, eles andavam na mata. Isso no tempo do meu bisavô”, conta Dona Isabela Trindade Correia, às margens do Rio Tocantins. “Tem lugar que tem tijolo velho em tudo quanto é canto, era onde eles se escondiam. Na mata! Até se verem livres. Aí é que eles fizeram o quilombo deles”, conclui Isabela, uma das mais antigas moradoras do Quilombo do Mola, no sudeste do Pará.
Foi todo um caminho até chegar à casa de Isabela. O primeiro contato visual com a Amazônia surgiu da janela do avião, minutos antes de aterrissar na capital Belém. Visto de cima, o corpo líquido do Rio Guamá era uma serpente marrom, admirável e dócil, entrecortada por algumas raras estradas. Várias horas dirigindo por uma delas me levou depois até à beira do Rio Tocantins, onde um barco largo, metálico e achatado faz a travessia dos passantes.
Mais uma hora flutuando nesta balsa sobre o rio ponteado de ilhas verdes e aves errantes e cheguei à cidade de Cametá – um lugar de destaque durante a Cabanagem. Reza a história que os quilombos que surgiram nesta região, fundados por trabalhadores fugidos das plantações de cana-de-açúcar, empreenderam severas derrotas às autoridades da época.
De Cametá, avancei por uma estrada de chão que a certa altura virou caminho de areia, e foi palco de épica batalha para impedir o carro de atolar em lugar inusitado, e longe de qualquer vivalma. Finalmente, o Quilombo da Tomázia entrou no meu horizonte. No último trecho, já com câmeras e microfones encaixados na mochila, fui levado por quilombolas na garupa de uma moto, cruzando em alta adrenalina a floresta arenosa e as improvisadas pontes de madeira, até chegar enfim ao Quilombo do Mola.
“Para serem viáveis, as comunidades quilombolas tinham que ser inacessíveis, para fins de ocultação e defesa”, escreveu em artigo Richard Price, antropólogo norte-americano especializado em quilombos. Na Amazônia, estes grupos desenvolveram estilos de vida independentes de base rural e extrativista, como lembra Isabela: “A gente caçava veado, paca, tatu, porco-do-mato. E pescava traíra, jendiá… Mas era farto, antes era farto. Agora tá difícil o peixe, meu amigo. Depois da barragem, tá difícil”.
O desaparecimento da caça e da pesca depois da inauguração da hidrelétrica de Tucuruí, em 1984, levou ao êxodo de muitos dos antigos habitantes do Mola, e ao desmanchar da comunidade extrativista. Um paraíso perdido, uma Amazônia rica e pobre ao mesmo tempo, nas palavras do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto.
Com o fim da escravidão no Brasil, em 1888, estas comunidades não sumiram, porém “não os encontramos mais na documentação de polícia e nas denúncias dos jornais”, escreveu o historiador Flávio Gomes. “Os vários quilombos continuaram se reproduzindo, migrando, desaparecendo, emergindo e se dissolvendo no emaranhado das formas camponesas.”
Durante o século 20, nenhum critério social, histórico ou étnico foi utilizado no Brasil para distinguir esses grupos. Quando a Constituição Brasileira de 1988 reconheceu a propriedade definitiva “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” (artigo 68), sobrou a questão de como diferenciar uma comunidade rural aleatória de uma comunidade remanescente de quilombo, com vínculos históricos, territoriais e culturais aos “pretos fugidos”.
O óleo do desassossego
Cerca de 300 km a leste do Mola encontra-se o Quilombo do Cravo, às margens do Rio Capim. Lá, ecoa uma mensagem semelhante: “A nossa cultura está desaparecendo”, conta Antunina Santana.
Escorre uma tarde amazônica, quente e úmida no Quilombo do Cravo, em Concórdia do Pará. Dona Antunina é uma das lideranças da região e a responsável pela certificação de três terras de remanescentes de quilombo. “A gente sempre viveu da agricultura, do plantio de mandioca, de feijão, batata-doce, arroz… Era quantidades de colheita de arroz!”, lembra ela. “E também sobrevivia da caça e da pesca.”
Até que em 2008 o plantio e extração de óleo de palma chegou à região. “Era uma empresa que vinha trazer benefícios para todas as comunidades em relação à saúde, à educação, ao abastecimento de água”, conta Antunina. A realidade, porém, escondia uma estratégia diferente: “Pra nossa maior decepção, não era nada disso. Era compra de terras e expulsão de lavradores para a cidade.”
Atraídos por quantias de dinheiro nunca antes vistas, muitos quilombolas venderam suas terras na esperança de se tornarem ricos. Mas dias sombrios estavam no virar da esquina, como explica Antunina: “Vender a pequeno custo terras de agricultura familiar e ir embora para a cidade, e depois não ter como se sustentar, no fundo, significa uma expulsão. Da forma como foi vendida a terra, as pessoas hoje não têm onde viver, e muito menos a terra pra trabalhar”.
O óleo de palma, também chamado de dendê, é o óleo vegetal mais usado no mundo, e uma das mercadorias de extração mais controversas. É matéria-prima de uma infinidade de produtos processados encontrados em um supermercado, como pizzas congeladas, biscoitos, detergentes, artigos de maquiagem e velas, entre outros.
Aproximadamente a duas horas de carro do Quilombo do Cravo fica a cidade de Moju, um dos municípios com maior área plantada de palma. Seu Elias Nascimento mora nos subúrbios da cidade, num quilombo local espremido entre a área urbana e grandes plantações de dendezeiros. Ele me explica como foram feitas as negociações com a empresa de óleo de palma quando esta começou a adquirir algumas terras na região.
E prossegue Elias: “Hoje em dia eles tomaram conta de tudo. A gente anda de carro e não tem mais fim. O povo tentava defender suas terras, mas eles tinham mais dinheiro, tinham os capangas, foram tomando conta.” Foi só com envolvimento de pesquisadores de fora da comunidade que a população tomou consciência do seu estatuto como povo remanescente de quilombo, o que levou à titulação do território atual. “Mas aí já foi tarde”, conta Elias. “Nós só conseguimos um pedaço. E dentro desse pedaço tem 15 comunidades igual a essa daqui.”
No Quilombo do Cravo, ocorreu processo semelhante. Somando a tomada de consciência sobre o passado da comunidade e o conhecimento do manejo dos cultivos, Dona Antunina se sentiu motivada a liderar algumas das ações de reconhecimento do território quilombola em Concórdia do Pará. “Empresa nenhuma pode comprar terras dentro dessas áreas que estão com certificação. Então foi uma bênção de Deus que nós recebemos. É essa garantia tão grande pra nós da posse da terra.”
Diversidade biocultural
Porém, estas comunidades tradicionais vêm sendo cada vez mais disputadas por missionários católicos e evangélicos, que lutam entre si para obter o maior número de devotos e se aproveitam do isolamento destes assentamentos. “No passado a gente tinha uma diversidade de culturas, que aos pouco a gente foi perdendo”, conta Dona Antunina, mostrando um claro desconforto na frente da câmera. “Principalmente as curandeiras e os pajés, que são considerados como coisa do demônio. A Igreja não aceita.”
A intolerância está presente de forma cotidiana em outras manifestações religiosas de matriz africana no território brasileiro, como a destruição de terreiros de umbanda e candomblé. Porém, no coração da Amazônia, este apagamento encenado pela Igreja ganha contornos de purga espiritual, e é um atentado flagrante aos direitos humanos. Missionários que atuam na Amazônia operam por um processo muito profundo de humilhação das práticas tradicionais, descaracterizando as identidades destas populações.
Elias teve de lutar contra a entrada da Igreja Evangélica dentro do Quilombo do Moju. Entre as várias ofertas e a promessa da chegada de material de som moderno, Elias fechou as portas da comunidade. “Essa cultura de adorar nossos santos foi deixada por nossos avôs. Queremos continuar essa cultura que os antigos deixaram para nós”, conclui Elias dentro da capela de alvenaria com bancos de madeira e paredes azuis da cor do céu, onde num canto repousa uma coroa de celebração da Festa do Divino Espírito Santo.
Reconhecer o papel que as comunidades quilombolas têm a desempenhar na proteção e na gestão da biodiversidade da Amazônia é decisivo para a sobrevivência de uma paisagem plural e vibrante. A chave para a biodiversidade da floresta é a diversidade biocultural humana que compõe essa mesma floresta. Ou como o historiador Alberto Costa e Silva sintetiza em entrevista recente, “o Brasil não repete a África, o Brasil reinventa a África. É preciso que se veja o negro não só como alguém que sofre, mas alguém que sofre e constrói, que é criador, que é inventivo, é inteligente, e foi um agente de mudança essencial nesse país.”