Cientistas registram os níveis mais altos de poluição atmosférica pelo metal em um trecho preservado da floresta no Peru: até pássaros contaminados
Oscar Valporto, ODS 14, ODS 15, 3 de fevereiro de 2022
A Estação Biológica Los Amigos fica no meio da Amazônia peruana, a quase 700 quilômetros de Lima e a pouco mais de 200 quilômetros do Acre. Nesta área de floresta, pesquisadores constataram os níveis mais altos de poluição atmosférica por mercúrio já registrados – em patamares semelhantes a áreas industriais onde há extração do metal. O vilão peruano é o mesmo das ameaças à floresta e seus moradores no lado brasileiro: a mineração ilegal de ouro na Amazônia.
Publicado na revista Nature Coomunications, o estudo documenta um “acúmulo substancial” de mercúrio em solos, biomassa e pássaros residentes na Estação Biológica de Los Amigos, uma das áreas mais protegidas e biodiversas da Amazônia peruana. As aves dessa área têm até doze vezes mais mercúrio em seus organismos do que as aves amazônicas de áreas menos poluídas.
Descobrimos que as florestas maduras da Amazônia próximas à mineração de ouro estão capturando grandes volumes de mercúrio atmosférico, mais do que qualquer outro ecossistema anteriormente estudado em todo o mundo
O processo de mineração ilegal relatado pelos pesquisadores é igual ao usado nos garimpos brasileiros. Os mineradores ilegais do Peru – explica o estudo – separam as partículas de ouro dos sedimentos dos rios usando mercúrio, que se liga ao ouro, formando pelotas grandes o suficiente para serem capturadas em uma peneira. O mercúrio atmosférico é liberado quando essas pelotas são queimados em fornos a céu aberto: a alta temperatura separa o ouro, que derrete, do mercúrio, que sobe em forma de fumaça. Essa fumaça de mercúrio acaba sendo levada ao solo pela chuva, depositada na superfície das folhas ou absorvida diretamente nos tecidos das folhas.
O impacto e a disseminação da poluição por mercúrio foram estudados principalmente em sistemas aquáticos; a pesquisa fez as primeiras medições de depósitos terrestres de metilmercúrio atmosférico, a forma mais tóxica de mercúrio. “Descobrimos que as florestas maduras da Amazônia próximas à mineração de ouro estão capturando grandes volumes de mercúrio atmosférico, mais do que qualquer outro ecossistema anteriormente estudado em todo o mundo”, afirma a bioquímica Jacqueline Gerson, em comunicado distribuído pela Universidade de Duke, (Carolina do Norte, EUA), tradicional instituição de ensino e pesquisa do país.
O estudo foi liderado por pesquisadoras do Departamento de Biologia de Duke – Jacqueline Gerson e Emily Bernhardt – mas teve a participação de cientistas peruanos, canadenses e de outras universidades americanas. Para medir esse mercúrio, a equipe coletou amostras de ar, serapilheira (camada superficial do solo feita de folhas e ramos em decomposição), o próprio solo e folhas do topo das árvores, que foram obtidas com a ajuda de um enorme estilingue.
Os pesquisadores concentraram sua coleta em quatro tipos de ambientes: com a floresta intacta e desmatados; próximos à atividade de mineração ou distantes da atividade de mineração. Duas áreas florestais pesquisadas, próximas à atividade de mineração, tinham árvores pequenas e irregulares; a terceira é a Estação Biológica Los Amigos, uma floresta primitiva intocada.
O estudo constatou que as áreas desmatadas, que receberam mercúrio apenas por meio das chuvas, apresentaram baixos níveis de mercúrio, independentemente da distância da atividade de mineração. As quatro áreas com árvores desbastadas, duas próximas à atividade de mineração e duas mais distantes, apresentavam níveis de mercúrio, de acordo com as médias mundiais. “Descobrimos que os fluxos atmosféricos de mercúrio em áreas de conservação florestal adjacentes à atividade de mineração são mais de 15 vezes maiores do que as áreas desmatadas ao redor”, afirma o estudo publicado na Nature.
Para todas as áreas florestais, a equipe fez a medição a partir de um parâmetro chamado índice de área foliar, que representa a densidade do dossel (cobertura superior da floresta formada pelas copas das árvores). Os pesquisadores descobriram que os níveis de mercúrio estavam diretamente relacionados ao índice de área foliar: quanto mais denso o dossel, mais mercúrio ele contém. O dossel da floresta funciona como um coletor para os gases e partículas provenientes da queima próxima das pelotas de ouro-mercúrio.
Para estimar quanto do mercúrio capturado no dossel da floresta estava passando pela cadeia alimentar, a equipe mediu o mercúrio acumulado em penas de três espécies de pássaros canoros, em estações de reserva próximas e distantes da atividade de garimpo: as aves da Estação Biológica de Los Amigos tinham em média três vezes e até 12 vezes mais mercúrio em suas penas do que as de uma estação biológica mais remota.
Queimadas levam mais mercúrio à atmosfera
De acordo com os pesquisadores, essas altas concentrações de mercúrio podem provocar um declínio de até 30% na reprodução dessas aves. “Essas florestas estão prestando um enorme serviço ao capturar uma enorme fração desse mercúrio e impedir que ele chegue ao reservatório atmosférico global”, destaca a biogeoquímica e ecologista Emily Bernhardt, no comunicado da Duke. “Isso torna ainda mais importante que essas áreas de florestas não sejam queimadas ou desmatadas, porque isso liberaria todo aquele mercúrio de volta à atmosfera”, acrescenta.
No estudo publicado na Nature, os pesquisadores apontam que muitos locais intensivos de garimpo – que eles chamam de “mineração artesanal ou de pequeno porte” – estão ilegalmente dentro de áreas de conservação e “levam à diminuição da biodiversidade, à perda de espécies sensíveis ou ameaçadas e à alta exposição de mercúrio em pessoas e animais de grande porte”.
O objetivo do nosso estudo é destacar que os problemas são muito mais vastos do que a poluição da água e que precisamos trabalhar com as comunidades locais para encontrar maneiras de os mineradores terem um meio de vida sustentável e proteger as comunidades indígenas de serem envenenadas pelo ar e pela água
A equipe liderada pelas cientistas da Duke comparou os índices de contaminação de mercúrio com pesquisas realizadas em áreas urbanas industriais nos Estados Unidos (onde hoje a mineração de mercúrio está proibida) e na China. “A implicação mais importante e inovadora de nosso trabalho é a documentação de quantidades elevadas de mercúrio sendo depositadas em florestas próximas à atividade mineradora”, afirmam os pesquisadores na Nature.
De acordo com as fontes levantadas pelo trabalho, o garimpo – ou mineração artesanal ou de pequeno porte, na definição dos cientistas – está presente em pelo menos 70 países. “Essa forma de mineração é frequentemente informal ou ilegal e responde por aproximadamente 20% da produção mundial de ouro”, destaca o estudo.
Na Amazônia peruana, onde o estudo foi realizado, a extensão da atividade garimpeira aumentou mais de 40% em áreas protegidas desde 2012 e ainda mais em áreas desprotegidas. No Brasil, autoridades calculam existirem no ao menos 2.500 garimpos ilegais: terras indígenas – como a Yanomâmi, em Roraima, e Munduruku, no Pará – estão tomadas por garimpeiros. E os indígenas são os primeiros a constatar os danos à saúde provocados pelo uso do mercúrio para extração do ouro.
No comunicado da Duke, as pesquisadoras à frente do estudo admitem a complexidade do problema. “Uma coisa muito semelhante, com métodos muito semelhantes, já foi feito em muitos dos países ricos do mundo onde o ouro estava disponível. A demanda está apenas empurrando a mineração para novas áreas”, afirma Emily Bernhardt, lembrando que este tipo de mineração faz parte da subsistência de muitos moradores da região.
Para Jacqueline Gerson, as pessoas estão no garimpo por um motivo, como meio de ganhar a vida, e soluções devem levar isso em consideração. “O objetivo do nosso estudo é destacar que os problemas são muito mais vastos do que a poluição da água e que precisamos trabalhar com as comunidades locais para encontrar maneiras de os mineradores terem um meio de vida sustentável e proteger as comunidades indígenas de serem envenenadas pelo ar e pela água”, frisa a pesquisadora.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Está de volta ao Rio após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. É criador da página no Facebook #RioéRua, onde publica crônicas sobre suas andanças pela cidade.