A desigualdade ambiental atinge os despossuídos na expropriação de seus ambientes e nas condições de precariedade que caracterizam sua localização nas cidades
Henri Acselrad, A terra é redonda, 28 de dezembro de 2020
A noção de justiça ambiental surgiu, nos anos 1980, como uma categoria de denúncia vocalizada pelo movimento negro norte-americano. Ela punha em questão a distribuição desigual dos benefícios e males da produção de mercadorias: os benefícios ficam para os brancos de alta e média renda, enquanto os resíduos poluentes são destinados a áreas habitadas por comunidades negras e pobres. Ao observar a regularidade pela qual caminhões transportavam lixo tóxico para depositá-lo em bairros habitados por comunidades negras, o movimento levantou a hipótese de que poderia se tratar de uma prática discriminatória – fruto da convergência de decisões que configuram a desigualdade racial. Foi, assim, elaborado, com o apoio da universidade, pela primeira vez, no ano de 1987, um mapa da distribuição – que se revelou desigual e discriminatória – dos resíduos da indústria química e petroquímica nos EUA[i]. Comprovou-se a desigualdade ambiental e foram reivindicadas medidas que levassem a uma situação justa. Assim surgiu a noção de justiça ambiental como uma categoria de luta, apoiada na percepção da vigência dos indicadores observáveis de uma das formas de desigualdade. Ou seja, um tipo de desigualdade empiricamente verificável, expresso em índices quantitativos aplicados à distribuição espacial dos danos ambientais. Foi essa constatação que permitiu abrir novos debates sobre o justo e o injusto, objetos permanentes de discussão, conforme os contextos históricos, políticos e culturais, a partir de então, aplicáveis também às dimensões ambientais da vida social.
Em sua origem, a noção foi aplicada a processos socioespaciais situados a jusante da produção de mercadorias – ao final dos processos produtivos; ou seja, à localização espacial dos objetos não vendáveis da produção de mercadorias – resíduos, efluentes e emissões gasosas. Conforme exposto pelos diversos mapas de desigualdade ambiental até aqui realizados, esses materiais perigosos são dispostos, correntemente, nas proximidades das áreas habitadas por grupos sociais mais despossuídos. Mas há também situações de despossessão ambiental que se configuram a montante dos processos de produção de mercadorias – ou seja, nas fases de ocupação do espaço e de extração de materiais que antecedem os processos de transformação industrial. No caso dos indígenas brasileiros, por exemplo, os agravos ambientais provêm mais fortemente da invasão de suas terras pelo agronegócio, pela grilagem, pela grande mineração, por madeireiros e garimpeiros: esses povos são, por estes mecanismos, despossuídos de seus ambientes – das águas e das matas que requerem para sua reprodução biológica e cultural. Há índios, porém, que vivem em cidades, assim como índios que fazem um movimento pendular entre as cidades e as aldeias. Eles tendem, portanto, a estar expostos, ao mesmo tempo, aos dois tipos de processo – o da degradação de suas condições habitacionais nas cidades, vivendo em áreas urbanas desvalorizadas e precarizadas e o da intrusão e espoliação das terras em suas aldeias.
A desigualdade ambiental, nos EUA começou sendo comprovada como resultado de – processos imediatamente sociais e políticos – decisões de localização de resíduos indesejáveis da produção capitalista, micro decisões inigualitárias subjacentes ao funcionamento do mercado de terras e à segregação socioespacial e racial dos espaços de moradia. Em seguida, notadamente após a repercussão que teve o furacão Katrina em 2005, verificou-se que os chamados desastres naturais também atingem mais que proporcionalmente negros e pobres – acesso desigual à informação sobre os riscos, proteção prioritária dos diques de bairros de alta renda, defesa civil ausente por estar envolvida na guerra do Iraque. Agora, vemos que a pandemia – um fenômeno biológico e sanitário – também atinge mais que proporcionalmente, e com maior letalidade, negros e indígenas. Ambos os grupos têm menor acesso aos serviços de saúde de qualidade, entre outros fatores de vulnerabilização. Os indígenas, em particular, são tornados mais vulneráveis dadas as condições imunitárias que lhes são próprias: têm as defesas sólidas para lidar com a microbiologia da floresta, mas são pouco aparelhados para lidar com o ambiente microbiológico da sociedade envolvente, dos brancos. Esta inadequação se manifesta com força particular quando ocorre a ocupação ilegal de seus territórios, que faz lá chegar o vírus de forma descontrolada. A desigualdade ambiental atinge os indígenas, portanto, nas duas pontas, nas cidades e nas aldeias; na expropriação de seus ambientes e nas condições de precariedade que caracterizam sua localização nas cidades.
A esta situação estrutural, acresce-se, como temos visto, a pauta anti-ambientalista do atual governo, que vem juntar-se ao racismo historicamente constituído, configurando um anti-ambientalismo racializado que retoma a ideologia colonial, abrasileirando a discriminação que há tempos é denunciada por movimentos dos direitos civis norte-americanos. Lá, o racismo é denunciado pelo fato de autoridades e empresas penalizarem as comunidades negras de baixa renda, decidindo localizar, em suas áreas de residência, os resíduos danosos da acumulação de riqueza. Aqui, ao lado desta mesma prática, vemos o racismo se expressar também pela recriminação de quilombolas e povos indígenas por ocuparem espaços ambientalmente preservados que estão sendo requeridos pelo agronegócio e pela mineração para expandir seus lucros, de forma extensiva e pouco produtiva, dadas as grandes extensões das terras privatizadas de que já dispõem. Este antiambientalismo racializado é, pois, uma manifestação do racismo estrutural que saiu dos bastidores e ganhou espaços de visibilidade na esfera política formal, com a adoção explícita, a partir da campanha eleitoral de 2018, de propósitos e decisões discriminatórias em relação a negros e indígenas.
Ao se verificar uma condição de desigualdade ambiental atingindo de forma mais que proporcional a população não-branca, vem ganhando crescente visibilidade a noção de racismo ambiental, evocada em dois níveis – ao nível da observação empírica e ao nível da percepção e expressão dos próprios sujeitos sociais. No caso dos EUA, foi da interface entre o insight do movimento negro e a comprovação empírica do mapa elaborado pelo sociólogo Robert Bullard que o debate aflorou. No caso brasileiro, no plano empírico, vêm crescendo as evidências da convergência entre as práticas associadas ao racismo estrutural e aquelas que produzem desigualdades ambientais – notadamente quando se observam dados sobre assentamentos urbanos precários, ausência de saneamento básico e populações vivendo sob risco de desastres. São conhecidos os vários mecanismos através dos quais, a partir da abolição da escravidão, as populações negras foram discriminadas – excluídas do acesso à terra, à educação e aos direitos. Este conjunto de atos discriminatórios convergiu de modo a que cidadãos não-brancos, descendentes de escravos e indígenas viessem a habitar áreas menos valorizadas pelo mercado imobiliário, onde se sobrepõem carências de saneamento, de qualidade do ar, de áreas verdes, situadas às proximidades de fontes de risco como linhas de transmissão, oleodutos, barragens de rejeitos etc. O caso do rompimento da barragem da Samarco em Mariana em 2015, por exemplo, mostrou que nos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, os mais imediatamente atingidos, mais de 80% da população local, segundo o censo de 2010, se autodeclaravam negros e pardos, quando no estado de Minas Gerais como um todo, 56% o fizeram[ii]. Para dar sustentação estatística aos resultados de práticas discriminatórias de ordem racial, pressupõe-se, preliminarmente, que o Estado acolha as pressões sociais por sistemas classificatórios que produzam equivalência entre indivíduos distintos passíveis de serem reunidos segundo uma mesma condição de exposição ao racismo. O artigo de Gabriele dos Anjos sobre cor e raça nos censos mostra como a codificação e as formas de coleta dessas informações depende do contexto político e da história das relações raciais no país[iii].
No Brasil, por exemplo, os dados sobre a cor dos atingidos pelo COVID custaram a ser registrados. A Coalizão Negra por Direitos, associações científicas e defensorias públicas insistiram, junto ao Estado, para que tais registros fossem feitos. No mês de junho de 2020, os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde passaram a divulgá-los, como já o faziam algumas unidades da federação. As hipóteses começaram a se confirmar. Em meados de junho, o IBGE anunciou que a taxa de letalidade se mostrava maior entre os negros atingidos por covid-19 do que entre os brancos; que desigualdades de renda e cor fazem com que pessoas negras e grupos de baixa renda sejam atingidos pela epidemia em percentuais maiores do que sua participação no conjunto da população. Essa experiência nos mostra os mecanismos pelos quais a construção social das questões raciais pode se refletir na máquina pública.
Por outro lado, na experiência da convergência entre desigualdade ambiental e racismo, foram se criando as condições subjetivas pelas quais os próprios atores sociais percebem a vigência da condição discriminatória enquanto tal. O Movimento de Justiça Ambiental dos EUA nasceu de um processo de “ambientalização” do movimento negro. A questão ambiental, que antes parecia, para seus membros, uma reivindicação própria da classe média branca conservacionista, mostrou-se, a partir da elaboração do mapa da desigualdade ambiental, uma questão de vida ou morte. Foi então criado um repertório de expressões e noções mobilizatórias, tais como racismo ambiental, colonialismo tóxico, zona de sacrifício etc. Uma comissão de representantes de organizações de base dos EUA veio ao Brasil em 1998 para se articular com o movimento negro brasileiro com vistas a evitar a exportação das injustiças ambientais dos EUA para cá. A “ambientalização” do movimento negro no Brasil veio se dando a seu ritmo próprio, fazendo com que algumas entidades começassem, a partir dos anos 2000, a evocar a categoria racismo ambiental para designar o impacto mais que proporcional dos males ambientais sobre comunidades negras e indígenas e a aplicação pouco rigorosa das regulações ambientais governamentais na proteção destas mesmas comunidades[iv].
Por ocasião do I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em Niterói, no ano de 2005[v], tanto o debate como a aplicação desta noção incorporaram comunidades indígenas e abrangeram uma gama ampla de males ambientais, diferentemente de seu uso corrente nos EUA, que é mais estritamente focado na questão da localização de depósitos de lixo tóxico. A desfaçatez da presença de discursos e práticas racistas nas esferas do poder, assim como os esforços governamentais no sentido de estimular práticas ambientalmente predatórias – que penalizam mais que proporcionalmente negros e indígenas – estão justificando as tendências a uma crescente articulação entre as mobilizações antirracistas e de denúncia do anti-ambientalismo governamental brasileiro.
Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Notas
[i] Em entrevista concedida à antropóloga Cecília Mello em setembro de 2001, Robert Bullard, sociólogo ligado ao movimento de justiça ambiental dos EUA, assim descreveu esse processo: “Quando as pessoas começaram a olhar em volta – isso em 1978, quando eu vivia em Houston, Texas – conseguiram ver onde os aterros sanitários eram localizados, onde incineradores eram alocados. Assim, descobrimos que essas coisas só eram alocadas em bairros pobres e de maioria afro-americana. Não só a terra era mal distribuída, como era distribuída seguindo um padrão muito previsível. E foi assim que a ideia de discriminação ambiental começou a surgir. Discriminar é contra a lei. Portanto, falamos que a discriminação ambiental e o racismo ambiental são ilegais e devem ser vistos como outras formas de discriminação”. Boletim Políticas Ambientais, IBASE, Rio de Janeiro, 2001.
[ii] Bruno Milanez, Luiz Jardim Wanderley e Tatiana Ribeiro, O que não se aprendeu com a tragédia no Rio Doce, SITRAEMG, Belo Horizonte, 9/8/2017, http://www.sitraemg.org.br/post_type_artigo/o-que-nao-se-aprendeu-com-tragedia-no-rio-doce/
[iii] Gabriele dos Anjos, A questão “cor” ou “raça” nos censos nacionais, Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 103-118, 2013
[iv] Robert D. Bullard (ed) Confronting Environmental Racism: Voices from the Grassroots. Boston: South End Press, 1983.
[v] S. Herculano, T, Pacheco (orgs.) Racismo Ambiental – I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, BSD/FASE; LACTTA/UFF, 2006