O desmatamento avança na Amazônia e as estatais petroleiras, que poderiam liderar uma transição energética, restringem-se à produção fóssil. Futuro requererá política ambiental robusta e apostar em novas tecnologias sustentáveis.
Ricardo Abramovay, Outras palavras, 14 de maio de 2021
Afirmar que a vitória sobre a crise climática depende de vontade política e de coragem para enfrentar poderosos interesses é exprimir apenas meia verdade. Não há dúvida, como mostra o consagrado livro de Naomi Oreskes e Erik Conway, Merchants of Doubt (Bloomsbury Publishing PLC ), que os gigantes fósseis não pouparam dinheiro no financiamento do negacionismo climático, mesmo quando seus relatórios internos apontavam no sentido contrário ao que divulgavam ao grande público.
É inegável também que as inovações tecnológicas em energias renováveis modernas (entre as quais os especialistas não incluem a hidroeletricidade) vêm permitindo espetacular aumento da oferta e redução de preços das alternativas aos fósseis. E tanto os movimentos sociais (do Extinction Rebellion à mobilização de jovens da qual Greta Thumberg é a expressão emblemática) quanto segmentos expressivos do mundo dos negócios estão pressionando governos e organizações multilaterais para que aprofundem seus compromissos de reduzir drasticamente as emissões. A volta dos EUA ao Acordo de Paris, a adoção do Green New Deal (que era, ao início de 2019, uma proposta da esquerda do Partido Democrata), o Green Deal Europeu, o compromisso do Japão e da Índia de interromper a produção de automóveis com motor a combustão interna até 2030 e a liderança chinesa em solar e eólica são também fundamentais.
Mas seria um equívoco imaginar que esta convergência tão poderosa (e da qual a América Latina está quase inteiramente na contracorrente) garante que a conquista das ambiciosas metas do Acordo de Paris esteja assegurada. Da mesma forma, não é correto imaginar que as bases materiais e socioculturais para as transformações necessárias a uma economia descarbonizada já estejam presentes.
Embora o alerta do recém-lançado livro de Michal Mann – The new climate war (PublicAffairs) – contra o catastrofismo climático faça todo sentido, ele mesmo postula que “é apropriado criticar os que subestimam a ameaça”. O Acordo de Paris é uma conquista fundamental, bem como a adoção por parte da maior parte dos grandes emissores globais, de compromissos ambiciosos. Mas alcançar os objetivos desenhados nos planos que serão levados para a próxima conferência climática (a COP 26, a ser realizada em Glasgow, na Escócia, ao final deste ano) não será nada fácil e a magnitude não só dos investimentos, mas das transformações sociais e da vida cotidiana necessárias para atingir estas metas não pode ser subestimada.
Ao mesmo tempo é importante constatar o abismo entre os caminhos mais construtivos que emergem globalmente na difícil e incerta luta contra a crise climática e a verdadeira complacência da América Latina (não só hoje, mas também, em grande medida, durante a primeira década do século XXI, quando predominavam na região governos progressistas) com relação a este que é o maior desafio coletivo já enfrentado pela espécie humana.
De Copenhague a Paris
O Acordo de Paris de 2015 ocorre apenas seis anos após a frustrada conferência climática de Copenhague, quando Índia e China argumentavam que optar pela rápida descarbonização de suas economias significava impedir o amplo acesso de suas populações à energia elétrica, obtida basicamente a partir do carvão. Os dois países à época enfatizavam seu direito a emitir gases de efeito estufa e, assim, a ocupar o “espaço carbono” remanescente até que a meta de dois graus na elevação da temperatura global média fosse atingida. E este direito apoiava-se na constatação de que eles ainda dependiam do carvão e que não havia fontes alternativas capazes de competir com este combustível para ampliar o acesso de suas populações à energia elétrica. É interessante examinar hoje os argumentos dos pesquisadores indianos e chineses nesta direção.
Em 2015 o cenário era outro e China e Índia exerceram importante papel de liderança no Acordo de Paris. Mas apesar deste acordo para a descarbonização vindo dos maiores emissores globais, é importante mencionar dois obstáculos (evidentemente não intransponíveis) para que as ambiciosas metas a serem consolidadas em Glasgow sejam alcançadas.
A duradoura liderança dos fósseis
Quando foi realizada a primeira Conferência Climática das Nações Unidas em Berlim, em 1995 (agora em Glasgow, acontecerá a 26ª), os combustíveis fósseis contribuíam com nada menos que 86% do consumo global de energia primária. Desde então, apesar das inovações que permitiram baratear e ampliar o acesso às renováveis modernas e do início da eletrificação do transporte individual, esta proporção só caiu dois pontos percentuais, como mostra o importante artigo de Helen Thompson.
É verdade, como previam vários analistas desde os anos 1950, que as formas convencionais de extração de petróleo atingiram agora seu pico e que os poços até aqui mais férteis mostram inequívocos sinais de esgotamento. Este esgotamento foi mais que compensado, porém pela descoberta, ao início do século XXI de novas técnicas de exploração de gás e de petróleo, que revolucionaram a geopolítica global da energia e por meio das quais os Estados Unidos conquistaram sua tão almejada independência energética, tornando-se, ao lado da Rússia e da Arábia Saudita num dos maiores exportadores mundiais de combustíveis fósseis. Trata-se do “fracking” (fraturamento hidráulico), técnica de perfuração profunda do solo, pela inserção de tubos que atravessam o lençol freático e conseguem extrair hidrocarbonetos das rochas. Os protestos que a poluição e as emissões associadas a estas técnicas suscitaram não foram suficientes para sequer atenuar o entusiasmo do próprio governo Obama com seu sucesso.
O petróleo obtido por meio destas novas técnicas espalha-se por quase todo o território norte-americano e sua exploração ganha imensa legitimidade social por representar a conquista de uma ambição histórica norte-americana decisiva, que é sua independência energética. A análise do recente livro de Daniel Yergin – The new map (Penguin Press) – é muito importante. Ele mostra que foi fundamentalmente o gás obtido com estas novas técnicas que permitiu aos Estados Unidos reduzirem sua dependência do carvão que, em 2007, respondia por metade da geração de energia elétrica do país, caindo, em 2019, para 24%. Este, segundo Yergin, foi o principal determinante do declínio nas emissões norte-americanas de gases de efeito estufa, apesar de seu crescimento econômico vigoroso. Em outras palavras, o sucesso dos EUA em reduzir suas emissões ainda se deve, basicamente, ao avanço de novas modalidades de combustíveis fósseis, muito mais que a avanços na presença das renováveis modernas em sua matriz energética e de transportes.
Há outros dois fatores que tornam a situação ainda mais preocupante. O primeiro é o escasso investimento das empresas petrolíferas em energias renováveis modernas. Segundo a Agência Internacional de Energia, nada menos que 99% dos investimentos das empresas petrolíferas são feitas em carteiras que correspondem a suas atividades econômicas predominantes. E estes investimentos em fósseis são hoje duas vezes superiores ao cenário que a Agência Internacional de Energia chama de “desenvolvimento sustentável”. Enquanto as empresas petrolíferas pretendem investir anualmente US$ 630 bilhões anuais no período 2021/25, ampliando este total para quase US$ 800 bilhões entre 2036 e 2040, o cenário de “desenvolvimento sustentável” consistiria em partir de investimentos pouco superiores a US$ 500 bilhões entre 2021 e 2025 reduzindo este montante para pouco mais de US$ 350 bilhões entre 2036 e 2040. E é importante notar que esta insistência nos fósseis é maior nas empresas petrolíferas estatais do que nas companhias privadas.
Para os Estados Unidos, aí se encontra um sério problema geopolítico. Reduzir a dependência de combustíveis fósseis na produção de energia, nos EUA, significa recorrer às renováveis modernas. Ora, o domínio global das tecnologias e dos materiais envolvidos na produção de energia solar pertence à China. E é claro que os sérios compromissos climáticos do governo Biden não podem levar a que se amplie a dependência norte-americana, num setor tão estratégico quanto a energia, da China.
O segundo fator que se opõe a uma rápida transição energética nos transportes individuais está sintetizado num importante relatório produzido por respeitados pesquisadores da Universidade de Princeton. Zerar as emissões líquidas de carbono (ou seja, emissões, menos a absorção pelos oceanos, pelas florestas e por técnicas de geoengenharia, que serão abordadas logo abaixo) exige mudanças tecnológicas e de infraestrutura que supõem investimentos gigantescos. A vantagem deste horizonte é que estes investimentos poderão dar lugar à criação de empregos de qualidade e nortear o conjunto das economias em que eles serão realizados para uma trajetória tecnológica com alto teor de inovação.
Mas a adoção destas tecnologias nada tem de trivial. As metas estabelecidas para 2050 supõem a entrada no mercado norte-americano de automóveis individuais de nada menos que cinquenta milhões de carros elétricos e de mais de três milhões de estações de recarga de eletricidade nos próximos dez anos. Nos domicílios e nos escritórios, a adoção de técnicas de “heat pumps” vai exigir modificações de grande alcance. A energia eólica e a solar que hoje respondem por 10% da oferta norte-americana de energia elétrica terá que chegar, nos próximos dez anos, a 50%. Além disso, algumas tecnologias fundamentais, como a de armazenagem de energia, encontram-se em sua infância.
Na Europa, Helen Thompson mostra que a Polônia está isenta dos compromissos assumidos no Green Deal, em função de sua alta dependência do carvão. A China, ao mesmo tempo em que ocupa a liderança global nas tecnologias solares e eólicas segue não só instalando novas usinas a carvão, como também apoiando usinas a carvão em sua Belt and Road initiative.
A transição que tornou a humanidade cada vez menos dependente de energia vinda da queima de produtos como madeira, esterco ou carvão natural para os fósseis (e, sobretudo, para o petróleo, a partir dos anos 1950) significou o encontro de fontes com alta concentração de energia e com imensa eficiência energética em sua obtenção. Uma colher de petróleo corresponde à energia contida em oito horas de trabalho humano. Agora, o desafio é que se trata de transitar para fontes dispersas e com baixa concentração de energia. Aumentar a eficiência destas fontes é algo em que a pesquisa científica está avançando, mas cujos resultados ainda precisam se consolidar em novas tecnologias. O mesmo pode ser dito da questão da necessária armazenagem de energia, diante da intermitência das fontes derivadas de renováveis.
O segundo obstáculo a ser superado na difícil luta contra a crise climática contemporânea está no fato de que os gases de efeito estufa hoje já acumulados na atmosfera continuarão a exercer efeitos negativos sobre o sistema climático, mesmo que as ambiciosas metas de redução das emissões sejam alcançadas. O problema aí é que as técnicas hoje oferecidas para neutralizar este fator envolvem riscos imensos para os quais inexiste governança global. Lançar partículas de sulfato na atmosfera, solidificar gás carbônico enterrando gigantescas pedras (onde?) são operações que despertam, com razão, imensa desconfiança. Não há indício que se vá chegar num prazo razoável a soluções que passem pelo exercício do multilateralismo para enfrentar este desafio.
E a América Latina?
A América Latina não é protagonista nem tampouco tem papel estratégico na discussão sobre a transição energética. É verdade que, no caso do Brasil, o etanol representa um avanço científico e tecnológico importante. Mas este avanço representa algo globalmente menor, diante do movimento mais geral em direção à eletrificação da mobilidade no mundo.
Além de estar fora das mudanças estruturais que vão acompanhar este esforço de transição energética, a América Latina está sob um duplo risco. O primeiro está na retomada do desmatamento, sobretudo no Brasil. Enquanto a luta contra a crise climática, no mundo, passa por pesquisa científica e transformações tecnológicas que alteram os modelos de produção, de consumo e os modos de vida, os nove países da Amazônia continuam avançando na destruição florestal e colocando o mundo todo sob a ameaça de que o imenso esforço de mudança na economia global seja inútil em virtude da destruição da maior floresta tropical do mundo. O Brasil é o único país do mundo em que as emissões de gases de efeito estufa aumentaram durante a pandemia, justamente por causa do desmatamento. O contraste entre o esforço global de transformação das bases materiais e energéticas da vida econômica e a cumplicidade do governo federal brasileiro com o desmatamento tem repercussão geopolítica fundamental para a relação da América Latina com o restante do mundo.
O segundo risco é a insistência (dos governos e das empresas petrolíferas) do Continente (cujas mais importantes são estatais) em persistir na exploração de produtos fósseis, sob o pretexto de que a demanda por estes produtos não vai declinar nos próximos anos. Prosseguir neste caminho, em sociedades que não estão se preparando para as inovações que vão marcar o esforço do século XXI na luta contra a crise climática, é condenar-se à retaguarda da inovação científica e tecnológica global. Se a América Latina continuar nesta trajetória, ela só aumentará a distância que hoje a separa do desenvolvimento sustentável.
É um horizonte preocupante, já que mesmo governos progressistas que haviam se comprometido com “deixar o petróleo no chão” (a frustrada “Yasunização” no Equador é talvez o exemplo mais emblemático deste movimento), acabaram não cumprindo suas promessas. E nada indica que a renda obtida com o petróleo esteja sob a perspectiva de fortalecer projetos que permitam às empresas fósseis latino-americanas se converterem em companhias com forte presença em renováveis modernas e, por aí, contribuir para que suas sociedades se aproximem das mais construtivas ambições da economia do século XXI.