Publicado na Revista SeLecT em 22 de maio de 2020
O setor cultural no Brasil já vinha passando por sérias dificuldades antes da pandemia da Covid-19: a redução do papel do Estado, uma progressiva diminuição de investimento público direto em cultura, o acirramento das disputas ideológicas acerca da Lei Federal de Incentivo à Cultura, recorrentes episódios de cerceamento e censura compunham um cenário já bastante adverso, que apontava para a necessidade do setor de buscar novos modelos de financiamento de suas atividades e conquistar maior autonomia em relação a leis de incentivo e investimentos públicos diretos e indiretos, desafio de elevado grau de dificuldade, num contexto macroeconômico também bastante desfavorável.
Com o advento da pandemia, passamos de um cenário adverso para o risco iminente de um colapso de vários segmentos que compõem o setor cultural e criativo, o que torna urgente e indispensável a intervenção do Estado. Estamos falando de um universo de 5,2 milhões de trabalhadores (5,7% da força de trabalho do país) e de cerca de 325 mil organizações em 2018, segundo o IBGE. Sem a adoção de medidas econômicas e regulatórias emergenciais robustas por parte do Estado, é muito provável que milhares de profissionais, empresas e organizações culturais, de diferentes portes, que atuam em todas as etapas e elos da cadeia produtiva da cultura – criação, produção, difusão/distribuição e fruição/consumo, não só sejam gravemente afetados pela pandemia, mas que não logrem atravessar a crise e dar continuidade a suas atividades depois dela.
Infelizmente, no Brasil, a relevância da cultura, em sua dimensão simbólica e econômica, não tem sido devidamente reconhecida do ponto de vista das políticas públicas, se considerarmos os investimentos públicos no setor nos últimos anos. Os esforços de gestores culturais, públicos e privados, em demonstrar, por meio de dados econômicos, e em alinhamento ao discurso neoliberal vigente, que a cultura gera emprego e renda, que contribui significativamente para o PIB, e que portanto deveria ser objeto de mais investimentos, têm se provado absolutamente inócuos, sobretudo na esfera federal. Talvez seja o momento de se rever tal estratégia.
O fato é que a tendência de redução dos investimentos públicos em cultura vem sendo observada há cerca de uma década. De acordo com o Sistema de Informações e Indicadores Culturais do IBGE 2007-2018, publicado em dezembro de 2019, a participação do setor cultural no total de gastos públicos caiu de 0,28% em 2011, para 0,21% em 2018, queda observada na esfera federal, estadual e municipal. Em termos percentuais, os municípios são os que mais investem em cultura, seguido dos Estados e por fim da União. Importante destacar que a maior fatia de investimentos era direcionada para a difusão cultural, compreendendo atividades que hoje estão inviabilizadas pelas mediadas de isolamento social.
No atual contexto, o valor simbólico da cultura, sua importância para a sociedade e para a saúde mental das pessoas em meio à pandemia, deveria ficar ainda mais evidente, e ser suficiente para assegurar ao setor prioridade na agenda das políticas públicas, fazendo com que os investimentos aumentassem, mas isso é muito pouco provável. O impacto da pandemia na economia tem como uma de suas consequências a redução da arrecadação de impostos, e medidas de contingenciamento muito provavelmente atingirão os orçamentos da cultura, frequentemente tidos como não prioritários – a exemplo do que acaba de ser feito pelo governo do Estado de São Paulo, onde a Secretaria de Cultura e Economia Criativa sofreu um corte de quase 8% em seu orçamento de 2020, que era de 876,5 milhões, levando a reduções salariais e eventualmente demissões, afetando instituições e corpos artísticos estaduais.
Os impactos da crise
Quando os recursos são limitados e o contexto exige respostas rápidas e certeiras, dados e pesquisas se tornam valiosas ferramentas para a formulação de políticas públicas. A extensão do impacto econômico da Covid-19 no setor cultural ainda é difícil de mensurar. As primeiras pesquisas começaram a ser publicadas em meados de abril, e trazem informações que poderiam subsidiar a formulação de medidas e a tomada de decisões por parte de agentes públicos.
A seLecT realizou uma breve pesquisa sobre as condições de trabalho e o impacto gerado pela pandemia para os trabalhadores da arte, no período de 17 a 26 de abril, e publicou os resultados em 29 de abril. O Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC) tem uma pesquisa em andamento desde o final de março, e a partir de 15 de abril passou a publicar quinzenalmente um boletim com resultados parciais sobre os impactos da pandemia para indivíduos e organizações atuantes nos setores artísticos, culturais e criativos, incluindo valiosas informações qualitativas. Cada pesquisa havia alcançado, até a finalização deste texto, quase 500 respondentes pessoa física, que somados perfazem um universo de cerca de 1000 pessoas, o que corresponde a cerca de 0,02% do universo de trabalhadores da cultura, abrangendo também, no caso do OBEC, 350 organizações culturais, que correspondem a 0,1% desse universo, tendo como referência os números do IBGE. Ainda que pareça uma amostra pequena, os dados coletados trazem informações pertinentes sobre o perfil dos trabalhadores e os efeitos da crise para o setor.
Ambas convergem em apontar que mais de 50% dos profissionais mapeados têm renda inferior a 3 salários mínimos, alto grau de informalidade e dependem majoritariamente das atividades exercidas no setor cultural para sobreviver. A pesquisa da SeLect aponta que 16,7% dos respondentes foram demitidos ou tiveram salários reduzidos. A pesquisa do OBEC aponta que 15% das organizações já realizaram demissões, percentual que tende a aumentar, e que 81% dos indivíduos e 67% das organizações teriam recursos para se manter 3 meses no máximo, com as atividades suspensas. Uma grande parte informa que não sabe como se organizar para enfrentar a crise e que necessitariam de auxílio para o desenvolvimento de estratégias digitais.
Esses dados evidenciam a alta vulnerabilidade dos trabalhadores da cultura e também das organizações culturais, tanto em termos financeiros quanto de gestão, o que enseja medidas urgentes e assertivas por parte das três esferas do Poder Público. No entanto, passados dois meses do início do isolamento social, a capacidade de resposta dos agentes públicos tem ficado muito aquém do que o cenário emergencial impõe, e isso não se refere apenas ao volume de recursos direcionados para ações de enfrentamento do impacto da crise sobre o setor, mas também ao tempo das respostas e aos tipos de medidas adotadas, por vezes descoladas das reais necessidades e características do setor cultural.
Nenhuma medida relevante foi tomada pela da Secretaria Especial de Cultura, e não caberia aqui discutir o desmantelamento das instituições e políticas culturais no plano federal. Vale entretanto mencionar a atuação destoante do IBRAM, órgão altamente especializado e que dispõe de quadros técnicos muito preparados, que até o momento aparentemente escapou ao grande desmonte e que tem logrado um protagonismo nos debates e ações da área museal em face da pandemia. No mais, o que se observa é uma absoluta inércia do governo federal, à qual o poder legislativo tenta se contrapor, por meio de projetos de lei que atualmente tramitam em casas legislativas estaduais e no congresso federal, e propõem ações emergenciais destinadas ao setor cultural, como o Projeto de Lei 1075/2020, de autoria da Deputada Benedita da Silva, que versa sobre prorrogação de prazos para realização e prestação de contas de projetos culturais já aprovados, moratória de débitos tributários, vedação do corte de energia, água e serviços de telecomunicações, fomento a atividades culturais e complementação mensal de renda aos trabalhadores informais e prestadores de serviço do setor cultural. O escopo do PL foi alterado para contemplar também instituições culturais e a previsão de repasse dos recursos do Fundo Nacional de Cultura para Estados e Municípios, e a ele foram apensados outros projetos de lei em favor do setor cultural. Embora tramite em regime de urgência, não há previsão para sua votação, e considerada a composição das casas legislativas, tampouco podemos apostar na sua aprovação.
Iniciativas estaduais andam em paralelo, algumas com maior agilidade e sucesso, como o PL 1.801/2020, sobre o benefício emergencial aos trabalhadores ligados à arte, aprovado pelos deputados estaduais mineiros em 14 de maio, prevendo a concessão de um auxílio, no valor de 50% do salário mínimo — atualmente fixado em R$ 1.045 —, aos profissionais vinculados a micro e pequenas empresas do setor cultural, mensalmente enquanto forem sentidos os efeitos do estado de emergência decretado em função da pandemia, restando agora a sanção do Governador para entrar em vigência. No Estado de São Paulo, o PL 253/2020 propõe um auxílio emergencial de um salário mínimo estadual (R$ 1.163,55) para trabalhadoras(es) e R$ 3.500,00 para os espaços culturais, tendo como diferencial o apoio a espaços culturais, amplamente esquecidos pelas medidas emergenciais que vem sendo adotadas.
É nas esferas estadual e municipal que se concentram as políticas públicas em favor do setor cultural em contexto de pandemia. Entre elas, destacam-se as ajudas emergenciais aos profissionais da cultura, fomento à produção com ênfase em conteúdos digitais, ações de promoção e divulgação de conteúdos culturais em plataformas digitais e ofertas de crédito. A título de exemplo, cabe mencionar o auxílio emergencial aos artistas em situação de vulnerabilidade oferecido pela Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, no valor de R$ 200 reais, sem contrapartida, para 5 mil trabalhadores, o Festival Te Aquieta em Casa, da Secretaria Estadual de Cultura do Pará, que, ainda no mês de março, contemplou com R$ 1.500, 120 propostas de conteúdos culturais em formato digital nas áreas de artesanato, música, dança, teatro, contação de histórias, artes visuais e expressões culturais populares, afro-brasileiras, indígenas e oriundas de comunidades tradicionais (replicando no mês seguinte mais duas etapas de premiação aumentando o número total de contemplados para 380 artistas), ou ainda o edital e-vivências, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que remunera em R$ 700 apresentações online e prioriza profissionais de baixa renda residentes em bairros com alto índice de vulnerabilidade, entre muitos outros. (um esforço de compilação de editais públicos e privados voltados ao enfrentamento da crise no setor cultural pode ser acessado aqui). Todas as iniciativas, mesmo as mais modestas, são muito importantes, mas não suficientes. O que é preciso é a ampliação e convergência de investimentos emergenciais diretos voltados a profissionais e organizações culturais, medidas regulatórias e outras modalidades de crédito.
Chama a atenção, contudo, que as medidas de maior vulto anunciadas até o momento, em resposta ao impacto da pandemia sobre o setor cultural, são as ofertas de crédito a juros menores que os de mercado, anunciadas pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, onde o volume maior de recursos é destinado a empresas de maior porte. Foram disponibilizados R$ 275 milhões via a agência Desenvolve SP para uma linha de crédito exclusiva para empresas paulistas dos setores de cultura e economia criativa, comércio e turismo que tenham faturamento anual entre R$ 81 mil e R$ 90 milhões, com taxa de 1,2%, carência de 12 meses e pagamento em até 60 meses.
Para os pequenos empreendedores da cultura, foram disponibilizados R$ 25 milhões via Banco do Povo. Essa linha de crédito oferece de R$ 200,00 a R$ 20 mil, com juros de 0,35% ao mês, carência de 90 dias e até 36 meses para pagamento, sendo o limite para quem não tem garantias ou avalista é de R$ 3 mil.
A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, em parceria com o Banco de Brasília (BRB), também disponibilizou 3 linhas de crédito para o setor cultural: o Acreditar é um produto de microcrédito orientado que atende de R$ 350,00 a R$ 15 mil, e é destinado para pessoas físicas ou jurídicas com faturamento anual de até R$ 200 mil, as taxas de juros são a partir de 1,85% ao mês; o Progiro oferece taxas de juros a partir de 0,80% ao mês, com prazo de 36 meses para pagamento e seis meses de carência; e o BRB Investimento, com prazo de 60 meses para pagamento, até 12 meses de carência e taxas de juros a partir de 0,92% ao mês. As duas últimas opções de linha de crédito atendem empresas de diferentes tamanhos.
Cabe lembrar, no entanto, que o setor cultural é composto por uma maioria de profissionais autônomos, trabalhadores informais, microempreendedores individuais, microempresas, associações sem fins lucrativos que dificilmente atendem às exigências de crédito… Eles são muito mais numerosos e vulneráveis, certamente sofrerão mais durante a crise e terão maior dificuldade de recuperação. São eles que devem estar no centro das atenções e das medidas por parte do poder público neste momento.
Tanto a SEC-SP quanto a SECEC-DF afirmam que as linhas de crédito fazem parte de um conjunto de medidas mais abrangentes voltadas ao setor cultural no contexto da pandemia, sendo que o DF já lançou dois editais voltados aos profissionais da cultura, com investimento de R$ 4 milhões, enquanto em SP os editais estaduais estão em preparação. Se em um contexto neoliberal, de redução do papel do Estado, grande ênfase tem sido dada à dimensão econômica da cultura, e por conseguinte, às empresas culturais, a pandemia tem mostrado que determinados setores, bens e serviços, essenciais para a sociedade, não podem ser deixados à mercê do mercado e da iniciativa privada, embora a participação desses também seja importante para o ecossistema da cultura. Talvez seja a hora do setor cultural voltar a reivindicar o valor simbólico da cultura e seu papel fundamental na vida social, o que justificaria plenamente uma maior atenção na agenda das políticas públicas.
O setor cultural por sua vez enfrenta dificuldades em interpelar os agentes públicos, tanto por falta de articulação setorial e capacidade associativa, como pela dificuldade em entender as dinâmicas, identificar quem seriam os interlocutores adequados ou onde estão os entraves para resolução de determinada demanda. É sintomático o dado trazido pelo OBEC-BA, de que apenas 35% dos indivíduos, 37% das organizações tem algum vínculo com associações, sindicatos ou organismos de representação setorial, contrastando com os profissionais do audiovisual, cujo percentual, quando segmentado, sobe para 68%, evidenciando também diferenças estruturais e organizacionais entre os setores culturais. A capacidade associativa e o grau de organização setorial são determinantes para o estabelecimento de diálogo com os tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas, e também para o desenvolvimento de parcerias e ações colaborativas visando a superação dos desafios impostos pela conjuntura de crise.
Não são poucos os desafios que se impõem aos gestores públicos da cultura neste momento, os recursos são limitados e a burocracia inerente aos processos públicos dificulta a rápida implementação de novas ações. Evidente que as medidas que estão sendo adotadas nas esferas municipais e estaduais são positivas, mas ainda estão longe de impedir um colapso, e precisariam ser multiplicadas, sendo que algumas delas não exigem grande disponibilidade orçamentária, como as de natureza regulatória e as relacionadas a informação, capacitação, promoção/difusão, cooperação. Os gestores deveriam também buscar maior agilidade, inovação e atenção às necessidades, demandas e especificidades dos diferentes segmentos da cultura. Um bom exemplo de medidas setoriais específicas e de rápida implementação é o programa elaborado pela SP-Cine, que conta com a participação da sociedade civil, e contempla ações de capacitação, fomento à produção e à difusão e pesquisa, e promete outras medidas em breve, incluindo o auxílio emergencial para os profissionais do setor em situação de maior vulnerabilidade.
Entre as medidas em andamento, acreditamos que devem ser priorizados e ampliados os auxílios emergenciais sem contrapartida para os profissionais da cultura e para organizações culturais; o fomento à criação, produção e difusão de conteúdos culturais em formato digital e não digital; a promoção e expansão da difusão de conteúdos digitais; a revisão/adequação normativa e legal, de forma a estimular o funcionamento e a recuperação do setor.
Outras medidas que até o momento foram pouco adotadas e que poderiam contribuir significativamente no enfrentamento da crise pelo setor cultural dizem respeito à capacitação com foco em gestão, inovação e estratégias digitais; o incentivo à organização setorial, à cooperação vertical (entre agentes de diferentes portes de um mesmo setor) e intersetorial (considerando que alguns setores da cultura têm mais capacidade de enfrentamento desta crise e poderiam contribuir com os que enfrentam maiores dificuldades), e ainda o incentivo à participação da sociedade civil e da iniciativa privada no fomento à cultura.
Por fim, caberia pensar como o setor cultural poderia ser integrado no planejamento e implementação de estratégias de recuperação socioeconômica no contexto pós-pandêmico, atuando conjuntamente com outros setores fundamentais como saúde e educação, trazendo soluções inovadoras, e deixando de representar um problema para passar a ser parte fundamental no processo de recuperação.
O setor cultural no Brasil já vinha passando por sérias dificuldades antes da pandemia da Covid-19: a redução do papel do Estado, uma progressiva diminuição de investimento público direto em cultura, o acirramento das disputas ideológicas acerca da Lei Federal de Incentivo à Cultura, recorrentes episódios de cerceamento e censura compunham um cenário já bastante adverso, que apontava para a necessidade do setor de buscar novos modelos de financiamento de suas atividades e conquistar maior autonomia em relação a leis de incentivo e investimentos públicos diretos e indiretos, desafio de elevado grau de dificuldade, num contexto macroeconômico também bastante desfavorável.
Com o advento da pandemia, passamos de um cenário adverso para o risco iminente de um colapso de vários segmentos que compõem o setor cultural e criativo, o que torna urgente e indispensável a intervenção do Estado. Estamos falando de um universo de 5,2 milhões de trabalhadores (5,7% da força de trabalho do país) e de cerca de 325 mil organizações em 2018, segundo o IBGE. Sem a adoção de medidas econômicas e regulatórias emergenciais robustas por parte do Estado, é muito provável que milhares de profissionais, empresas e organizações culturais, de diferentes portes, que atuam em todas as etapas e elos da cadeia produtiva da cultura – criação, produção, difusão/distribuição e fruição/consumo, não só sejam gravemente afetados pela pandemia, mas que não logrem atravessar a crise e dar continuidade a suas atividades depois dela.
Infelizmente, no Brasil, a relevância da cultura, em sua dimensão simbólica e econômica, não tem sido devidamente reconhecida do ponto de vista das políticas públicas, se considerarmos os investimentos públicos no setor nos últimos anos. Os esforços de gestores culturais, públicos e privados, em demonstrar, por meio de dados econômicos, e em alinhamento ao discurso neoliberal vigente, que a cultura gera emprego e renda, que contribui significativamente para o PIB, e que portanto deveria ser objeto de mais investimentos, têm se provado absolutamente inócuos, sobretudo na esfera federal. Talvez seja o momento de se rever tal estratégia.
O fato é que a tendência de redução dos investimentos públicos em cultura vem sendo observada há cerca de uma década. De acordo com o Sistema de Informações e Indicadores Culturais do IBGE 2007-2018, publicado em dezembro de 2019, a participação do setor cultural no total de gastos públicos caiu de 0,28% em 2011, para 0,21% em 2018, queda observada na esfera federal, estadual e municipal. Em termos percentuais, os municípios são os que mais investem em cultura, seguido dos Estados e por fim da União. Importante destacar que a maior fatia de investimentos era direcionada para a difusão cultural, compreendendo atividades que hoje estão inviabilizadas pelas mediadas de isolamento social.
No atual contexto, o valor simbólico da cultura, sua importância para a sociedade e para a saúde mental das pessoas em meio à pandemia, deveria ficar ainda mais evidente, e ser suficiente para assegurar ao setor prioridade na agenda das políticas públicas, fazendo com que os investimentos aumentassem, mas isso é muito pouco provável. O impacto da pandemia na economia tem como uma de suas consequências a redução da arrecadação de impostos, e medidas de contingenciamento muito provavelmente atingirão os orçamentos da cultura, frequentemente tidos como não prioritários – a exemplo do que acaba de ser feito pelo governo do Estado de São Paulo, onde a Secretaria de Cultura e Economia Criativa sofreu um corte de quase 8% em seu orçamento de 2020, que era de 876,5 milhões, levando a reduções salariais e eventualmente demissões, afetando instituições e corpos artísticos estaduais.
Os impactos da crise
Quando os recursos são limitados e o contexto exige respostas rápidas e certeiras, dados e pesquisas se tornam valiosas ferramentas para a formulação de políticas públicas. A extensão do impacto econômico da Covid-19 no setor cultural ainda é difícil de mensurar. As primeiras pesquisas começaram a ser publicadas em meados de abril, e trazem informações que poderiam subsidiar a formulação de medidas e a tomada de decisões por parte de agentes públicos.
A seLecT realizou uma breve pesquisa sobre as condições de trabalho e o impacto gerado pela pandemia para os trabalhadores da arte, no período de 17 a 26 de abril, e publicou os resultados em 29 de abril. O Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC) tem uma pesquisa em andamento desde o final de março, e a partir de 15 de abril passou a publicar quinzenalmente um boletim com resultados parciais sobre os impactos da pandemia para indivíduos e organizações atuantes nos setores artísticos, culturais e criativos, incluindo valiosas informações qualitativas. Cada pesquisa havia alcançado, até a finalização deste texto, quase 500 respondentes pessoa física, que somados perfazem um universo de cerca de 1000 pessoas, o que corresponde a cerca de 0,02% do universo de trabalhadores da cultura, abrangendo também, no caso do OBEC, 350 organizações culturais, que correspondem a 0,1% desse universo, tendo como referência os números do IBGE. Ainda que pareça uma amostra pequena, os dados coletados trazem informações pertinentes sobre o perfil dos trabalhadores e os efeitos da crise para o setor.
Ambas convergem em apontar que mais de 50% dos profissionais mapeados têm renda inferior a 3 salários mínimos, alto grau de informalidade e dependem majoritariamente das atividades exercidas no setor cultural para sobreviver. A pesquisa da SeLect aponta que 16,7% dos respondentes foram demitidos ou tiveram salários reduzidos. A pesquisa do OBEC aponta que 15% das organizações já realizaram demissões, percentual que tende a aumentar, e que 81% dos indivíduos e 67% das organizações teriam recursos para se manter 3 meses no máximo, com as atividades suspensas. Uma grande parte informa que não sabe como se organizar para enfrentar a crise e que necessitariam de auxílio para o desenvolvimento de estratégias digitais.
Esses dados evidenciam a alta vulnerabilidade dos trabalhadores da cultura e também das organizações culturais, tanto em termos financeiros quanto de gestão, o que enseja medidas urgentes e assertivas por parte das três esferas do Poder Público. No entanto, passados dois meses do início do isolamento social, a capacidade de resposta dos agentes públicos tem ficado muito aquém do que o cenário emergencial impõe, e isso não se refere apenas ao volume de recursos direcionados para ações de enfrentamento do impacto da crise sobre o setor, mas também ao tempo das respostas e aos tipos de medidas adotadas, por vezes descoladas das reais necessidades e características do setor cultural.
Nenhuma medida relevante foi tomada pela da Secretaria Especial de Cultura, e não caberia aqui discutir o desmantelamento das instituições e políticas culturais no plano federal. Vale entretanto mencionar a atuação destoante do IBRAM, órgão altamente especializado e que dispõe de quadros técnicos muito preparados, que até o momento aparentemente escapou ao grande desmonte e que tem logrado um protagonismo nos debates e ações da área museal em face da pandemia. No mais, o que se observa é uma absoluta inércia do governo federal, à qual o poder legislativo tenta se contrapor, por meio de projetos de lei que atualmente tramitam em casas legislativas estaduais e no congresso federal, e propõem ações emergenciais destinadas ao setor cultural, como o Projeto de Lei 1075/2020, de autoria da Deputada Benedita da Silva, que versa sobre prorrogação de prazos para realização e prestação de contas de projetos culturais já aprovados, moratória de débitos tributários, vedação do corte de energia, água e serviços de telecomunicações, fomento a atividades culturais e complementação mensal de renda aos trabalhadores informais e prestadores de serviço do setor cultural. O escopo do PL foi alterado para contemplar também instituições culturais e a previsão de repasse dos recursos do Fundo Nacional de Cultura para Estados e Municípios, e a ele foram apensados outros projetos de lei em favor do setor cultural. Embora tramite em regime de urgência, não há previsão para sua votação, e considerada a composição das casas legislativas, tampouco podemos apostar na sua aprovação.
Iniciativas estaduais andam em paralelo, algumas com maior agilidade e sucesso, como o PL 1.801/2020, sobre o benefício emergencial aos trabalhadores ligados à arte, aprovado pelos deputados estaduais mineiros em 14 de maio, prevendo a concessão de um auxílio, no valor de 50% do salário mínimo — atualmente fixado em R$ 1.045 —, aos profissionais vinculados a micro e pequenas empresas do setor cultural, mensalmente enquanto forem sentidos os efeitos do estado de emergência decretado em função da pandemia, restando agora a sanção do Governador para entrar em vigência. No Estado de São Paulo, o PL 253/2020 propõe um auxílio emergencial de um salário mínimo estadual (R$ 1.163,55) para trabalhadoras(es) e R$ 3.500,00 para os espaços culturais, tendo como diferencial o apoio a espaços culturais, amplamente esquecidos pelas medidas emergenciais que vem sendo adotadas.
É nas esferas estadual e municipal que se concentram as políticas públicas em favor do setor cultural em contexto de pandemia. Entre elas, destacam-se as ajudas emergenciais aos profissionais da cultura, fomento à produção com ênfase em conteúdos digitais, ações de promoção e divulgação de conteúdos culturais em plataformas digitais e ofertas de crédito. A título de exemplo, cabe mencionar o auxílio emergencial aos artistas em situação de vulnerabilidade oferecido pela Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, no valor de R$ 200 reais, sem contrapartida, para 5 mil trabalhadores, o Festival Te Aquieta em Casa, da Secretaria Estadual de Cultura do Pará, que, ainda no mês de março, contemplou com R$ 1.500, 120 propostas de conteúdos culturais em formato digital nas áreas de artesanato, música, dança, teatro, contação de histórias, artes visuais e expressões culturais populares, afro-brasileiras, indígenas e oriundas de comunidades tradicionais (replicando no mês seguinte mais duas etapas de premiação aumentando o número total de contemplados para 380 artistas), ou ainda o edital e-vivências, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que remunera em R$ 700 apresentações online e prioriza profissionais de baixa renda residentes em bairros com alto índice de vulnerabilidade, entre muitos outros. (um esforço de compilação de editais públicos e privados voltados ao enfrentamento da crise no setor cultural pode ser acessado aqui). Todas as iniciativas, mesmo as mais modestas, são muito importantes, mas não suficientes. O que é preciso é a ampliação e convergência de investimentos emergenciais diretos voltados a profissionais e organizações culturais, medidas regulatórias e outras modalidades de crédito.
Chama a atenção, contudo, que as medidas de maior vulto anunciadas até o momento, em resposta ao impacto da pandemia sobre o setor cultural, são as ofertas de crédito a juros menores que os de mercado, anunciadas pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, onde o volume maior de recursos é destinado a empresas de maior porte. Foram disponibilizados R$ 275 milhões via a agência Desenvolve SP para uma linha de crédito exclusiva para empresas paulistas dos setores de cultura e economia criativa, comércio e turismo que tenham faturamento anual entre R$ 81 mil e R$ 90 milhões, com taxa de 1,2%, carência de 12 meses e pagamento em até 60 meses.
Para os pequenos empreendedores da cultura, foram disponibilizados R$ 25 milhões via Banco do Povo. Essa linha de crédito oferece de R$ 200,00 a R$ 20 mil, com juros de 0,35% ao mês, carência de 90 dias e até 36 meses para pagamento, sendo o limite para quem não tem garantias ou avalista é de R$ 3 mil.
A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, em parceria com o Banco de Brasília (BRB), também disponibilizou 3 linhas de crédito para o setor cultural: o Acreditar é um produto de microcrédito orientado que atende de R$ 350,00 a R$ 15 mil, e é destinado para pessoas físicas ou jurídicas com faturamento anual de até R$ 200 mil, as taxas de juros são a partir de 1,85% ao mês; o Progiro oferece taxas de juros a partir de 0,80% ao mês, com prazo de 36 meses para pagamento e seis meses de carência; e o BRB Investimento, com prazo de 60 meses para pagamento, até 12 meses de carência e taxas de juros a partir de 0,92% ao mês. As duas últimas opções de linha de crédito atendem empresas de diferentes tamanhos.
Cabe lembrar, no entanto, que o setor cultural é composto por uma maioria de profissionais autônomos, trabalhadores informais, microempreendedores individuais, microempresas, associações sem fins lucrativos que dificilmente atendem às exigências de crédito… Eles são muito mais numerosos e vulneráveis, certamente sofrerão mais durante a crise e terão maior dificuldade de recuperação. São eles que devem estar no centro das atenções e das medidas por parte do poder público neste momento.
Tanto a SEC-SP quanto a SECEC-DF afirmam que as linhas de crédito fazem parte de um conjunto de medidas mais abrangentes voltadas ao setor cultural no contexto da pandemia, sendo que o DF já lançou dois editais voltados aos profissionais da cultura, com investimento de R$ 4 milhões, enquanto em SP os editais estaduais estão em preparação. Se em um contexto neoliberal, de redução do papel do Estado, grande ênfase tem sido dada à dimensão econômica da cultura, e por conseguinte, às empresas culturais, a pandemia tem mostrado que determinados setores, bens e serviços, essenciais para a sociedade, não podem ser deixados à mercê do mercado e da iniciativa privada, embora a participação desses também seja importante para o ecossistema da cultura. Talvez seja a hora do setor cultural voltar a reivindicar o valor simbólico da cultura e seu papel fundamental na vida social, o que justificaria plenamente uma maior atenção na agenda das políticas públicas.
O setor cultural por sua vez enfrenta dificuldades em interpelar os agentes públicos, tanto por falta de articulação setorial e capacidade associativa, como pela dificuldade em entender as dinâmicas, identificar quem seriam os interlocutores adequados ou onde estão os entraves para resolução de determinada demanda. É sintomático o dado trazido pelo OBEC-BA, de que apenas 35% dos indivíduos, 37% das organizações tem algum vínculo com associações, sindicatos ou organismos de representação setorial, contrastando com os profissionais do audiovisual, cujo percentual, quando segmentado, sobe para 68%, evidenciando também diferenças estruturais e organizacionais entre os setores culturais. A capacidade associativa e o grau de organização setorial são determinantes para o estabelecimento de diálogo com os tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas, e também para o desenvolvimento de parcerias e ações colaborativas visando a superação dos desafios impostos pela conjuntura de crise.