Andrew Liu, Spectre Journal, 6 de julho de 2020. Tradução de Isolda Benício.
I.
Como você escreve uma história do capitalismo no local improvável das regiões produtoras de chá da China e da Índia - e, mais amplamente, em outros lugares marginais à economia mundial centrada no Atlântico Norte?
Essas foram as questões fundamentais que impulsionaram a pesquisa e a redação do meu livro “Guerra do chá: uma história do capitalismo na Índia e na China” (Yale University Press, 2020). Ele registra a competição entre as indústrias de chá da China e da Índia colonial nos séculos XIX e XX, envolvendo guerras de livre comércio, a mobilização de centenas de milhares de trabalhadores e a ascensão no século XX de movimentos nacionalistas na Ásia que rejeitaram os termos de imperialismo estrangeiro. Nascido das cinzas das guerras anglo-chinesas anteriores do ópio, era uma rivalidade descrita por um fazendeiro britânico como "a guerra do chá que foi e ainda está sendo travada".
Há meio século, argumentou William Sewell, a questão que “consome” os historiadores econômicos tem sido como explicar a relação quantitativa do crescimento econômico, em vez de mudanças qualitativas nas "formas de vida econômica" ¹ Essa premissa presumiu passos evolutivos semelhantes em todas as sociedades, especialmente inovações tecnológicas como o motor a vapor e a proletarização da sociedade. Nessa visão, compartilhada entre marxistas neoclássicos e "ortodoxos", o capitalismo implica a mercantilização do dinheiro, da terra e do trabalho, traços extraídos da experiência do mundo do Atlântico Norte. “O proletariado clássico”, escreveu Mike Davis recentemente, sempre quis dizer “as classes trabalhadoras europeias e norte-americanas, consideradas no período de 1838 a 1921”. ²
Por outro lado, a “guerra do chá” da Ásia colocou duas formas do trabalho tradicional e escravo umas contra as outras. O chá chinês era alimentado por fazendas familiares independentes e trabalhadores sazonais de vilarejos pobres, enquanto a indústria indiana dependia de contratos penais que vinculavam migrantes “coolies” [termo pejorativo referente a trabalhadores nativos da China, Índia e adjacente N.T.] a seus empregadores, sob ameaça de prisão. Ambas as indústrias eram de mão-de-obra intensiva. Para estudiosos anteriores, os negócios do chá asiático podem ter sido lucrativos, mas não eram "capitalistas".
Para escrever uma história do capitalismo nas áreas rurais da China e da Índia, precisamos descobrir como escrever uma história do capitalismo no mundo colonial como um todo, olhando além das referências visíveis da proletarização e mecanização. No breve ensaio a seguir, deixei de lado os detalhes empíricos mais refinados de minha pesquisa, que descrevi em outros lugares; em vez disso, no espírito desta revista, esboço brevemente uma reinterpretação do Capital de Marx que guiou meu pensamento nesse trabalho mais amplo. Espero que os leitores me sigam nessa leitura atenta do trabalho clássico de Marx, se juntando de boa-fé ao meu foco de escrever um relato mais flexível e global da história do capitalismo.
II
Para a maioria dos historiadores econômicos, inclusive dentro da tradição marxista, o capitalismo foi historicamente percebível por suas capacidades técnicas, resultando numa explosão de maior produtividade. Mas acredito que Marx foi crítico com essa visão tecnicista. A maior proliferação de coisas ("valores de uso") foi, para Marx, apenas a expressão de uma transformação mais profunda e mais fundamental, o que ele chamou de "universalização" da "forma mercadoria", na qual o objetivo final de a sociedade não era a expansão sem fim das coisas, mas do lucro ("valor de troca"), parte de uma forma de riqueza historicamente nova chamada "valor".
No capítulo inicial do Capital, Marx explicou que o valor das mercadorias nas sociedades capitalistas estava atrelado à quantidade média de trabalho humano necessário para produzi-las, mediada pela concorrência no mercado. Tais relações vieram de épocas anteriores, nas quais o valor dos bens era determinado por fatores não -mercantis, como monopólios, sazonalidade dos ciclos naturais, alfândega, arbitragem etc. Marx reconheceu que sua análise não era inteiramente original, no entanto, atribuindo a base à tradição econômica política britânica, a partir de A Riqueza das Nações (1776), de Adam Smith, dali em diante. No entanto, ele também criticou a economia política por aceitar a "forma de valor" como um estado da natureza atemporal. Sim, na época dele, a produtividade humana havia se tornado um princípio norteador da vida cotidiana. Mas poderíamos esperar o mesmo ser válido em todos os períodos passados?
É o “valor”, e a subjacente dinâmica sutil da acumulação, que melhor nos permite entender o capitalismo de forma mais holística, em todas as suas dimensões históricas, incluindo nas áreas da ideologia, cultura e relações sociais.
Marx pensava claramente que não. Em vez disso, "valor" era uma dinâmica social específica do mundo moderno. E foram essas tendências predominantes de "valor", e não a inovação técnica, que distinguiram a era capitalista de seus antecessores. Quando a era vitoriana chegou, a sociedade era agora moldada pela "universalização" da "forma mercadoria": aparentemente tudo estava à venda e, portanto, sujeito a pressões competitivas visando eficiência.
Qual foi o limiar histórico de tal transformação? No diálogo em andamento nas margens do Capital, aprendemos que a resposta de Marx foi o surgimento do contrato da mão-de-obra para a produção de bens. Agora, o status central do trabalho assalariado para história do capitalismo é um argumento comum entre os historiadores da economia, especialmente aqueles moldados pelo trabalho de Robert Brenner - estamos de acordo em grande parte³. Porém, acredito que o raciocínio sobre o trabalho assalariado tenha tanta importância que merece uma segunda análise.
Para a maioria dos historiadores, o trabalho assalariado era historicamente importante porque era mais eficiente do sua contrapartida na escravidão, servidão e campesinato do ponto de vista técnico. Em vez de fornecer abrigo e comida aos trabalhadores que não são livres, os gerentes poderiam simplesmente demitir e contratá-los à vontade. Ou, como os trabalhadores separados da terra enfrentavam maiores custos de vida, exigiam salários mais altos, o que, por sua vez, impulsionava a inovação.⁴
Essa perspectiva tecnicista é certamente importante, mas perde um aspecto crítico do argumento histórico de Marx. Como ele escreveu no capítulo 6 do Capital: "essa pré-condição histórica [do trabalho assalariado] compreende a história do mundo", continuando nas notas de rodapé que foi "somente a partir deste momento que a forma mercadoria dos produtos do trabalho se torna universal. ” ⁵
Para Marx, a consequência mais crucial do trabalho assalariado era que o próprio trabalho humano agora se tornara uma mercadoria e, portanto, as mercadorias agora animavam todo o ciclo de acumulação de capital do começo ao fim: comprar mão-de-obra para produzir bens e obter lucro para contratar mais mão-de-obra. Em formações anteriores, as pessoas podem ter fabricado e vendido mercadorias, mas o trabalho por trás delas foi adquirido por meio de medidas não comerciais, garantidas por coerção, obrigação familiar ou produção independente. A mercantilização do trabalho mudou isso. Como Marx escreveu em um rascunho anterior conhecido como Resultate⁶:
[Q]uando a força de trabalho de um trabalhador foi convertida em mercadoria para ele... Somente então todos os produtos se tornam mercadoria e as condições objetivas de toda e qualquer esfera de produção nele, como mercadorias em si. Somente com base na produção capitalista a mercadoria se torna realmente a forma elementar universal da riqueza.⁷
Em suma, quanto mais as sociedades humanas dependiam da venda de trabalho e compra de bens para a sobrevivência, mais suas atividades eram dobradas na lógica da mercantilização e do "valor". Os preços dos bens assim se estabeleceram em padrões regulares, com base no cálculo inconsciente das quantidades médias de trabalho necessárias para produzi-los. Surgiram naturalmente pressões competitivas e impessoais para cortar custos de produção, geralmente por meio de inovações em técnica e organização - mas nem sempre. E embora seja fácil conectar os pontos dessa lógica social abstrata a melhorias técnicas concretas, as histórias econômicas que se fixam na dimensão técnica da industrialização por contraste raramente têm muito a dizer sobre a dinâmica social subjacente do valor. Mas é o "valor" e a dinâmica sutil e subjacente da acumulação que nos permite entender o capitalismo de forma mais holística, em todas as suas dimensões históricas, incluindo os domínios da ideologia, cultura e relações sociais: o que Sewell chamou de "vida econômica". Para Marx, então, o poder transformador da "forma mercadoria" era uma característica mais fundamental da era capitalista do que as inovações espetaculares que os historiadores há muito equiparam à essência do capitalismo em si.
III
É certo que essa leitura de Marx pode parecer abstrata demais para alguns leitores. Por essa mesma razão, no entanto, acho mais flexível e útil para escrever a história global. Em vez de uma teoria modular de estágio baseada na experiência da Inglaterra, da desapropriação à proletarização e mecanização, essa leitura enfatiza as dimensões abstratas e qualitativas da transformação capitalista em escala mundial, a serem concretizadas por meio de análises empíricas. Em particular, abre a possibilidade de que a acumulação moderna possa ter remodelado e incorporado disposições sociais como a China e a Índia do final do séculos- que não se encaixavam perfeitamente no modelo de trabalho remunerado - de maneiras históricas específicas.
O trabalho não livre e a agricultura independente datam das sociedades antigas, mas ambos podiam ser transformados pela dinâmica moderna do capitalismo, uma vez incorporada a um mercado global em que o salário era predominante.
Um ponto de entrada valioso é examinar mais de perto a ideia de Marx de "universal", encontrada nas duas passagens acima, descrevendo a universalidade da forma de mercadoria do trabalho. À primeira vista, essa proposição parece hiperbólica e irrealista. Certamente poderíamos localizar formas de produção de trabalho não-remunerado ainda hoje - como agricultores independentes que vendem seus produtos nos mercados locais - muito menos no século XIX? No entanto, acredito que o trabalho de Marx tratou o termo "universal" (allgemeine) não no sentido comum como algo onipresente, mas como algo "geral" - outra tradução da allgemeine - com o significado filosófico específico de que o que é "geral" é predominante, mas não exclusivo de outros.
A articulação mais clara do que allgemeine significava para a história de Marx aparece em seu rascunho de introdução de 1857, republicado posteriormente como parte do Grundrisse. Lá, ele escreveu:
Em todas as formas de sociedade, existe um tipo específico de produção que predomina sobre o resto, cujas relações atribuem, assim, posição e influência aos demais. É uma iluminação geral (eine allgemeine Beleuchtung) que banha todas as outras cores e modifica sua particularidade.⁸
O que fez do trabalho assalariado uma "iluminação geral" não foi o fato de ter competido com todas as outras formas de trabalho, mas apenas o fato que "predomina[va] sobre o resto". Antes, a agricultura pastoral havia marginalizado caçadores e pescadores, e da mesma forma a economia industrial baseada no trabalho assalariado não erradicou os modos mais antigos, mas os subordinou a si mesma. "Na sociedade burguesa", escreveu Marx, "[a]gricultura cada vez mais se torna apenas um ramo da indústria e é totalmente dominada pelo capital".
Uma vez integradas a uma economia global baseada no trabalho assalariado, ou seja, competindo com rivais mais eficientes, essas "relíquias" aparentemente pré-capitalistas foram forçadas a assumir as características do desenvolvimento capitalista. Tomemos os dois arquétipos das características trabalhistas "pré-capitalistas" dos negócios asiáticos de chá: "coolies" não-livres e camponeses independentes. Marx escreveu sobre a escravidão dos trabalhadores africanos que o “excesso de trabalho do negro... se tornou um fator em um sistema calculado e calculador”. ⁹ Enquanto isso, artesãos independentes também começaram a se considerar donos do capital e do trabalhador, como empregador e empregado em uma relação capitalista: “o camponês independente ou o artesão são divididos em dois”. ¹⁰ Com a generalização da forma mercadoria, esses arranjos ainda poderiam estar sujeitos à dinâmica de valor (e classe) descrita em O Capital, mesmo que eles se desviassem do tipo ideal de proletário.
Encontrei mais apoio para essa leitura examinando mais de perto a frase peculiar de Marx "modo de produção especificamente capitalista", que aparece em todo o Capital. Já ouvimos o "modo de produção capitalista" vezes suficientes para saber que isso significava algo como industrialização por meio de trabalho assalariado e mecanização. Mas e a frase "especificamente capitalista"? Eu acredito que foi um termo histórico. Os moinhos de algodão da Inglaterra do século XIX eram específicas do modo de produção burguês e de sua nova mercantilização do trabalho, impensáveis nos séculos anteriores. Mas se as moinhos eram "especificamente capitalistas", a distinção de Marx também criava espaço para produtores que eram "não-especificamente" capitalistas, na medida em que eram compatíveis com, e poderiam existir de acordo com diferentes lógicas sociais pré-capitalistas. ¹¹
Novamente, o trabalho não-livre e a agricultura independente datam das sociedades antigas, mas ambos podiam ser transformados pela dinâmica moderna do capitalismo, uma vez incorporada a um mercado global em que o salário era predominante.
Crucial para isso foi a sugestão de que, embora o trabalho escravo, servo e camponês independente não fosse adquirido por meio de um simples arranjo proletário, eles poderiam, no entanto, tornar-se dependentes de produzir e receber pagamento do mercado de sobrevivência. Essa era a estrita definição econômica de “trabalho assalariado”, entendido por Marx: “posição de capital, trabalho gerador de capital.” ¹² As famílias produtoras de chá e as pequenas oficinas na China, por exemplo, contavam com empréstimos adiantados no início de cada primavera para sobreviver à estação, e contavam com os lucros do chá para quase toda a sua renda. As plantações de chá indianas eram empresas capitalistas sempre à beira da dívida, e os “coolies” não-livres de Assam eram constantemente medidos em termos de produção e eficiência.¹³
Essas ideias apontam para aspectos da história do capitalismo que vão além da medida do crescimento e da inovação.
Isso não significa negar que, do ponto de vista da eficiência, essas formas mais antigas permaneciam tecnicamente inferiores a um sistema totalmente mercantilizado. Mas a fixação tecnicista da história econômica perde as imensas pressões exercidas sobre as sociedades coloniais. Em vez de inovação, a competição geralmente assumia a forma de uma maior exploração: derrotar fisicamente os “coolies” em Assam, forçar os trabalhadores chineses a trabalhar dias sem dormir e, por toda a Ásia, criar meios de pagar aos funcionários, especialmente mulheres, o mínimo possível. Estes também fazem parte do legado misto do capitalismo.
Assim, terminamos com uma combinação de dinâmicas sociais capitalistas, mas com a ausência de revolucionária tecnologia capitalista. Na verdade, essa permutação não é totalmente desconhecida das gerações passadas. Max Weber escreveu que os EUA do século XVIII poderiam reivindicar um "espírito capitalista" que era separado do "desenvolvimento capitalista". ¹⁴ Entre os historiadores, a nova história da literatura capitalista confirmou a hipótese de Marx de que a escravidão dos EUA enfrentava intensas pressões de mercado, com plantadores racionalizando entradas e saídas. Por outro lado, a literatura sobre as “revoluções industriosas” da Europa moderna e do leste asiático indicou que as famílias dependentes do mercado começaram a alocar mão-de-obra de maneiras maximizadoras de receita, absorvidas pelo padrão mais amplo de proletarização em suas respectivas sociedades.¹⁵
IV
Essas ideias apontam para os aspectos qualitativos da história do capitalismo além da medida quantitativa de crescimento e inovação. Dada a escassez de marcadores tecnológicos óbvios nos distritos de chá da China e da Índia, achei mais útil focar no surgimento de novas dinâmicas sociais abstratas que operam sob a superfície da Ásia rural, manifestadas em mudanças nas práticas e ideologias trabalhistas. ¹⁶
Examinei o primeiro examinando novas noções de tempo de trabalho nas plantações de chá e jardins. Por exemplo, na província chinesa de Anhui, cadernos particulares e pesquisas etnográficas documentaram como os gerentes de fábrica mediam e regulavam o tempo de trabalho de seus funcionários usando um dispositivo arcaico de cronometragem: incensos que queimavam de forma lenta e regular pro cerca de quarenta minutos por vara. Eles usaram esses dispositivos rudimentares para determinar o tempo médio para concluir uma tarefa, como assar, enrolar ou empacotar folhas, depois recompensaram os trabalhadores mais rápidos e puniram os que eram "lentos e desajeitados". Em Assam, na Índia, da mesma forma, os plantadores britânicos distribuíram o trabalho por meio de um sistema baseado em tarefas conhecido como nirikh, vinculado a uma média variável de trabalho por unidade temporal, por exemplo, capinando uma determinada área de terra em seis horas. Os plantadores aumentavam continuamente as cotas, vangloriando-se pelo novo século que tinham aumentado a produtividade em 20% em dez anos. Eles o fizeram, proclamava-se, "tributando ao máximo a força de trabalho dos “coolies".
Quanto à ideologia, conecto essas práticas a novas concepções de pensamento econômico entre pensadores britânicos, chineses e indianos que tentam entender o tumultuado comércio global de chá. Num padrão que espelha a trajetória da economia política clássica diante deles - a mesma tradição que Marx destacou -, os escritores na Ásia se afastaram de ideias mais antigas baseadas na balança comercial ou no controle da terra em favor de uma nova ênfase na produtividade do trabalho humano como mercadoria. Na China, o oficial do fim da Dinastia Qing, Chen Chi (1855-1900), criticou as ideias legalistas (453-221 aC) centradas na agricultura e também nas ideias mercantilistas populares entre seus contemporâneos, obcecados por desequilíbrios comerciais. No tratado de Chen sobre economia política, moldado na escola de J.S. Mill, ele advertiu comerciantes improdutivos e cobradores de impostos como "usuários da riqueza [caiyongzhe], movimentadores [yi] e saqueadores [duo] da riqueza". Inverter a sorte do comércio de chá exigiria que os camponeses chineses adotassem um novo "princípio para produzir riqueza [shengcai zhi dao]", como Chen enfatizou o potencial criativo do trabalho humano: "onde o terreno originalmente não tinha nada, onde entre os humanos originalmente não havia nada, de repente há coisas. ”
Enquanto isso, na Índia, era o trabalho não-livre que atraía a atenção dos nacionalistas indianos. Mais de meio milhão de trabalhadores “coolies” foram recrutados da Índia central e oriental e empregados por meio de contratos penais. O economista R.C. Dutt declarou que "os jardins de chá deveriam obter trabalhadores dos mercados de trabalho da Índia, sob as leis comuns da demanda e da oferta". Os nacionalistas criticaram o contrato penal, não através da condenação da ganância europeia, mas porque agora viam o trabalho como uma mercadoria que deveria ser vendida livremente no mercado. Os trabalhadores que ofereciam seu trabalho como capital mereciam a mesma liberdade de troca que qualquer outro comerciante. Assim, escritores indianos ecoaram a linguagem dos abolicionistas no mundo atlântico, criticando as condições "semelhantes às escravas" por meio de uma defesa normativa do próprio capitalismo.
O que essas trajetórias ilustraram não foi que o pensamento econômico asiático derivasse de um original europeu; antes, a economia política alcançou gradualmente uma plausibilidade generalizada na Ásia como um conjunto de princípios universais e naturais correspondentes à expansão da produção capitalista e ao emprego assalariado em novos territórios em todo o mundo.
À medida que os distritos de chá da China e da Índia se tornaram mais integrados à dinâmica social da acumulação global, os pensadores econômicos da Ásia articularam e emprestaram conceitos do cânone da economia política clássica. Originalmente, argumentou Marx, essas ideias na consciência correspondiam à generalização da forma de mercadoria na sociedade europeia. “Não foi mera coincidência”, escreveu Maxine Berg, “que a industrialização e o surgimento da economia política ocorreram praticamente ao mesmo tempo”. ¹⁷ Ou, como Susan Buck-Morss disse, “[a] economia, quando foi descoberta, já era capitalista.” ¹⁸ É digno de nota, portanto, que essas ideias foram levantadas das sociedades mais industrializadas do mundo atlântico, mas que poderiam ter ressonância com as experiências vividas de escritores observando a vida no interior da China e da Índia. A plausibilidade da economia política euro-americana na Ásia rural, argumento, indexou a imersão deste último na dinâmica social da acumulação moderna. Apesar da falta de marcadores técnicos óbvios, os produtores chineses e indianos enfrentaram as mesmas pressões de concorrência e mercantilização que haviam sido naturalizadas na discussão da economia política clássica sobre "valor". O que essas respectivas trajetórias ilustraram não foi que o pensamento econômico asiático derivasse de um original europeu; antes, a economia política, originalmente vista como um corpo estranho de ideias, alcançou gradualmente uma plausibilidade generalizada na Ásia e em outros lugares como um conjunto de princípios universais e naturais correspondentes à expansão contínua da produção capitalista e ao emprego assalariado em novos territórios em todo o mundo.
V.
O que foi exposto acima não tem como objetivo retratar a Ásia como uma vítima passiva do Ocidente, nem celebrar o capitalismo asiático como uma forma de resistência ao domínio estrangeiro. Em vez disso, minha modesta sugestão foi que a história do capitalismo na Ásia deveria ser tratada com a mesma seriedade e crítica, como suas variantes "clássicas" na Euro-América, entendidas em toda a sua especificidade, mas também conectadas a dinâmicas mais profundas compartilhadas em comum com a resto do mundo.
Deixe-me terminar este ensaio com o reconhecimento de que minha releitura de Marx foi moldada inelutavelmente pelos desenvolvimentos das últimas décadas, com a globalização das zonas financeira e de livre-comércio, a proliferação de cadeias internacionais de suprimentos e o surgimento de " países recém-industriais ", especialmente na Ásia. A história do capitalismo faz cada vez menos sentido como uma coleção de unidades nacionais discretas, cada uma progredindo em estágios pré-determinados, do que como uma história combinada de acumulação, atravessando fronteiras e apropriando-se de quaisquer formas sociais existentes que possam ser encontradas "ao alcance da mão".
A globalização voltou a ser acentuada pela pandemia de Covid-19, que iluminou o quão profundamente o resto do mundo depende agora da China para a fabricação de seus bens de consumo e industriais - sem mencionar equipamentos médicos. Enquanto os falcões pediram desinvestimento e "dissociação" da China, outros pessimistas acreditam que a crise revelou as vulnerabilidades da própria economia chinesa após décadas de crescimento liderado pelas exportações. Poucos, no entanto, demonstraram capacidade de entender o capitalismo na China e na Ásia de maneira mais ampla, em um nível histórico mais profundo. O capitalismo chinês não é apenas um “milagre” nacional dos anos 90, mas uma extensão dos padrões sociais que abrangem a Ásia e o mundo pós-colonial por décadas, do Japão pós-guerra aos “quatro tigres” do Leste da Ásia e, potencialmente, ao sul e ao sul. Sudeste da Ásia para o futuro. Em vez de implantar tecnologias de ponta, essas economias pós-coloniais ascenderam em uma era de liberalização global por meio de medidas intensivas em mão-de-obra, incluindo o retorno e a extensão de métodos de produção casuais, domésticos, suados e migrantes, não muito diferentes do tempo da guerra do chá do século XIX.
Embora este ensaio não forneça respostas fáceis sobre o que pode vir a seguir, espero ter esboçado pelo menos uma reinterpretação de Marx - e das possibilidades históricas do capitalismo - que nos ajudem a ver como os mercados asiáticos que conhecemos hoje não são apenas um produto recente de Marx. o neoliberalismo ocidental exportado para o exterior, mas na verdade tem sido um componente vital da longa história do capitalismo o tempo todo, escondido à vista.
Andrew Liu ensina história na Universidade Villanova. Seu livro "Guerra do chá: uma história do capitalismo na China e na Índia" (Tea War: A History of Capitalism in India and China) foi lançado em abril pela Yale University Press.
Notas
¹ William H. Sewell, “A Strange Career: The Historical Study of Economic Life,” History and Theory 49, no. 4 (2010): p. 149.
² Mike Davis, Old Gods, New Enigmas: Marx’s Lost Theory (New York, Verso, 2018): p. 23.
³ Para exemplos da história chinesa e indiana, consulte Andrew B. Liu, ““Production, Circulation, and Accumulation: The Historiographies of Capitalism in China and South Asia” (Produção, circulação e acumulação: as historiografias do capitalismo na China e no sul da Ásia), The Journal of Asian Studies 78, n. 4 (novembro de 2019): 767–88.
⁴ Esse argumento tecnicista pode ser encontrado nas obras de Robert Brenner, Robert Allen e Sven Beckert. Veja Robert Brenner, “As Origens do Desenvolvimento Capitalista: Uma Crítica ao Marxismo Neo-Smithiano”, New Left Review I, n. 104 (1977): 25-92; Robert C. Allen, A Revolução Industrial Britânica em Perspectiva Global (Cambridge: Cambridge University Press, 2009); Sven Beckert, Império do Algodão: Uma História Global (Nova York: Knopf, 2014).
⁵ Karl Marx, O Capital, vol. I (Nova York: Penguin, 1976): p. 174n4.
⁶ O resultado foi uma seção do rascunho de Marx escrito entre junho de 1863 e dezembro de 1866, mas não publicado até 1933.
⁷ Karl Marx, O Capital, p. 950–51.
⁸ Karl Marx, Grundrisse: Fundamentos da Crítica da Economia Política (Nova York: Penguin: 1973): p. 106–07.
⁹ Karl Marx, Grundrisse, p. 345.
¹⁰ MECW (Marx/Engels Collected Works ), vol. 34, p. 141.
¹¹ No Resultate, Marx escreveu que o capital às vezes assumia “processos de trabalho disponíveis e estabelecidos”, que “contrastavam fortemente com o desenvolvimento de um modo de produção especificamente capitalista (indústria em larga escala etc.); o último não apenas transforma as situações dos vários agentes de produção, mas também revoluciona seu modo real de trabalho e a natureza real do processo de trabalho como um todo.” O Capital, 1021.
¹² Marx, Grundrisse 1973, 463. Notavelmente, essa definição se encaixa com exceções marginais encontradas na interpretação brenneriana. Veja Brenner, "Origens do desenvolvimento capitalista", 52, nota 43; Charles Post, "Capitalismo, Leis do Movimento e Relações Sociais de Produção", Materialismo Histórico 21, n. 4 (2013): 81.
¹³ O "trabalho assalariado" em Marx não trouxe as mesmas suposições político-legais de liberdade que mais tarde foram anexadas a ele pelos estudos subsequentes. Marx, de fato, criticou o tipo ideal de "trabalho livre" como um tipo de ideologia liberal que ocultava a natureza autoritária do capital. Veja Robert Steinfeld, coerção, contrato e trabalho livre no século XIX (Cambridge: Cambridge University Press, 2001); Jairo Banaji, “As Ficções do Trabalho Livre: Contrato, Coerção e Trabalho Não-Livre”, Materialismo Histórico 11 (1 de outubro de 2003): 69–95.
¹⁴ Max Weber, "A ética protestante e o" espírito "do capitalismo (1905)", em A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, tradução pra inglês de Peter Baehr e Gordon C. Wells (Nova York: Penguin Books, 2002), 14.
¹⁵ Jan de Vries, A Revolução Industrial: Comportamento do Consumidor e Economia Doméstica, 1650 até o presente (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), 101-102.
¹⁶ Para a seção a seguir, consulte as referências no meu livro Guerra do Chá.
¹⁷ Maxine Berg, The Machinery Question and the Making of Political Economy (A Questão da Maquinaria e a Criação da Economia Política), 1815-1848 (Cambridge: Cambridge University Press, 1982): p. 17.
¹⁸ Susan Buck-Morss, “Envisioning Capital: Political Economy on Display” (O Capital em Mente: economia política em exibição), Critical Inquiry 21, no. 2 (1995): p. 439