Amy Goodman entrevista Angela Davis, CADTM, 16 de julho de 2020
AMY GOODMAN: Enquanto o levante nacional contra a brutalidade policial e o racismo continua a ferver a nação e o mundo, derrubando estátuas da Confederação e forçando reconhecimento das prefeituras e nas ruas, o presidente Trump defendeu o aparato de segurança na quinta-feira, descartando pedidos crescentes por cortes no financiamento policial. Ele discursou em um evento estilo campanha em uma igreja em Dallas, no Texas, anunciando uma nova ordem executiva aconselhando os departamentos de polícia a adotarem padrões nacionais para o uso da força. Trump não convidou os três principais oficiais de segurança de Dallas, que são todos afro-americanos.
Essa ação ocorreu após Trump chamar os manifestantes de “THUGS” (criminosos em português) e ameaçar a convocar o exército dos EUA para “acabar com as rebeliões e a desordem”. Esse é Trump falando na quinta: Eles querem se livrar das forças policiais. E é isso que fazem, é até onde eles iriam. E você sabe disso, porque na posição principal, no topo, não terá muita liderança. Não sobrou muita liderança. Ao invés, temos que seguir o caminho oposto. Temos que investir mais energia e recursos em treinamento policial e recrutamento e engajamento comunitário. Temos que respeitar nossa polícia. Temos que tomar conta da nossa polícia. Estão nos protegendo. E se puderem fazer o trabalho deles, farão um ótimo trabalho. E você sempre vai ter uma maçã podre não importa onde você vá. Você tem maçãs podres. E não existem muitas. E posso te dizer que não existem muitas no departamento de polícia. Todos conhecemos muitos membros da polícia.
O candidato Democrata à presidência Joe Biden também está pedindo por um aumento no financiamento policial. Em um artigo de opinião no USA Today, ele pediu que os departamentos de polícia recebam 300 milhões adicionais para “revigorar o policiamento comunitário em nosso país”. Na noite de quarta-feira, Biden discutiu o financiamento policial no The Daily Show: eu não acredito que a polícia deva sofrer corte de verbas, mas eu acho que as condições devem ser colocadas para os departamentos para que realizem reformas significativas em relação a isso. Deveríamos estabelecer um padrão nacional de uso da força.
Mas muitos argumentam que uma reforma não vai consertar um sistema de policiamento estruturalmente racista. Desde que o movimento global de protestos começou, Mineápolis prometeu desmantelar seu departamento de polícia, os prefeitos de Los Angeles e da cidade de Nova Iorque prometeram cortar os orçamentos dos departamentos de polícia, e pedidos de cortes de verbas da polícia estão sendo escutados em espaços que, anos atrás, essa opção seria impensável.
Para mais sobre esse momento histórico, vamos falar com a lendária ativista e acadêmica Angela Davis, professora emérita da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Por meio século, Angela Davis tem sido uma das ativistas e intelectuais mais influentes nos EUA, um ícone do movimento de liberação negra. O trabalho de Davis acerca de questões de gênero, raça, classe e encarceramento influenciou o pensamento crítico e movimentos sociais ao longo de várias gerações. Ela é defensora importante da abolição das prisões, um posicionamento formado pela sua própria experiência enquanto detenta e fugitiva na lista dos 10 mais procurados pelo FBI há mais de 40 anos atrás. Quando foi pega, enfrentou a pena de morte na Califórnia. Depois de ser absolvida de todas as acusações, passou a vida lutando por mudanças no sistema de justiça criminal.
AMY GOODMAN: Você acha que estamos em um momento decisivo? Você, que já esteve envolvida com ativismo por quase meio século, vê esse momento como um dos períodos mais diferentes que você já viveu?
ANGELA DAVIS: Absolutamente. É um momento extraordinário. Nunca vivi nada como as condições que estamos experienciando atualmente, a conjuntura criada pela pandemia de covid-19 e o reconhecimento do racismo sistêmico que se tornou visível sob essas condições por causa das mortes desproporcionais nas comunidades negra e latina. E esse é um momento que eu não sei se esperava que fosse acontecer.
Quando os protestos começaram, é claro, acerca dos assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor, Ahmaud Arbery e Tony McDade e muitos outros que perderam suas vidas para a violência racista estatal e para a violência vigilante – quando esses protestos erupcionaram, eu lembrei de algo que disse muitas vezes para encorajar ativistas, que muitas vezes pensam que o trabalho que fazem não leva a resultados tangíveis. Eu frequentemente os peço para considerarem a longa trajetória da luta negra. E o que foi o mais importante é a construção de legados, as novas arenas de luta que podem ser entregues às gerações mais novas.
Mas eu costumo dizer que ninguém sabe quando podem surgir as condições que vão moldar a conjuntura como a atual que tão rapidamente muda a consciência popular e repentinamente permite que nos movamos em direção a uma mudança radical. Se não nos engajarmos no trabalho em andamento quando tal momento surge, não podemos aproveitar as oportunidades de mudança. E, é claro, esse momento vai passar. A intensidade das manifestações atuais não pode ser sustentada com o tempo, mas teremos que estar prontos para mudar a marcha e abordar essas questões em arenas diferentes, incluindo, é claro, a arena eleitoral.
AMY GOODMAN: Angela Davis, há tempos você é líder do movimento crítico de resistência, o movimento da abolição. E me pergunto se você pode explicar a demanda, como você vê, o que você sente que deve ser feito sobre o corte de verbas da polícia, e então sobre a abolição das prisões.
ANGELA DAVIS: Os pedidos de cortes de verba da polícia, eu penso, são uma demanda abolicionista, mas refletem somente um aspecto do processo representado pela demanda. Cortar a verba da polícia não é simplesmente retirar o financiamento das forças de segurança e não fazer nada mais. E essa parece ser a compreensão superficial que tem feito Biden seguir na direção que está seguindo.
É sobre realocar os fundos públicos para novos serviços e novas instituições – conselheiros de saúde mental, que possam responder às pessoas que estão em crise sem armas. É sobre realocar os fundos para a educação, moradia e lazer. Todas essas coisas ajudam a criar segurança e proteção. É sobre aprender que proteção, garantida por meio da violência, não é realmente proteção.
E eu diria que a abolição não é, em primeira instância, uma estratégia negativa. Não é principalmente sobre desmantelamento, se livrar, mas sim sobre uma nova visão. Construir algo novo. E eu argumentaria que a abolição é uma estratégia feminista. E pode-se ver nessas demandas abolicionistas a influência fundamental das teorias e práticas feministas.
Eu quero que vejamos o feminismo não somente pela visão das questões de gênero, mas também como uma abordagem metodológica de compreensão da interseccionalidade das lutas e problemas. O feminismo abolicionista contraria o feminismo carcerário, que, infelizmente, assumiu que questões como violência contra a mulher podem ser efetivamente abordadas pelo uso da força policial, usando o encarceramento como solução. E, é claro, sabemos que Joseph Biden, em 1994, alega que a Lei de Violência Contra a Mulher foi um momento importante em sua carreira – a lei foi redigida dentro da Lei de Crime de 1994, a Lei de Crime Clinton.
E o que estamos reivindicando é um processo de descriminalização – reconhecer que as ameaças à segurança, à proteção, não vêm principalmente do que é definido como crime, mas sim do fracasso das instituições do nosso país em abordar problemas de saúde, violência, educação, etc. Então, a abolição é realmente sobre repensar o tipo de futuro que queremos, o futuro social, o futuro econômico, o futuro político. É sobre revolução, eu diria.
AMY GOODMAN: Você escreve em “A Liberdade é uma Luta Constante”: “a ideologia neoliberal nos leva a focar nos indivíduos, nós mesmos, vítimas individuais, criminosos individuais. Mas como é possível resolver o grande problema da violência estatal racista pedindo pela responsabilização de indivíduos policiais, que eles carreguem o fardo desse histórico e presumir que, ao processá-los, ao nos vingarmos deles, teremos, de alguma maneira, progredido na erradicação do racismo?” Explique o que exatamente você está demandando.
ANGELA DAVIS: Bem, a lógica neoliberal assume que a unidade fundamental da sociedade é o indivíduo, e eu diria ainda o indivíduo abstrato. De acordo com essa lógica, as pessoas negras podem combater o racismo por elas próprias. Essa lógica reconhece – ou falha em reconhecer que existem barreiras institucionais que não podem ser derrubadas pela determinação individual. Se uma pessoa negra é materialmente incapaz de ir à universidade, a solução não é ação afirmativa, eles dizem, mas sim o fato de que a pessoa precisa trabalhar mais duro, tirar boas notas e fazer o necessário para ganhar o dinheiro para pagar a mensalidade. A lógica neoliberal nos impede de pensar na solução mais simples, que é a educação gratuita.
Estou pensando no fato de que temos consciência da necessidade dessas estratégias internacionais pelo menos desde 1935 – estou escolhendo 1935 porque foi o ano em que W.E.B. Du Bois publicou sua Reconstrução Negra na América. E a questão não era o que o indivíduo negro deveria fazer, mas sim como reorganizar e reestruturar a sociedade pós-escravidão afim de garantir a incorporação daqueles que haviam sido escravizados. A sociedade não poderia permanecer a mesma – ou não deveria ter permanecido a mesma. O neoliberalismo resiste a mudanças no nível individual. Pede ao indivíduo que se adapte às condições do capitalismo, às condições do racismo.
Publicado originalmente em Democracy Now! Tradução de Isabela Palhares