Criação da estatal foi proposta ao Congresso em 1954 por Vargas para acabar com racionamentos e permitir industrialização do país. Privatização recém-aprovada pelo Senado pode reinstalar a rotina dos apagões no país.
Ricardo Westin, El País Brasil / Agência Senado, 17 de junho de 2021
No Carnaval de 1954, os foliões brincaram nas ruas do Rio de Janeiro ao som de duas marchinhas que debochavam de uma mazela que infernizava a capital do Brasil: os apagões quase diários.
A marchinha Vaga-Lume, na voz de Violeta Cavalcanti, denunciava: “Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz / De dia falta água / De noite falta luz”. O outro hino carnavalesco era Acende a vela, cantado por Emilinha Borba, que se valia da mesma rima: “Acende a vela, Iaiá / Acende a vela / Que a Light cortou a luz / No escuro eu não vejo aquela / Carinha que me seduz”.
A eletricidade capenga não era um problema exclusivo do Rio. Afetava o Brasil inteiro. Enquanto as maiores cidades penavam com cortes recorrentes de luz, grande parte do interior do país virava as noites no breu, numa situação ainda pior, sem energia elétrica nenhuma.
Um mês depois daquele Carnaval, o presidente Getúlio Vargas deu o pontapé num ambicioso plano para finalmente pôr o sistema elétrico brasileiro em ordem. Em abril de 1954, ele enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que autorizava o Governo a fundar uma estatal chamada Eletrobras.
Papéis históricos conservados pelo Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que Apolônio Salles (PSD-PE) foi um dos senadores que levantaram a bandeira da Eletrobras. Da tribuna do Senado, Salles discursou:
— Dotando o país com energia elétrica abundante, a Eletrobras há de representar o marco decisivo na caminhada econômica do Brasil.
A criação da Eletrobras marcaria, de fato, uma mudança e tanto no Brasil. Em meados do século passado, a geração e a distribuição de energia cabiam basicamente à iniciativa privada. O setor era repartido entre a americana Amforp e a canadense Light (a mesma da marchinha cantada por Emilinha Borba), que concentravam seus esforços no abastecimento das grandes cidades do país. A Light detinha a nata do mercado: o eixo Rio-São Paulo.
Diante do desinteresse das duas multinacionais pelas regiões pouco lucrativas, os Estados ricos se incumbiam de levar a eletricidade às suas cidades mais afastadas. O governo paulista, por exemplo, criou as Usinas Elétricas do Paranapanema. O Governo mineiro era dono das Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig).
Em todas as situações, contudo, a produção de eletricidade era pífia e as redes de alta tensão, que distribuíam a energia, eram minúsculas e isoladas. Nenhuma das empresas conseguia dar conta da demanda, que crescia exponencialmente. Era a época em que os brasileiros trocavam o campo pela cidade e a economia passava de agrícola a industrial. Os novos tempos eram movidos a eletricidade.
A carência elétrica estorvava o conforto dos lares, que já contavam com geladeiras, enceradeiras, televisores e outros aparelhos ligados à tomada, e atravancava o desenvolvimento das fábricas, que se viam impedidas de aumentar a produção.
Na Câmara, o deputado Ubirajara Keutenedjian (PSP-SP) disse aos colegas que estava farto dos rotineiros cortes de energia no Estado de São Paulo:
— Neste último quinquênio, um racionamento progressivo e de efeitos calamitosos vem se opondo tenazmente ao desenvolvimento do parque industrial da terra bandeirante. Inicialmente, foram fixadas cotas mínimas. Nestes últimos dois anos, tendo a crise atingido o auge, foi posto em prática o sistema dos cortes de ponta. O Estado de São Paulo normalmente fica de seis a oito horas por dia sem energia elétrica. O caso é de calamidade pública, na expressão exata da palavra!
O senador Guilherme Malaquias (PTB-DF) afirmou que a situação era a mesma na cidade do Rio, que tinha o status de Distrito Federal:
— A Light acabou de fazer proposta ao governo para o racionamento de força no Rio e em São Paulo, tendo a mesma sido aprovada. Se o racionamento traz desvantagens para o consumidor como multas e cortes de luz, para a indústria acarreta prejuízos incalculáveis, com máquinas paralisadas e operários que ganham sem poder produzir.
Irritado, o senador criticou a Light e pediu a rápida aprovação do projeto da Eletrobras:
— O nível das represas está baixo. É necessário que o Governo investigue se as águas são aproveitadas [pela Light] de maneira racional durante as cheias ou são imprevidentemente desperdiçadas. Rio e São Paulo não podem ficar sujeitos a cortes de 10% a 20% na energia. O Governo deve adotar medidas imediatas a respeito da Light e ir mais além, acelerando a instalação da Eletrobras, órgão estatal de controle da nossa força hidrelétrica.
A Câmara dos Deputados chegou a formar uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar as causas dos racionamentos no eixo Rio-São Paulo.
Para o presidente Vargas, o Governo só conseguiria garantir o suprimento energético necessário à industrialização do Brasil se possuísse uma empresa estatal encarregada de fazer o planejamento de todo o sistema elétrico nacional, construir usinas (em especial as hidrelétricas) e erguer torres com linhas de transmissão — sem a seletividade capitalista das companhias privadas nem a visão local e limitada das empresas estaduais.
“O problema da energia elétrica reclama atuação vigorosa e urgente de parte do poder público, para que as dificuldades atuais sejam debeladas e o país venha a dispor no menor prazo possível da energia de que necessita para o seu desenvolvimento”, escreveu Vargas na justificativa que acompanhou o projeto de lei endereçado ao Congresso em 1954.
A ideia era que a Eletrobras não detivesse o monopólio da energia elétrica, mas trabalhasse em coordenação com os grupos que já atuavam no mercado. O presidente vinha embalado pela recente criação da Petrobras — esta, sim, monopolística. A estatal do petróleo proposta por ele havia sido aprovada pelos senadores e deputados poucos meses antes. O projeto da Eletrobras, entretanto, não teve vida fácil no Congresso.
Vargas não viu a Eletrobras tornar-se realidade. Os documentos do Arquivo do Senado mostram que a proposta se arrastou pelas comissões do Senado e da Câmara e só conseguiu sair do papel oito anos e quatro presidentes da República depois. O projeto seria aprovado em 1961, e a empresa começaria a funcionar em 1962.
A lentidão se explica pelo poder das multinacionais. A Light e a Amforp se mobilizaram para impedir a criação da Eletrobras, fazendo pressão sobre o governo, o Congresso e a sociedade.
De acordo com Vargas, empresas estrangeiras insatisfeitas com seu ideário nacionalista estavam mancomunadas com a oposição para tentar derrubá-lo. O presidente se matou em agosto de 1954 e, assim, freou o golpe em curso. Na carta-testamento, ele citou o movimento anti-Eletrobras:
“A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. Quis [eu] criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras. Mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobras foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente”.
No Senado, o maior adversário da Eletrobras foi Assis Chateaubriand (PSD-MA), que ao longo de seus cinco anos de mandato advogou incansavelmente pela troca da política nacionalista pelo liberalismo econômico.
— Estou em completo desacordo. Esse projeto [da Eletrobras] deveria ser sacudido sumariamente na Sapucaia, como lixo que é — disse o senador. — O capital estrangeiro vem sendo perseguido de maneira a mais primitiva e estúpida. Sem a iniciativa privada, não há salvação. Essas organizações estatais estão matando o Brasil.
Chateaubriand tinha relações estreitas com a Light. Na década de 1920, ele contara com dinheiro da multinacional para comprar o primeiro jornal de seu futuro império das comunicações. Três décadas mais tarde, ele colocaria a TV Tupi, a revista O Cruzeiro e o jornal Diário da Noite, entre outros veículos de sua propriedade, numa campanha feroz contra a Eletrobras.
Assim que Vargas apresentou o projeto, o dono de uma pequena loja de aparelhos de rádio e televisão localizada no centro do Rio correu para o Congresso Nacional pedindo que os parlamentares não aprovassem a criação da estatal com aquele nome. Motivo: a loja dele se chamava Electrobraz.
Foi o suficiente para que o senador Abelardo Jurema (PSD-PB) apresentasse uma emenda ao projeto de lei mudando o nome de Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) para Centrais Elétricas Federais (Celfe). O historiador Paulo Brandi, do Centro de Memória da Eletricidade no Brasil, explica:
— Da mesma forma que “Petrobras”, a palavra “Eletrobras” estava muito associada a Getúlio Vargas. A alteração do nome original tinha como objetivo tirar a participação de Getúlio na criação da empresa, deixar o presidente no passado, simplesmente apagar a memória.
A insossa sigla Celfe passou no Senado, porém acabaria sendo derrubada na Câmara. O deputado Raymundo Brito (PR-BA), um dos relatores do projeto na Câmara, argumentou:
— A possível semelhança dos nomes, por si mesma, não nos impressionou. Discordamos da supressão do nome Eletrobras, para todos nós muito significativo, por copiosas razões psicológicas e sentimentais. Além disso, se as duas empresas se dedicam a ramos diversos, não haverá concorrência possível, perdendo-se a razão do privilégio da exclusividade legal.
De acordo com o projeto de Vargas, a Eletrobras seria também uma fábrica, produzindo os geradores, as turbinas, os transformadores e os demais equipamentos pesados que ela mesma usaria para gerar e distribuir eletricidade. O senador Mem de Sá (PL-RS) propôs uma emenda para apagar esse trecho do projeto.
— É inconveniente que a Eletrobras seja fracionada em múltiplos empreendimentos e entre na indústria do material elétrico. Haveria uma dispersão de esforços, sendo drenados para o campo dessa indústria recursos preciosos para a finalidade que torna a empresa necessária. Também condenável é essa ociosa e onerosa estatização da economia, pela invasão do poder público numa atividade que a indústria privada tem desenvolvido com plena capacidade.
O senador Domingos Vellasco (PSB-GO) concordou:
— A criação da Eletrobras, por si só, será um incentivo ao desenvolvimento da indústria de material elétrico, tal como está acontecendo com a Petrobras, que propiciou a montagem no país da indústria de tubos sem costura e fomentou o progresso de outras empresas particulares correlatas. Como socialista, sou favorável à socialização das empresas, mas contrário à sua estatização, que conduz ao gigantismo do Estado, o que o socialismo combate.
Assim como Getúlio Vargas, tampouco os presidentes Café Filho e Juscelino Kubitschek receberam do Congresso o projeto da Eletrobras aprovado. A aprovação dos parlamentares ocorreu no governo de Jânio Quadros, em 1961. Ao sancionar a lei, Jânio vetou o trecho que permitiria à estatal dedicar-se à produção de material elétrico.
A faixa inaugural da Eletrobras seria por fim cortada em 1962, pelo presidente João Goulart e pelo primeiro-ministro Tancredo Neves, durante o breve período em que o Brasil experimentou o parlamentarismo.
Uma das primeiras missões da Eletrobras foi acabar com o isolamento elétrico de parte do Brasil. O Rio de Janeiro, o Espírito Santo, o Rio Grande do Sul e parte de Minas Gerais operavam em 50 Hz, enquanto todo o restante do país funcionava em 60 Hz. Isso dificultava, por exemplo, que o Rio, em época de racionamento, fosse socorrido pela eletricidade de São Paulo. Além disso, os aparelhos elétricos dos estados de 60 Hz não funcionavam nos estados de 50 Hz. O processo de unificação da frequência em 60 Hz se estendeu por mais de uma década.
A Eletrobras acabaria incorporando as suas grandes adversárias históricas. A Amforp foi comprada pela estatal em 1964. A Light, em 1979. Graças à atuação da nova empresa, a capacidade instalada no Brasil entre 1960 e 1980 aumentou 600%, passando de 5 GW para 34 GW, o que sustentou o “milagre econômico brasileiro” da década de 1970. Atualmente, a capacidade é de 150 GW.
Dona ou sócia de uma série de empresas, como Furnas, Itaipu e Eletronuclear, a holding Eletrobras produz um terço da energia do país e detém metade das linhas de transmissão.
No mesmo dia em que João Goulart inaugurou a Eletrobras no Rio, o senador Paulo Fender (PTB-PA), correligionário do presidente, discursou em Brasília:
— As congratulações que desta tribuna formulo para com o Governo encontram eco na carta testamento de Getúlio Vargas. Dizia o eminente brasileiro que a Eletrobras havia sido obstada ao máximo e ele morria sem realizar seu sonho de nacionalista de instalá-la. Representa o ato do Governo, portanto, a realização de um objetivo de Getúlio e de todos os trabalhistas do país, que se regozijam a esta hora por havermos avançado tanto nas conquistas democrático-sociais.
A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin | Edição de multimídia: Bernardo Ururahy | Infografia: Claudio Portella | Pesquisa histórica: Arquivo do Senado.