Kanni Wignaraja, Rebelión/IHU-Unisinos, 11 de agosto de 2020
A regra número um do manual de gerenciamento de crise é a seguinte: quando você se encontrar em um buraco, primeiro, pare de cavar.
O turbilhão em que nos afundou o surto de covid-19 tem levado vários países a considerar a possibilidade de estabelecer incentivos fiscais em grande escala e a impressão de dinheiro para mitigar as duas crises que estão se desenvolvendo simultaneamente: a pandemia e a desenfreada depressão econômica.
A implementação dessas medidas é essencial, mas devem ser estratégicas e sustentáveis. Para lidar com as crises atuais, devemos evitar plantar as sementes de outras novas, já que existe muito em jogo.
Chegou a hora de incorporar um novo elemento ao conjunto de medidas políticas que os governos estão adotando. Um fator conhecido, mas que esquecemos por completo: a Renda Básica Universal, um mecanismo necessário dentro do pacote de medidas econômicas que nos ajudarão a sair deste abismo.
Os detratores, e há muitos, dirão que não funcionará porque nenhum país pode se dar ao luxo de distribuir dinheiro regularmente a todos os cidadãos. Argumentarão que teremos déficits insustentáveis, que não podem ser financiados.
Esta é uma preocupação válida. Mas a alternativa resultará em um maior aumento da desigualdade, aumentando as tensões sociais que custariam ainda mais aos governos e representariam um risco maior de conflito social para os países.
A pandemia que começou na China atingiu toda a Ásia e até mesmo além, expondo as desigualdades e vulnerabilidades de grandes populações da região.
Isso inclui trabalhadores informais, estimados em 1,3 bilhão de pessoas e dois terços da força de trabalho da Ásia-Pacífico, bem como migrantes, com quase 100 milhões de deslocados, somente na Índia.
Se uma grande parte de uma geração inteira perder seu sustento, sem uma rede de segurança, os custos sociais serão insuportavelmente altos. A instabilidade econômica seguirá a eclosão das tensões sociais.
Nestes momentos em que temos que reativar economias em plena erosão, o benefício que a estabilidade social traria seria enorme, o que constitui um argumento ainda mais convincente a favor da Renda Básica Universal.
Um novo contrato social deve emergir desta crise que reequilibra as profundas desigualdades que prevalecem nas sociedades. Para ser franco: a questão não deveria mais ser se os recursos para uma proteção social eficaz podem ser encontrados, mas como podem ser encontrados. A Renda Básica Universal promete ser um elemento útil de tal estrutura.
Os Estados Unidos e o Canadá já estão fazendo esses planos. O Alasca, de fato, vem fazendo pagamentos anuais desse tipo para todos os residentes do estado, há décadas. O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, prometeu 2.000 dólares canadenses por mês, durante os próximos quatro meses, aos trabalhadores que perderam sua renda devido à pandemia.
Agora, precisamos expandi-la e fazê-la funcionar a longo prazo, e podemos. Devemos abordá-la de forma diferente do que no passado. Não devemos vê-la como um folheto, nem como uma solução adicional a ser acrescentada àquelas já existentes. Em vez disso, devemos usar as crises gêmeas para reavaliar onde ainda estamos "cavando".
Precisaremos de impostos justos. Os países terão que trabalhar juntos, trocando dados, para evitar que pessoas físicas e jurídicas soneguem impostos. Todos nós devemos pagar nossa parte justa. Em sã consciência, não podemos mais privatizar ganhos e socializar perdas.
Devemos acabar com os subsídios, especialmente para os combustíveis fósseis, que atrapalham os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente os objetivos da mudança climática. Isso beneficiaria a todos nós, ao mesmo tempo que geraria recursos financeiros para uma renda básica, mas também para apoiar empresas de combustíveis fósseis.
Warren Buffet e Bill Gates, entre as pessoas mais ricas do planeta, defendem que os ricos paguem mais impostos, cuja falta conduziu a uma disparidade enorme e crescente.
De acordo com o Relatório de Riqueza Global de 2018, do Credit Suisse, os 10% das pessoas mais ricas do mundo possuem 85% da riqueza.
As multinacionais também não pagam sua parte justa. Apple, Amazon, Google e Walmart, para citar apenas algumas, geram lucros inconcebíveis e, após aproveitar todas as brechas no sistema tributário, pagam quantias limitadas.
Se as 1000 maiores corporações do mundo fossem tributadas, isso permitiria que uma modesta renda básica fosse distribuída de maneira justa e razoável em todo o mundo.
Algo está simplesmente errado e não está funcionando quando os governos são privados dos fundos que deveriam legitimamente ter para criar um estado melhor.
Para que os detratores não pensem que que se trata de uma teoria da esquerda, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico abordou a ideia de concorrência fiscal por anos. Seus membros incluem os Estados Unidos, Canadá e países da Europa Ocidental.
Isto é o que dizem seus especialistas em política tributária: "Para funcionar de maneira eficaz, uma economia global precisa de algumas regras básicas aceitáveis para orientar governos e empresas".
"Tal estrutura pode ajudar as empresas a movimentar capital para locais onde possa otimizar seu desempenho, sem impedir a meta dos governos nacionais de atender às expectativas legítimas de seus cidadãos de uma parcela justa dos benefícios e custos da globalização", acrescentam.
Alcançar "regras básicas aceitáveis" e "uma parte justa dos benefícios e custos" exigirá coordenação global, porque se um país começa a cobrar impostos desta forma, o capital com alta capacidade de mobilidade irá fugir para países que não o fazem.
Não há dúvida de que a Renda Básica Universal será difícil de implementar. É importante considerar de forma justa os prós e contras, os motivos pelos quais não foi amplamente implementada até agora e o que pode torná-la viável.
Um fator complicador chave, além de seu custo, é que não chegaria no vácuo. Teria de se adequar e complementar os programas de assistência social existentes, tanto com base em seguros, como com base nas necessidades, e seriam necessárias regras para evitar a cobrança de dupla prestação.
A mudança para esse sistema deve garantir que os incentivos para se ter um emprego permaneçam intactos.
Isso é relativamente simples de fazer: uma Renda Básica Universal deve ser suficiente para manter uma pessoa em um mínimo modesto, deixando incentivos suficientes para trabalhar, economizar e investir.
Finalmente, bons argumentos podem ser feitos para vinculá-la a condições muito específicas, algumas relacionadas a bens públicos, como vacinar todas as crianças e garantir que elas frequentem a escola.
Essas condições seletivas não minariam o objetivo principal de eliminar a pobreza e permitir que as pessoas de baixa renda assumam riscos calculados ao tentar sair da pobreza.
A alternativa de não ter uma Renda Básica Universal é o aumento da probabilidade de agitação social, conflito, migração em massa incontrolável e a proliferação de grupos extremistas que se capitalizam e fermentam devido à desilusão social. É neste contexto que devemos considerar seriamente sua implementação bem planejada, para que as crises possam golpear, mas não destruir.
Kanni Wignaraja é subsecretária-geral da ONU e diretora regional do PNUD para a Ásia e o Pacífico. Artigo publicado por Rebelión e reproduzido do IHU-Unisinos. Tradução do Cepat.