O surgimento de grandes monopólios, como as empresas de tecnologia da informação Apple, Amazon, Google, Microsoft e Facebook, são consequência “de uma mutação profunda do capitalismo, que se tornou um modo de produção de imagens, voltado sobretudo para o desejo e não para a necessidade
João Vitor Santos entrevista Eugenio Bucci, IHU-Unisinos, 24 de agosto de 2020
IHU On-Line - Como o senhor avalia o impacto das chamadas big techs, Apple, Amazon, Google, Microsoft, Facebook etc., na atual geopolítica?
Eugênio Bucci - O impacto é enorme, o que me parece bastante evidente. Fora isso, eu não sei se existem parâmetros para avaliar o impacto que você chamou, na sua pergunta, de "geopolítico".
Há, sim, um impacto econômico que é devastador, em muitos aspectos. Cito apenas um deles. Essas big techs drenaram a maior parte dos recursos do mercado publicitário, o que levou os jornais e as emissoras tradicionais à falência ou a alguma situação pré-falimentar. O impacto político é também gigantesco. Veja que, na dinâmica das redes sociais, a emoção sobrepuja a razão em praticamente todas as dimensões, o que favorece a propagação dos discursos de ódio, das teorias conspiratórias e das mentiras mais deslavadas. A predominância da emoção sobre a razão, em si mesma, não é nem nunca foi problema. Agora, entretanto, como o padrão comunicacional das redes sociais é absolutamente hegemônico, não deixando espaço para quase mais nada, essa predominância da emoção sobre a razão é um problema, porque vira a regra geral. Guiadas pela emoção, apenas, as massas são mais propensas ao ódio, ao preconceito, às teorias conspiratórias. Disso resulta, entre outros efeitos, o crescimento das forças populistas de extrema direita que vêm ameaçando cada vez mais os fundamentos do Estado de direito e da ordem democrática. Isso sem falar na polarização em escala global, que, esta sim, acarreta impactos para o equilíbrio geopolítico entre as nações.
IHU On-Line - O que as ações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre empresas asiáticas de tecnologia, como Tik Tok, revelam acerca das big techs e a política de nosso tempo?
Eugênio Bucci - Trump é um caso clínico. Um caso criminal também. Difícil compreendê-lo dentro de uma racionalidade. Note que ele age por enfrentamentos – contra os manifestantes no interior dos Estados Unidos, contra os chineses e as empresas chinesas, contra a oposição democrata, contra agora o Twitter e eventualmente até contra o Facebook. Trump quer chamar tropas do exército para reprimir passeatas. É um celerado. Quer impedir as pessoas de votarem pelos correios para, com isso, dar um tapetão nas eleições. É um personagem que traz um alto potencial de desastre. Quanto menos ele durar no poder, melhor. Antes os problemas que ele causa se restringissem às empresas chinesas. Se fosse só isso, estaríamos no lucro. Mas estamos no prejuízo, porque Trump é uma ameaça constante à paz, qualquer que seja o âmbito considerado, seja ele local, nacional, regional ou mundial.
IHU On-Line - De que forma as lógicas das big techs incidem sobre a política, desde o global ao local? Quais as consequências dessa incidência?
Eugênio Bucci - As chamadas big techs conseguiram um feito inacreditável: elas são empresas monopolistas em escala global. O Facebook é um monopólio global, ou quase isso, em matéria de plataformas sociais. Lembre-se de que o Facebook é dono do WhatsApp e do Instagram. O Google é um monopólio global em mercados de busca na internet. Quando o vício do monopólio toma corpo num só país, e se é um país livre e democrático, a legislação nacional tem meios de contê-lo e de proteger a livre concorrência. No entanto, quando o monopólio é uma deformação global, as legislações nacionais não o alcançam. É esse o nosso problema agora. Como combater, com legislações nacionais, um monopólio global? Como deter esses dois supermonopólios globais? Por onde agir? Pela União Europeia? Pelo Congresso dos Estados Unidos? Por acordos multilaterais? Como fazer? Difícil responder. Difícil saber como agir. E onde agir.
Efeitos colaterais do monopólio
O pior é que o desafio é ainda maior do que isso. Os efeitos colaterais do monopólio não são apenas econômicos, mas também políticos. Na política esses efeitos aparecem nas novas possibilidades de manipulação dos processos decisórios da democracia. Como os conglomerados da internet têm muito poder, as ferramentas desses conglomerados, se caírem em mãos mal-intencionadas, podem distorcer os processos decisórios, como eleições, consultas populares e plebiscitos. Foi o que aconteceu no Brexit. Foi o que aconteceu nas eleições de Trump em 2016. Há uma possibilidade de que isso tenha ocorrido também nas eleições gerais no Brasil em 2018, mas isso ainda terá de ser mais estudado – ainda não há elementos para termos certeza a respeito. Nessa perspectiva, a incidência das big techs sobre a política é da maior gravidade.
IHU On-Line - Que economia é essa que emerge do contexto dessas grandes empresas? Em que medida elas atualizam o capitalismo para o século XXI?
Eugênio Bucci - O próprio ideal do capitalismo sai machucado disso tudo. Capitalismo supõe concorrência e liberdade de iniciativa. Ora, a prática desses conglomerados monopolistas, conforme já vem sendo investigado pelo Congresso nos Estados Unidos, é de combate atroz contra qualquer possível concorrência que comece a aparecer. O que está se desenhando no cenário global, além do cenário estadunidense, é um capitalismo de taxas absurdas de exploração e de lucro, com forte incremento da especulação, e quase nenhuma possibilidade de concorrência e livre iniciativa. Está emergindo no planeta um capitalismo deformado, piorado, desumano e sem freios para a ganância.
IHU On-Line - Quais as consequências sociais dessa economia que vai além de cifras e também é mensurada em bytes?
Eugênio Bucci - Nesse ponto, é bom nos lembrarmos de que as big techs não são a causa do grande "mal-estar" da ordem mundial. Elas são um dos efeitos, entre outros, de uma mutação mais profunda do capitalismo, que se tornou um modo de produção das imagens (mais do que de mercadorias corpóreas), voltado sobretudo para o desejo, não para a necessidade. Esse capitalismo deformado é fortemente comprometido com a criação de privilégios, com a aceleração na acumulação de capital, com o aumento da desigualdade relativa (dentro dos países) e com a expulsão de grandes massas do mercado de trabalho. As big techs não são criadoras dessa ordem. São resultado dela. São beneficiárias de uma transformação do capitalismo que já tinha ocorrido nos anos 60, quando Guy Debord detectou aquilo que chamou, com precisão, de Sociedade do Espetáculo. Essas big techs apenas levaram mais longe a lógica do Espetáculo. As consequências disso, em resumo, virão na forma de um mundo mais desumano.
IHU On-Line - Em artigo publicado recentemente no Estadão, o senhor diz que o ‘capital virou um narrador’ e que vivemos uma espécie de ‘industrialização da linguagem’. Gostaria que o senhor recuperasse e detalhasse essa perspectiva.
Eugênio Bucci - Exatamente. Obrigado pela pergunta. A resposta é simples. Se o capitalismo se especializa na fabricação e difusão da mercadoria como imagem (não mais como coisa corpórea), é óbvio que ele precisa trabalhar com a linguagem, com signos, não mais com as velhas matérias-primas (aço, madeira, algodão, petróleo, pedra). Qual a matéria-prima do capitalismo que vive de fabricar e vender imagens? Ora, a linguagem. Vivemos um tempo em que o imaginário foi industrializado, em que a linguagem é o chão de fábrica.
IHU On-Line - Nesse mesmo artigo, o senhor destaca que ao invés de recursos naturais, como o petróleo, água, minerais etc., essas big techs operam a partir da captura de dados. Diante disso, podemos afirmar que essas empresas fazem a exploração – ou até expropriação – de dados pessoais? Por quê?
Eugênio Bucci - Sim, os dados pessoais são hoje a obsessão do novo extrativismo. As big techs sabem disso, têm consciência disso e se aperfeiçoaram nisso. Cada um de nós, quando usa um computador, ouve música no celular, tira fotos e envia para as redes sociais, abastece os bancos de dados dos grandes conglomerados, que sabem tudo sobre a gente. Os dados têm enorme valor econômico porque permitem que a publicidade seja direcionada exatamente para aquela pessoa que tem o desejo específico (mais do que necessidade) de ter determinada marca, determinada grife, naquele exato momento. Os dados também são preciosos porque, nas mãos dos manipuladores da política, permitem virtualmente qualquer tipo de manobra e de adulteração. As big techs nos seduzem pelos olhos, pelos ouvidos, pelo paladar e pelos sentidos. Através dessa sedução, capturam nossos dados mais íntimos. Depois, comercializam isso, sem que recebamos um tostão furado.
IHU On-Line - Quais os desafios de conceber proteção de dados, diante da voracidade dessas empresas?
Eugênio Bucci - Os desafios são monstruosos. Estamos atrasados nessa agenda. Os nossos dados já estão todos catalogados, classificados, tratados, armazenados e comercializados. Quase não há mais o que proteger. Mesmo assim, vale tentar. Vale tentar pelo futuro. Nesse sentido, as políticas de proteção de dados pessoais são fundamentais. Já temos alguma legislação a respeito, mas há muito mais por fazer. Mais fundamental ainda é quebrar o monopólio dos grandes conglomerados. É uma agenda dificílima, mas, repito, vale tentar. A senadora Elizabeth Warren, do Partido Democrata, nos Estados Unidos, sempre falou contra esse monopólio. E sabe do que fala. Ela tem razão.
IHU On-Line - Nesse contexto de pandemia, em que todos são afetados de alguma forma, como o senhor analisa o papel da tecnologia? E, ao mesmo tempo, como esse cenário deve impactar o ‘negócio’ de empresas como Apple, Amazon, Google, Microsoft, Facebook etc.?
Eugênio Bucci - Apple, Facebook, Amazon, Google e Microsoft estão ganhando mais e não menos dinheiro com a pandemia. Suas ações se valorizam a galope. A Apple, que valia 1,5 trilhão (veja bem, TRIlhão) de dólares em junho, agora alcançou a marca de 1,84 trilhão. Para elas, a situação não poderia estar melhor. Quanto à tecnologia, a resposta é direta: a tecnologia é ótima. O problema não é a tecnologia, mas a forma de apropriação da tecnologia pelos monopólios globais, que escondem tudo, que não são transparentes em nada e que vasculham cada recôndito da nossa intimidade. É uma barbaridade o que acontece: as big techs, aos nossos olhos, são opacas, e nós, aos olhos delas, somos transparentes.
IHU On-Line - De que forma essa economia das big techs vem impactando os meios da comunicação e da informação? Como fica o jornalismo (de rádio, TV e jornal) em meio a esse cenário?
Eugênio Bucci - As big techs estão ajudando a quebrar os negócios das empresas jornalísticas, como eu já mencionei numa resposta anterior. Como elas desenvolveram máquinas de veiculação publicitária aparentemente mais eficientes, mais focadas, mais capilarizadas, mais individualizadas, tiraram os anunciantes dos veículos convencionais. Isso foi terrível. Ao mesmo tempo, a gente vê toda hora no Google ou nas redes sociais uma montanha de reportagens e de conteúdos jornalísticos. As big techs veiculam o trabalho dos jornalistas, mas a remuneração que oferecem por isso ainda é pouca – não sustenta as redações. Tudo isso precisa ser revisto. O pacto que os grandes conglomerados têm com as redações precisa mudar.
IHU On-Line - Em livro recente, o senhor analisa o impacto da desinformação sobre o debate público. Como as chamadas fake news estão afetando o modus operandi da democracia? E como o senhor analisa a forma como a sociedade e o Estado vêm combatendo essa onda de desinformação?
Eugênio Bucci - O efeito das tais fake news na democracia é mais ou menos como o efeito de um vírus. As fake news são mentiras industrializadas (ilegalmente industrializadas), fabricadas em escala industrial, que entram em circulação no lugar de relatos confiáveis. Com isso, as pessoas passam a se basear em mistificações ou fabulações paranoicas na hora de tomar decisões econômicas, políticas, religiosas ou existenciais. Uma tragédia. Essa indústria da desinformação (que se abastece das fake news, mas não apenas delas) leva as sociedades a tomarem decisões contrárias aos seus próprios interesses e às suas próprias necessidades.
Como combater isso? Do meu ponto de vista, deveríamos trabalhar em cinco eixos combinados:
(1) a quebra dos monopólios, que criam condições favoráveis à indústria ilegal da desinformação;
(2) obrigar os conglomerados a abrirem seus números (faturamento etc.) e seus códigos;
(3) fortalecimento (inclusive com políticas públicas de fomento) das organizações jornalísticas públicas e privadas;
(4) forte incremento da educação midiática;
(5) limitações legais contra os comportamentos abusivos na rede (como uso de robôs não autorizados, contas inautênticas que tapeiam o público, disparos em massa em serviços de mensageria privada, que deveriam servir para comunicações interpessoais e de grupos fechados).
IHU On-Line - Como o pensamento de Hannah Arendt pode nos inspirar a pensar essa política e a democracia atravessadas pelo contexto das fake news?
Eugênio Bucci - A filósofa Hannah Arendt se dedicou muito a refletir sobre verdade e mentira na política. Sua obra é uma luz solar até hoje. Talvez ela seja a pensadora que mais nos ajude a entender o valor da razão e do registro da verdade factual para que a política civilize o ser humano e para que a democracia seja possível. Ela ensina que, se perdemos o contato com a verdade dos fatos, a política se degrada em fanatismo e a democracia cede lugar para a tirania. E é exatamente isso o que vem acontecendo hoje: a verdade factual vem sendo atropelada pela indústria clandestina da desinformação (no ambiente das plataformas sociais dos conglomerados monopolistas) e, na outra ponta, os populistas de extrema direita vêm ganhando terreno e expandindo suas ambições autoritárias.
IHU On-Line - Sobre o cenário político brasileiro atual, ainda vivemos as consequências das irrupções de 2013? Por quê? E o que há de vir no curto e no médio prazo?
Eugênio Bucci - Acho que, de 2013, o que temos agora são reminiscências mediadas, indiretas. A extrema direita (que se situa fora do campo democrático) não perdeu a vergonha de ir às ruas, em bloco, em 2013. Foi um pouco depois, em 2015. Em 2016, ela já tinha se escancarado totalmente. Mas, agora, o que temos é outra coisa, não é mais o que houve em 2013. O que cresceu muito entre nós foram as falanges saudosistas da ditadura militar, que elogia a tortura, a censura, que idolatra as armas e abomina os livros.
Nossa situação é séria: estamos aí com um governante de traços indisfarçáveis de fascismo anacrônico, que despreza a vida humana, que em vez de dar os pêsames aos familiares dos mortos pela pandemia diz um inaceitável "e daí". Incrível que uma figura dessas tenha sido eleita como se fosse um antídoto contra a corrupção. Inacreditável. O que virá no curto e médio prazo? A resposta para o curto prazo até que é fácil: mais mortos. A resposta para o médio prazo depende. Depende do que a sociedade brasileira será capaz de fazer. A julgar pelo que vimos até aqui, a sociedade está prostrada, desmoralizada, submissa.
IHU On-Line - Qual sua análise quanto à narrativa que a imprensa brasileira vem tecendo na política nacional desde 2013? Como compreender os movimentos pré e pós-eleição de 2018? E o que esperar para 2020 e 2021?
Eugênio Bucci - Tenho duas dificuldades para responder a essa questão. A primeira, sobre a imprensa brasileira, é a impossibilidade de generalizar. O que quer dizer a expressão "imprensa brasileira"? A Globo? O Jornal da Record? O jornal Folha Universal? O site 247? Diferentes orientações e diferentes dimensões habitam essa categoria, a "imprensa brasileira". Não dá para avaliá-la com generalizações.
A segunda dificuldade é que não me dou bem com a futurologia. Para 2020 é fácil saber o que esperar, e eu já disse: mortes e mais mortes. Para 2021, depende. Depende dos que nos leem, se é que alguém nos lê. Depende das oposições, que não conseguem articular uma frente. Depende da elite financeira do Brasil, que não se envergonha de estar embarcada até o pescoço nesse governo dos despautérios e da desumanidade.