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As disputas judiciais em torno do Marco Temporal

8 de junho de 2024

Lucas de Campos Zinet, para Le Monde Diplomatique

 

Em um cenário em que a elevação da temperatura média da Terra pode desencadear alterações no sistema climático planetário, ultrapassando pontos de não retorno, a preservação de florestas tropicais é decisiva na manutenção de condições de perpetuação da vida humana na Terra.

 

No dia 22 de abril, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, relator das ações judiciais que tratam da Lei 14.701 de 2023 (a Lei Marco Temporal), suspendeu a tramitação de todas elas e convocou iniciativas de conciliação e mediação. A decisão é mais um capítulo nas disputas em torno da tese que torna o direito de demarcação de terras indígenas significativamente mais restrito no Brasil.

O Marco Temporal é a tese que defende que o direito de demarcação de terras indígenas previsto na Constituição Federal de 1988 é aplicável somente aos territórios indígenas que já estavam em posse de grupos e etnias no momento de promulgação do texto constitucional. Ou seja, a tese impede que povos que foram expulsos de suas terras antes da promulgação da Constituição reivindiquem o direito à demarcação, mesmo que se prove que historicamente tenham sido terras de grupos e etnias indígenas.

Esse debate, embora muito tratado como um elemento relacionado apenas aos direitos indígenas, é questão central para a disputa ecológica no país, sendo o vértice para a preservação de florestas nativas. A disputa sobre o patamar de desmatamento e, portanto, do enfrentamento da crise ecológica passa, necessariamente, pelo tema da demarcação das terras indígenas.

Para compreensão das dimensões e expressões dessa disputa, um breve resgate histórico é necessário.

 

Histórico de avanço da tese do Marco Temporal

 

Defendida por juristas como Ives Granda, a tese do Marco Temporal teve repercussão significativa pela primeira vez no julgamento da Ação Popular 3.388, apresentada em 2008, que questionou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na decisão do caso a demarcação foi reconhecida pelo Judiciário, mas o acórdão menciona a tese e indica ser um critério legítimo para decisão de outras demarcações (a Terra Indígena Raposa do Sol era ocupada por indígenas no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988).

Desde então, a pauta tornou-se uma das principais bandeiras do agronegócio brasileiro e sua aprovação uma das prioridades das representações políticas e institucionais do setor. Foram diversas as manifestações de ruralistas em favor da tese, instituições como Associação Brasileira de Produtores de Soja; Sociedade Rural Brasileira; Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Mato Grosso; Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade; Movimento de Defesa da Propriedade e Dignidade e Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, fizeram pressão judicial e política pela aprovação do Marco Temporal.

A primeira vitória institucional mais relevante da tese é a publicação do parecer 01 de 2017 da Advocacia Geral da União. No parecer, o órgão afirma que:

 

“A Corte Suprema tem entendimento muito consolidado a respeito de dois tópicos fundamentais para a demarcação das terras indígenas: 1) a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena; 2) a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.”

 

Esse parecer, que não necessariamente vincularia (pois sua natureza era opinativa) o governo federal, passou a ser a referência para política de demarcação da gestão de Michael Temer. A Defensoria Pública da União, junto com diversas comunidades indígenas, ingressou nas disputas judiciais sobre o tema questionado juridicamente o documento da AGU.

No final de 2023, um primeiro revés mais significativo para os ruralistas ocorreu com a decisão do STF que, por nove votos a dois, negou a constitucionalidade da tese. Essa decisão só foi possível por causa da ampla mobilização do movimento indígena em relação à pauta, que impactou também importantes setores da opinião pública.

Contudo, apesar dessa vitória, em novembro último, o Congresso Nacional, de maioria conservadora e com peso significativo da bancada ruralista, aprovou a Lei 14.701 de 2023, que consagra a tese do Marco Temporal.

A lei possui 33 artigos e regulamenta o artigo 231 da Constituição Federal. Há, centralmente, três pontos do texto que impactam diretamente as terras indígenas. O primeiro é a própria tese do Marco Temporal que é consagrada em vários artigos.

Além da tese, a lei garante outra demanda de setores ruralistas que é a vedação à qualquer ampliação de terras indígenas já demarcadas. Essa restrição, sem qualquer previsão de exceção, é garantida no artigo 13 da lei 14.701.

O terceiro aspecto se localiza no artigo 20, que prevê a possibilidade de exploração de “alternativas energéticas e riquezas de cunho estratégicos” em terras indígenas “independente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão federal competente”. Previsão que fere não apenas o texto constitucional brasileiro, mas diversas normas internacionais sobre o tema, com destaque para a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que garante direito de consulta aos povos indígenas em casos que impactam bens ou direitos.

Tão logo a legislação foi aprovada, diversas ações judiciais foram protocoladas questionando sua constitucionalidade.

O Psol, junto com a Rede e a Articulação dos Povos Indígenas, ingressou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra a lei em sua integralidade. PT, PCdoB e PV protocolaram, em conjunto, outra ação do mesmo tipo no qual questionam alguns artigos, assim como fez o PDT por meio de outra ADI.

De outro lado, o PP, junto com o PL e o Republicanos, provocou o STF pelo reconhecimento da constitucionalidade da legislação.

Há ainda uma proposta de emenda constitucional (48 de 2023) apresentada pelo senador Dr. Hiran do PP de Roraima, em conjunto com mais 26 senadores, que busca incluir a tese na Constituição Federal.

Mobilização indígena na retomada do julgamento do marco temporal no STF (Hellen Loures/Cimi)

 

A opção pela conciliação

Como afirmado, Gilmar Mendes suspendeu os andamentos em todas as ações judiciais que tratam do Marco Temporal e convocou tratativas de conciliação e mediação para “pacificação desse conflito social”. Para as audiências de conciliação serão convocadas não somente as organizações indígenas, mas as instituições do Estado e representações do agronegócio.

A medida não foi bem recebida pelas organizações indígenas e ativistas da pauta que exigem a reafirmação da inconstitucionalidade da tese e observam com desconfiança a opção do ministro.

No Brasil, os setores proprietários do campo sempre tiveram uma gama vasta de recursos para defesa de seus interesses. Articulando violência social (são inúmeros os massacres de grupos e lideranças que ameaçaram de alguma forma esses setores) e intenso domínio da institucionalidade estatal, a burguesia agrária brasileira atravessou a história garantindo uma posição bastante favorável nas dinâmicas das relações socioeconômicas.

Ao que tudo indica, esse cenário não se altera com a medida aparentemente mais democrática que, a priori, a conciliação representa. A desconfiança das organizações indígenas é, desse modo, legítima.

Em primeiro lugar, a convocação à conciliação ignora que a corte já reconheceu, em plenário, a inconstitucionalidade da tese. Ou seja, o ministro Gilmar Mendes (que chegou a afirmar que sem Marco Temporal poderia haver indígenas reivindicando a praia de Copacabana) deveria reafirmar a decisão tomada pela corte em 2023 e decidir pela inconstitucionalidade da lei aprovada, não convocar audiências de conciliação. Trata-se de iniciativa que legitima um questionamento em pleno desacordo com a decisão do próprio tribunal.

Além disso, a própria convocação dos representantes do agronegócio reforça uma ideia de que o setor é prejudicado de forma ilegítima pela demarcação de terras indígenas no Brasil.

Os grandes produtores rurais brasileiros nunca tiveram restrições significativas à ampliação de suas propriedades; ao contrário, o Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo. Segundo o Censo Agropecuário, em 2006, as terras destinadas à atividade agropecuária ocupavam 39% do território nacional, com tamanho médio de 64 hectares por proprietário. Onze anos depois, 41% do território brasileiro é ocupado por terras agricultáveis, com tamanho médio de 69 hectares por proprietário. Ou seja, a tendência à concentração de terra sequer vem sendo combatida. A convocação de setores do agronegócio para as audiências de conciliação sugere uma necessidade de pactuação de interesses que não é apenas impossível, como ilegítima.

Por último, há um processo de retirada de direitos trabalhistas e sociais que atinge diversos países no capitalismo contemporâneo que, em várias situações, utilizou-se de iniciativas de conciliação para impor retrocessos de direitos de forma aparentemente mais democrática.

No campo do Direito do Trabalho no Brasil esse recurso foi parte de alterações na legislação trabalhista bastante negativas do ponto de vista do trabalho. Campanhas de conciliação do Judiciário e as alterações na legislação trabalhista que incentivaram essa via processual nunca impediram retrocessos, ao contrário, muitas vezes facilitaram. Em desigualdade de condições, a saída “mais célere”, mais “participativa”, mais “democrática” na prática representou outra face de um mesmo processo de retirada de direitos.

 

Marco Temporal e crise climática

Se do ponto de vista das culturas, costumes e modos de vida dos povos indígenas a tese do Marco Temporal representa uma ameaça étnica, é seguro afirmar que a disputa sobre qual deve ser o critério para demarcação de terras indígenas é uma das mais centrais (se não a principal) na relação que o Brasil tem e terá com a crise climática.

São diversos os estudos que evidenciam que os territórios indígenas são as áreas de maior proteção de florestas tropicais no Brasil (tendência que se confirma também no cenário mundial), em particular no contexto amazônico.

O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia publicou em 2023 que o impacto ambiental da aprovação do Marco Temporal pode ser o desaparecimento de 23 milhões (cenário menos grave) a 55 milhões (cenário mais grave) de hectares de áreas de vegetação nativas.

Há uma série de desafios no enfrentamento à crise climática no território brasileiro e a proteção de florestas tropicais é certamente um dos principais. A luta pela manutenção da extensão desses biomas é um dos pilares na contenção de alterações ecológicas bastante significativas que impactam na frequência (e severidade) dos eventos extremos, assim como nas alterações no cotidiano que as mudanças climáticas exigirão (e já exigem em alguns casos).

Estão diretamente relacionadas às florestas tropicais, à emissão de carbono, ao regime de chuvas, ao enfrentamento de ondas de calor, à manutenção de sistemas com elevado nível de biodiversidade – questões centrais para mitigação dos efeitos das mudanças climáticas no Brasil.

Observando, por exemplo, a emissão de carbono, segundo estudo da Academia de Ciências da China, de 2001 a 2022 os incêndios florestais globais emitiram na atmosfera 33,9 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Em um cenário em que a elevação da temperatura média da Terra pode desencadear alterações no sistema climático planetário, ultrapassando pontos de não retorno, a preservação de florestas tropicais é decisiva na manutenção de condições de perpetuação da vida humana na Terra.

Em que pese o agronegócio tenha sido o principal setor de defesa do Marco Temporal, o avanço da mineração é também uma ameaça que a tese carrega.

Da mineração em grande escala ao garimpo ilegal, são diversos os efeitos deletérios registrados e projetados em situações em que a atividade mineradora é realizada de forma predatória. Mariana e Brumadinho são apenas dois exemplos de um modelo de mineração que é altamente espoliativo, voltado principalmente a demandas externas e que com o avanço do Marco Temporal poderá ser cada vez mais visto nos territórios indígenas.

Quanto ao garimpo ilegal, as consequências são ilustrativas no caso dos yanomani. Contaminação de rios, desmatamento, inviabilização das atividades de pesca, além da violência física e cultural contra povos indígenas.

Longe de representar um risco pontual, a mineração em terras indígenas vem num crescente nos últimos anos. Um estudo publicado pelo MAPBiomas em 2023 indica que entre 2010 e 2021 as áreas ocupadas pelo garimpo ilegal dentro de terras indígenas cresceu 625%.

Os processos de alteração ecológica que o Marco Temporal pode desencadear nos territórios indígenas estão longe de ser simbólicos ou representativos, são significativos e impactarão no enfrentamento a crise climática. Vale lembrar, que segundo a Articulação dos Povos Indígenas, de forma direta ou indireta, todos os territórios indígenas ficam mais vulneráveis juridicamente com o avanço do Marco Temporal.

 

Conclusão

A disputa em torno do Marco Temporal está inserida em um desafio maior, a necessidade de uma profunda alteração no sentido e na forma das atividades extrativistas que marcam a formação social e econômica brasileira.

Exploração intensa do trabalho e a apropriação predatória da natureza talvez sejam as principais permanências nas dinâmicas socioeconômicas brasileiras. Foram, certamente, dois fundamentos centrais de todos os ciclos econômicos brasileiros.

Para além de um impacto objetivo nos biomas brasileiros, essa tradição traz um impacto subjetivo que é um entranhamento em nossas raízes de uma forma de se relacionar com os recursos naturais de maneira predatória, mesmo as tradições críticas ou progressistas da sociedade brasileira.

Trata-se de um olhar que presume uma certa condição de “eldorado” às possibilidades que as dinâmicas ecológicas de nossos ecossistemas oferecem, ignorando cada vez mais impactos dramáticos (e muitas vezes imprevisíveis) que estão relacionados às formas e intensidades da apropriação

Nesse sentido, é ilustrativa a manutenção nas investidas para exploração de petróleo na bacia do Rio Amazonas. Em primeiro lugar pelo impacto de devastação ambiental na região (classificado como de risco máximo pelo Ibama), em segundo lugar pela manutenção da escolha de exploração de um tipo de combustível que está condenando a humanidade a nível global.

Se, por um lado, foi importante a vitória sobre a política negacionista e ecocida de Bolsonaro, por outro, é necessário que o governo Lula seja mais coerente com a lida da crise climática no que diz respeito, no mínimo, à transição energética e enfrentamento ao agronegócio.

Os eventos extremos no Rio Grande do Sul mostraram o tamanho dos desafios que a emergência climática traz e intensifica os debates sobre saídas possíveis. Nesse cenário, o combate ao Marco Temporal é central na definição do mundo que será oferecido as próximas gerações.

 

Lucas de Campos Zinet é mestre em Direito pela UFMG e advogado.

Originalmente postado em: https://diplomatique.org.br/as-disputas-judiciais-marco-temporal/