Em todo o mundo, os ricos estão pulando filas com as “férias da vacina” – enquanto 130 países, onde vivem 2,5 bilhões de pessoas, esperam por uma única dose. O fim da pandemia é o início de uma nova era da desigualdade global e a luta de classe.
Adele Walton, Jacobin Brasil, 19 de março de 2021. Tradução de Felipe Kusnitzki
Após um ano do início da pandemia, o anúncio da vacina foi um farol de esperança. Empresas como Pfizer, Moderna e AztraZeneca têm distribuído a vacina em escala global. No entanto, com as previsões de que a maioria dos países pobres não alcançará a imunização em massa contra o vírus até pelo menos 2024, a desigualdade global – que já vinha crescendo há anos antes do surto – parece destinada a ser consolidada por uma divisão entre os vacinados ricos e não-vacinados pobres.
Talvez a manifestação mais óbvia e deprimente desse desequilíbrio seja a nova tendência de “férias da vacina”: oportunidades para os ricos furarem a fila.
Um clube de elite que começou a oferecer aos membros com 65 anos ou mais férias vacinais em janeiro é o Knightsbridge Circle, cujos membros supostamente têm um patrimônio líquido médio de US$ 800 milhões. Com destinos que vão desde os Emirados Árabes Unidos à Índia e Madagascar, esses privilégios estão disponíveis apenas para aqueles que podem pagar a taxa de £ 40.000. (No Reino Unido, as restrições nacionais a viagens classificam esses tipos de viagem como ilegais – mas o dinheiro pode garantir imunidade tanto ao vírus quanto às regras.)
No entanto, a rápida campanha de vacinação na Grã-Bretanha significa que os milionários locais não têm aproveitado essas ofertas tanto quanto poderiam estar aproveitando. Nos países do Norte Global, onde o processo de vacinação tem sido mais lento, como no Canadá, as “férias da vacina” estão se mostrando mais populares.
No mês passado, o CEO do maior fundo de pensão do Canadá, Mark Machin, renunciou após ignorar as restrições e viajar para Dubai para dar o golpe, enquanto em janeiro, um executivo de cassino canadense e sua esposa, atriz, viajaram para uma cidade remota habitada pela comunidade indígena da Primeira Nação de White River para furar a fila da vacina: eles fingiram ser trabalhadores de um motel local e foram vacinados antes de voar de volta, em seu avião fretado, para sua luxuosa casa em Vancouver.
Um problema muito maior
Por mais tentador que seja protestar contra os indivíduos que usam e fornecem esses serviços, as “férias da vacina” são apenas sintomas de um problema muito maior. Eles são a marca de um mundo no qual o bem-estar e a sobrevivência não são direitos básicos que deveriam estar disponíveis a todos publicamente – são mercadorias para serem compradas e vendidas.
Na Grã-Bretanha, a Covid-19 tornou a correlação entre saúde e riqueza inevitável. Pessoas pobres têm maior probabilidade de morrer de Covid; áreas pobres têm maior probabilidade de apresentar altas taxas de infecção. Não é porque essas pessoas não podem pagar um voo para Dubai para as “férias da vacina”; é por causa dos cortes nos serviços de saúde pública em áreas mais pobres promovidos pela austeridade, baixos valores de auxílio-doença legal, empregos precários, moradias superlotadas e racismo institucional – entre muitos, muitos outros fatores inter-relacionados.
E essas divisões estão agora sendo ampliadas em escala global. Em fevereiro, o presidente Joe Biden anunciou um pacote de US $ 4 bilhões para o programa humanitário COVAX, que foi projetado no ano passado para melhorar a distribuição entre países ricos e pobres.
Apesar disso, a COVAX só começou sua implementação no mesmo mês, ficando muito atrás das implementações de vacinação já em andamento no Norte Global.
COVAX é uma alternativa à renúncia de patentes para as vacinas, que muitos acreditam que atingiria a imunidade global para a Covid muito mais rápido. O problema é que dispensar pacientes prejudica o lucro de ricas empresas farmacêuticas. Os EUA e o Reino Unido, que juntos alcançam a marca de quatro principais países com as maiores doses de vacinação administradas até agora, têm argumentado contra as isenções na Organização Mundial do Comércio, alegando que isso impediria o investimento privado. As prioridades aqui são claras; entretanto, cerca de 130 países ainda não receberam uma única dose sequer.
O grande desestabilizador
Falar sobre estarmos “todos juntos” esteve presente nas respostas das assessorias de imprensa dos governos durante a pandemia, mas as ações dos políticos e de seus pares ricos fizeram pouco para tornar essa fala em realidade.
A realidade é que a pandemia tem nos mostrado continuamente que a desigualdade de riqueza dita, nos termos mais rígidos, quem consegue viver e quem deve correr o risco de morrer. (Claro, não é apenas um problema para as pessoas pobres: o que nenhum dos jet-setters quer admitir é que deixar outros não-vacinados por longos períodos de tempo, localmente ou no exterior, aumenta a probabilidade de uma mutação do vírus que é imune ao seu caro – ou lucrativo – golpe de furar a fila da vacina.)
As desigualdades na saúde são sintomáticas de um sistema capitalista que intencionalmente falha em atender às necessidades mais básicas de algumas pessoas, enquanto esbanja luxos para outras. Os métodos capitalistas de distribuição são inerentemente injustos e, em tempos de crises de saúde, isso tem consequências devastadoras para aqueles que ocupam posições mais baixas na escala socioeconômica.
A democracia da saúde, por outro lado, significa garantir que todos tenham oportunidades iguais de alcançar um padrão decente de saúde e bem-estar para si mesmos – mas isso não pode acontecer enquanto as lógicas capitalistas que reforçam as desigualdades nos lucros da saúde têm permissão para impulsionar a distribuição destes serviços.
Covid-19 não foi o “grande equalizador” que alguns previram que seria em março de 2020. Ao invés disso, provou que as elites farão tudo o que puderem para impedir a existência de um mundo igualitário – e que somos nós que devemos lutar para que isso aconteça.