O 8 de Março de 2021 foi especial não apenas por ter sido proibido, que fosse definitivamente visado pelo fascismo, mas por alguns dos debates que deixou atrás de si. O fato de que fosse um 8M vivido a partir das redes sociais e dos meios de comunicação permitiu fundamentalmente visibilizar a questão do debate ideológico, mas tornou menos visível, por outro lado, a unidade, que penso ser mais potente do que o dissenso. Embora às vezes não pareça, o feminismo é atravessado por grandes consensos que o empurram sempre para frente. Os consensos são mais bem vistos nas ruas, os dissensos nas redes sociais e nos meios de comunicação. E um dos grandes consensos, necessário, que nos une, é que estamos unidas contra uma extrema-direita que já sabe que o feminismo é o inimigo a vencer. Aí nos encontrarão a todas.
Mas os debates teóricos, ideológicos, também são importantes numa teoria crítica que é alimentada por eles. E se ocorrem com respeito, não há razão para ter medo deles. E neste artigo quero concentrar-me na análise de uma parte do debate que ganhou visibilidade nos dias de hoje. Não há dúvida de que foi a quarta onda que transformou o feminismo neste século num movimento massivo e global. Ou seja, num dado momento, ocorre uma mudança. Passar de manifestações de mil ou dez mil para manifestações de meio milhão de mulheres em dois anos não é casual; como também não é que a greve de mulheres fosse um sucesso ou a conversão do feminismo num senso comum que desafia e atravessa a maioria das mulheres, muitas das quais até há pouco tempo não se sentiam envolvidas.
Evidentemente esta mudança tem a ver com muitas questões, mas se reflete muito bem no conteúdo das reivindicações, que aparecem nas dezenas de manifestos presentes hoje em dia nos meios de comunicação. Isto é, surgiram novas questões, ou novas formas de conceituar questões antigas (no feminismo, quase nada pode ser completamente novo), e que essas questões impactaram uma geração que até então não se identificava massivamente como feminista. A violência sexual (e a violência machista em geral), sua extensão, seu caráter sistêmico e estrutural foi uma destas questões que explodiu no mundo todo como literalmente insuportável para as mulheres.
Mas a segunda questão que explodiu foi a da reprodução social. Tem a ver com uma geração de jovens que cresceu acreditando serem iguais e sem colocar em dúvida direitos básicos como o aborto (com matizes, claro), o divórcio, o direito ao trabalho remunerado, a educação, a independência pessoal, etc., e que acordam um dia descobrindo que tudo era mentira. Acordam no meio de uma crise econômica e após um período de esvaziamento dos serviços públicos que colocou aquilo que esses serviços cobriam (mais ou menos) sobre os ombros, novamente, das mulheres. As economistas feministas avisaram-nos há muito tempo que aquilo a que algumas chamam trabalho de assistência e outras de reprodução social, estava sendo mantido precariamente graças a redes globais de mulheres que apoiam umas às outras numa cadeia que está enfraquecendo em cada elo até chegar às últimas, as que ninguém apoia. Mas a gravidade da crise, e a gravidade da resposta a ela, na forma de cortes e privatizações daquilo que era um alívio para as mulheres (saúde, educação, serviços públicos de assistência), provocou o colapso do sistema.
E é por isso que, chamem assim ou não, se reconheçam dessa forma ou não, a Quarta Onda se revela anticapitalista. Marx já disse que são as condições materiais que determinam a consciência, e esta Quarta Onda é um bom exemplo de tomada coletiva de consciência. O capitalismo em sua fase neoliberal, ao mesmo tempo que declara ser muito favorável aos direitos das mulheres e cria uma elite de mulheres que podem ter vidas muito melhores do que as suas mães ou avós, leva as vidas da maioria a uma situação que as torna inviáveis. Na realidade, os cortes nos serviços públicos são um ataque direto aos direitos das mulheres ou, em outras palavras, sem serviços públicos fortes não pode haver igualdade. O trabalho de reprodução social é a condição de possibilidade para o funcionamento da esfera produtiva; tem que ser feito. (Inciso: introduzir aqui o debate sobre se os homens devem ou não fazê-lo é enganar, pois o sistema não suportaria que, na esfera econômica, os homens fossem tratados da mesma forma que as mulheres; então tudo explodiria. E isso implicaria, além disso, ter acabado previamente com o patriarcado, algo que não vemos muito próximo).
Por isso, não é piada, nem poesia, dizer que, se pararmos, o mundo para. Ou as mulheres o fazem (e cada vez mais homens, sim), ou os serviços públicos o fazem, ou voltamos para casa, mas isso já não é possível. O neoliberalismo, como Fraser também explica muito bem, proletarizou as mulheres, mas também as emancipou num outro sentido, e não há como isso voltar atrás. O neoliberalismo leva-nos a uma sociedade devastadora na qual só os ricos poderão resolver a questão dos serviços assistenciais porque podem pagar por eles (principalmente a outras mulheres mais pobres, que, por sua vez, não podem pagá-los para cuidar de si mesmas ou de suas famílias). Certamente, a reprodução social não diz respeito apenas a esses serviços, é mais abrangente, e engloba tudo aquilo que mantém os vínculos sociais, inclusive o afeto, mas também a pura reprodução biológica está ficando em perigo e estamos cada vez mais nos encaminhando para sociedades em que ter filhos/as se tornou um privilégio, em que as mulheres são obrigadas a adiar sua maternidade ou a congelar seus óvulos para cumprirem suas obrigações na esfera produtiva.
Obviamente que este é o ponto principal, no qual a divisão sexual do trabalho e a exploração capitalista se juntam. E é o ponto em que se torna claro que o feminismo liberal nada tem a oferecer à grande maioria das mulheres porque a igualdade exige, entre outras coisas, socializar esse trabalho de cuidados e assistência. E não é opcional. Ou se socializa (e se distribui no seio das famílias), ou não haverá igualdade. Socializar implica muitas coisas; sistemas públicos universais de assistência implicam reformas econômicas estruturais que afetam os sistemas fiscais, a dívida externa, os cortes, as privatizações, os salários, etc… Em suma: redistribuição da riqueza. Ao incorporar as mulheres no trabalho produtivo sem socializar o trabalho reprodutivo, o que aconteceu é algo impossível, uma impossibilidade que pode ser mantida por algum tempo, mas não por muito mais tempo.
Fraser é autora desta frase: “Nenhuma sociedade que enfraqueça sistematicamente sua reprodução social consegue durar muito tempo”. Este é o ponto de conflito. Um sistema que há anos vem enfraquecendo sua reprodução social e mulheres que já não o podem suportar; e, ao mesmo tempo, um feminismo liberal que é capaz de ter livros de citações com feministas anticapitalistas como fetiche, mas que não aceita com naturalidade que essas citações sejam lidas em voz alta porque a interpelação é muito profunda. Um feminismo que pode permitir-se ser culturalmente antineoliberal, mas que economicamente não pode ir muito longe. E essa é a contradição, ou pelo menos uma das contradições mais importantes neste momento. O neoliberalismo, agora na boca de todas, é utilizado pelo feminismo liberal num sentido meramente cultural, mas não econômico. E a Quarta Onda é um movimento que surgiu exigindo que todas as vidas valham a pena ser vividas e isso não pode ser feito sem uma mudança radical no sistema econômico e não apenas no cultural.
Beatriz Gimeno é feminista e ativista espanhola dos direitos LGBTQI. Tradução: Fernando Lima das Neves. Publicado originalmente no Público.