Não são terraplanistas nem ignorantes. São gente culta e inteligente. Mas negam que o confinamento produza qualquer efeito, são contra as máscaras e denunciam as vacinas. Os negacionistas existem no mundo todo. Peço-lhe pelo menos uma palavra de piedade em relação ao sofrimento do povo brasileiro.
Luís Leiria, Esquerda.net, 27 de março de 2021
Tenho várias amigas e amigos que são negacionistas da Covid-19. Não, não são terraplanistas. Não, não são ignorantes. Eu já me cansei de argumentar com eles (em privado, com os que aceitaram discutir), porque quando não há uma base mínima para o diálogo, que é o reconhecimento dos factos, não há argumento racional que prevaleça.
Para eles, por exemplo, está mais que provado que o confinamento não produz qualquer efeito. Como assim?, dirão vocês. Mas não é um facto que Portugal, quando começou o atual confinamento, tinha o pior índice do mundo de mortos por Covid por cem mil habitantes, e hoje tem um dos melhores índices da Europa? Pois… estão a ver o que significa dizer que não há uma base comum elementar para que o diálogo se estabeleça?
Esses meus amigos e amigas ainda estão naquela fase de garantir que os números oficiais são inchados artificialmente, atribuindo a todos os óbitos a causa mortis por Covid mesmo que tenha sido por enfarte. Os óbitos reais por Covid, dizem eles, são “inferiores aos da gripe”. Um deles defende a cloroquina com unhas e dentes e afirma que usar máscara é o mesmo que andar com um amuleto ao pescoço. Adianto que esses meus amigos e amigas são europeus; entre os meus amigos e amigas do Brasil não há negacionistas.
Esses meus amigos e amigas negacionistas rasgam as vestes se comparamos a argumentação deles com a de Trump ou de Bolsonaro. Afirmam-se caluniados e perseguidos. Mas não parece incomodá-los no mais mínimo a semelhança dos seus argumentos com os daquelas tristes figuras.
Para mim é um mistério como pessoas cultas e inteligentes podem abraçar a causa negacionista. Mas isso é outra discussão.
O que mais me confunde agora é não ouvir uma palavra deles sobre o Brasil, país que todos eles e elas conhecem. Não ouvir uma palavra sobre as filas de espera para conseguir entrar numa unidade de cuidados intensivos. Sobre as pessoas que morrem asfixiadas por falta de oxigénio nos hospitais. Sobre as mais de 3 mil mortes por dia. Sobre o colapso iminente do sistema funerário.
E isto tudo causado por um presidente que sempre foi contra a máscara, contra o distanciamento físico entre as pessoas, contra os confinamentos, e que ficou célebre por classificar a Covid-19 como uma “gripezinha”. O que é uma forma popular de dizer que “a gripe mata mais que a Covid”.
Até hoje, esperei das minhas amigas e dos meus amigos negacionistas uma palavra de piedade sobre o que se passa no Brasil. Inútil. É preciso haver factos reconhecidos em comum para se poder construir um argumento. O que iriam dizer?
Mais de 300 mil mortos por Covid desde o início da pandemia. Vão dizer que os números foram inchados pelo consórcio de média e secretarias de Saúde dos governos dos Estados, porque a certa altura o governo federal se recusou a divulgar os dados centralizados da doença? Bom, mas isso seria fazer coro com Bolsonaro. Melhor ficar em silêncio.
A maioria esmagadora dos profissionais de saúde, epidemiologistas, cientistas, afirmam que uma boa parte das mortes teria sido evitada se tivessem sido aplicadas as regras elementares para impedir a propagação da doença. Mas Bolsonaro boicotou ativamente o distanciamento, promovendo aglomerações; boicotou o uso da máscara; entrou com um processo judicial nos tribunais superiores para tentar deter as tímidas medidas de confinamento decretadas por alguns governos estaduais. Mas as minhas amigas e os meus amigos negacionistas ridicularizam todas estas medidas como inúteis, ou até medievais. O que iriam dizer? Melhor ficarem calados.
Bolsonaro impôs como regra do Ministério da Saúde um tratamento chamado precoce, que inclui a famosa cloroquina e outros medicamentos sem qualquer comprovação científica da sua eficácia; mas, ao mesmo tempo, fez todos os esforços para impedir a entrada no Brasil da Coronavac, uma vacina desenvolvida na China e que demonstrou grande eficácia nos testes clínicos; o argumento de Bolsonaro era que uma vacina chinesa (por ser chinesa) não entraria no Brasil enquanto ele fosse presidente; ao mesmo tempo, enrolou as negociações com a Pfizer o mais que pôde, com o argumento de que havia nos contratos cláusulas inaceitáveis. Resultado: o Brasil não dispõe hoje de vacinas no volume que seriam necessárias a um país de 200 milhões de habitantes.
Mas as minhas amigas e os meus amigos negacionistas (pelo menos um deles) defendem a cloroquina e todos são contra as vacinas, não por princípio, mas por as considerarem irresponsáveis e apenas destinadas ao lucro das farmacêuticas, tendo a capacidade de serem mais prejudiciais que a doença (há outras teorias entre eles). Vão dizer o quê aos brasileiros?
Pelo que disse antes, a oposição brasileira exige vacinas para todos e clama pelo fim do governo Bolsonaro, considerando-o genocida. Mas as minhas amigas e os meus amigos negacionistas, como são contra as vacinas, alegram-se com os precalços surgidos em torno das vacinas, como o que houve recentemente com a da Astrazeneca. Logo, pelo que foi dito acima, não podem considerar Bolsonaro genocida. Vão dizer o quê?
Podiam, apesar de tudo isto, ter uma palavra diante da desgraça que assola o Brasil; diante do sofrimento do povo. Uma palavra de piedade. Ainda vão a tempo.