Por Mulheres da Insurgência Fluminense, junho de 2022.
Se é verdade que devemos fazer de tudo para derrotar eleitoralmente o Bolsonaro neste ano e impedir mais quatro de um governo neofascista aparelhando todas as instituições do Estado, é também verdade que o bolsonarismo, enquanto fenômeno político e ideológico, está longe de desaparecer da sociedade brasileira.
Parte de uma articulação internacional de setores da burguesia como resposta à crise econômica que se abriu em 2008, a ascensão de líderes e governos de cunho neofascista também têm bases reais nos setores médios e populares da classe trabalhadora. Não é apenas um projeto das elites conservadoras e autoritárias delirantes, mas ganhou contornos de movimento de massas no Brasil e em outras partes do mundo.
Tal fato apenas reforça a aproximação entre o bolsonarismo e o fascismo. No passado, frente a uma profunda crise econômica capaz de estraçalhar o tecido social, com governos social-democratas incapazes de dar respostas radicais por conta de sua natureza reformista/conciliatória e uma esquerda revolucionária enfraquecida, boa parte da classe trabalhadora passou a ver na radicalidade dos discursos de lideranças como Mussolini e Hitler um caminho rápido para a solução “de tudo que tá aí”. No presente, não vivemos um cenário tão diferente. A guerra do capital contra a classe trabalhadora pela via do fascismo prossegue. O bolsonarismo, a lógica da militarização, do ataque às instituições, da submissão das mulheres, de assassinato de LGBTIA+, do genocídio da segregação racial, da educação parental e por aí vai, estão na boca de amplos setores sociais.
Ao mesmo tempo, vivemos nos últimos anos um grande ascenso do movimento de mulheres. Infelizmente, este ascenso não se deu por uma ampliação de direitos, muito pelo contrário. As mulheres, na sua diversidade, foram as primeiras a sentir, na concretude de suas vidas, os efeitos tanto da crise econômica quanto do avanço da extrema direita. Falamos aqui das mulheres negras, indígenas, LBTs, trabalhadoras informais e precarizadas, mães de vítimas de violência do Estado, vítimas da violência misógina, jovens e periféricas, mulheres à frente de diversos movimentos de resistência em luta. As mulheres foram também as primeiras a sentir a necessidade da unidade de ação, sendo vanguarda nos processos políticos de recomposição com o campo lulo-petista: foi assim no Fora Cunha e em todos os atos do calendário feminista desde o golpe, sendo a maior expressão deste processo os atos do Ele Não em 2018.
Um dos maiores equívocos de parcela da esquerda foi tentar imputar ao movimento de mulheres e ao Ele Não a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018. Não derrotaremos o bolsonarismo apequenando nosso programa e nos acovardando, sem sair às ruas. As mulheres e a nossa coragem, mostramos, desde o primeiro momento, que seríamos resistência! Não é à toa que as mulheres figuram como maioria entre os setores que rejeitam Bolsonaro. Sabemos que ele representa um projeto que quer nos submeter e violentar. Por isso, as mulheres, em especial as mulheres negras e trans, foram eleitas como inimigas e estão na linha de tiro do bolsonarismo, como vemos nos crescentes, e cada vez mais cruéis, episódios de violência política de gênero. Ou nos silenciam ou nos matam, mas não verão as mulheres trabalhadoras compondo a base de apoio do seu projeto!
Se precisamos disputar ideologicamente os setores da classe que aderiram ao bolsonarismo para derrotá-lo, isto não será possível sem as mulheres. Portanto, qualquer perspectiva de construção de um projeto político capaz de enfrentar o neofascismo no Brasil deve ter, como um de seus focos, a organização das mulheres em movimento.
Mulheres na política
Cabe ao PSOL seguir sendo um instrumento atrativo para a organização de milhões de mulheres que viram suas vidas ameaçadas e precarizadas em múltiplas esferas durante o governo Bolsonaro e que, ao se colocarem em luta, se apresentam como vanguarda, como um dos setores mais conscientes da classe trabalhadora nessa conjuntura, em especial as mulheres negras e periféricas.
Nos últimos anos, o PSOL se firmou como uma referência na luta feminista, negra, LGBTIA+, fruto de um programa que vê a classe trabalhadora em sua diversidade. Tal política se reverteu na eleição, ao redor do país e no Rio de Janeiro, de uma bancada feminista combativa formada por mulheres, muitas negras, lésbicas, bissexuais e transexuais. Tal processo começou a tomar corpo nas eleições em que Marielle foi eleita vereadora e a resposta política de seu assassinato se deu também nas urnas, a partir da eleição de mais mulheres pelo PSOL.
Contraditoriamente, para essas eleições, não temos companheiras entre os nomes que compõem as nossas chapas ao executivo, tanto nacionalmente quanto estadualmente. Longe de ser uma insuficiência das próprias mulheres, temos que entender que as estruturas patriarcal, racista, cisheteronormativa e de classe da nossa sociedade se impõem como barreiras concretas para a participação política das mulheres.
Apesar de sermos maioria entre o eleitorado, nunca ultrapassamos 20% de representação parlamentar nas casas legislativas e seguimos sendo minoria entre o total de candidaturas. As mulheres que se colocam em movimento na política estão sujeitas a múltiplas formas de violência, silenciamento, invisibilidade e submissão às lógicas patriarcais e capitalistas. Quando dispõem seus nomes e corpos a serem candidatas ou parlamentares, essa violência é ainda maior e mais cruel. A política ainda reproduz uma dinâmica machista que afasta ou dificulta o percurso das mulheres desse espaço.
Compreendemos que, sob a atual conjuntura eleitoral, em que estamos cada vez mais espremidas/os entre o bolsonarismo e alternativas pouco radicais, é papel do PSOL se colocar com um programa nítido em defesa da classe trabalhadora e seus setores mais oprimidos e explorados. As candidaturas negras, LGBTIA+, feministas, populares e periféricas têm um papel central na composição de uma linha de frente que defenda nosso programa e nosso lugar na política em um cenário tão difícil para o PSOL.
Por isso, é fundamental que o PSOL dê visibilidade e estrutura para as candidaturas de mulheres, com fundo eleitoral, tempo de TV, acompanhamento político e jurídico (para que as nossas companheiras não se tornem inelegíveis e possam voltar a se candidatar), garantindo ao menos o mínimo legal de 30% de mulheres nas nossas chapas e contribuindo para fazer avançar a representação feminina nas nossas bancadas. O PSOL deve ser linha de frente no acolhimento às candidaturas feministas e no combate à utilização de mulheres como laranjas para burlar a legislação eleitoral e eleger homens. Nenhuma anistia para usurpadores da representação política feminina!
Vale dizer que o Setorial Nacional de Mulheres do PSOL recentemente aprovou um programa que defende uma reforma política no país que garanta paridade de gênero na representação parlamentar brasileira. Esta deve ser uma agenda debatida e defendida por todo o partido, não apenas pelas mulheres.
As Mulheres do PSOL/RJ nessas eleições
O cenário estadual dessas eleições, entretanto, é de muitos desafios para as mulheres. As candidaturas das mulheres do PSOL estão com mais dificuldades frente à nova conjuntura, importantes mulheres figuras públicas do partido não se candidataram e, para completar, caminhamos para ter uma chapa majoritária 100% formada por homens.
Infelizmente, vivemos em um estado que é o berço de articulação deste projeto nacional que hoje ocupa o Palácio do Planalto. O Rio de Janeiro elegeu Jair Bolsonaro como deputado federal mais votado do estado para o seu sétimo mandato em 2014, sendo o 3° mais votado do país. Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial de 2018 no Rio de Janeiro em ambos os turnos, no primeiro, com 59,79% dos votos e no segundo com 67,95% dos votos. Também em 2018, além de eleger Wilson Witzel para o governo do estado, o Rio de Janeiro elegeu dois senadores de extrema direita.
Não temos dúvidas que a candidatura de Lula é a única capaz de derrotar Bolsonaro. A unidade de amplos setores em torno desta candidatura é fundamental, ainda que seja necessário ampliar o arco de alianças com setores não identificados com o programa da esquerda, como por exemplo Alckmin. A possibilidade de superar essa dura conjuntura passa necessariamente pela frente ampla contra o fascismo, garantindo a vitória de Lula. Não podemos ter ilusões com o petismo, mas com certeza superar a era Bolsonaro é fundamental para a melhora das condições da classe trabalhadora e de suas lutas.
No Rio de Janeiro, apesar das diferenças que temos com o nosso ex-companheiro de partido, a melhor tática para o governo do estado é o apoio, desde o primeiro turno, a Marcelo Freixo como único nome capaz de derrotar o candidato que representa um projeto de milicianização do Rio e que mantém um alinhamento político com o bolsonarismo.
No que tange ao debate sobre o senado, temos um quadro ainda mais complicado.
A fragmentação de candidaturas ao senado no campo progressista aumenta as chances de vitória de um candidato alinhado ao Bolsonarismo. Impõe-se como obstáculo a esta unidade, em primeiro lugar, a disposição do PT em manter a candidatura de André Ceciliano como parte da tática eleitoral para a ampliação do votos de Lula, já que Freixo não garante esse crescimento, conforme demonstram as pesquisas recentes.
No que tange à disputa geral da esquerda, parece correto que os setores que compõem a candidatura de Freixo também tivessem unidade para uma mesma candidatura ao Senado. Esta seria a melhor maneira de fortalecer a possibilidade de vitória em ambas as disputas. Entretanto, por um lado, Ceciliano, por suas opções políticas e pelo que representa, não tem capacidade de ser uma candidatura que coesione os setores progressistas para o enfrentamento ao bolsonarismo. Por outro lado, também não deveríamos simplesmente ter uma política de adesão imediata à candidatura de Alessandro Molon (PSB).
No que tange ao papel e os desafios do PSOL, entendemos que seria razoável que o nome do senado fosse do partido, já que a candidatura à presidência é do PT e do governo do PSB. Além disso, temos certeza que o papel do PSOL nessa conjuntura não é apenas demarcar contra o bolsonarismo e seus candidatos, mas também, e com muita centralidade, apresentar debates programáticos fundamentais à sociedade. Temos certeza que o papel do partido em sustentar candidaturas feministas, negras, periféricas, lgbts, populares, ecossocialistas etc é central!
É nesse cenário que a Insurgência construiu e defendeu a candidatura de Luciana Boiteux ao senado. Uma candidatura feminista do PSOL seria capaz de não apenas representar o programa completo do partido, mas de ser um pólo de resistência e articulação das mulheres que hoje não se vêem representadas em nenhuma das candidaturas majoritárias. Ademais, Luciana Boiteux, mesmo sem ter começado a fazer campanha, apareceu bem nas pesquisas eleitorais, demonstrando ser um nome viável para representar uma candidatura de unidade do campo progressista - o que ajudaria a resolver o grande problema que é ter dois candidatos homens brancos do PSB como candidatos da coligação no estado. Unidade se constrói com programa e com negociação. Faz sentido que o maior partido de esquerda do estado em número de votos, representação parlamentar e capacidade de mobilização popular compusesse a chapa apresentando um nome próprio. Além disso, temos que ser realistas. Mesmo uma possível unidade não dá por certo a vitória de uma candidatura do campo progressista. Vivemos em um estado extremamente conservador, miliciano, clientelista, e que tem, nos últimos anos, contribuído com a ascensão nacional deste projeto neofascista. Não os derrotaremos apenas no processo eleitoral, ou reduzindo nosso projeto e programa.
A candidatura de uma mulher feminista é fundamental nessa conjuntura. E entendemos que Luciana Boiteux reúne todas as qualidades necessárias para nos representar nesse processo: É professora de Direito da UFRJ, tendo uma trajetória comprometida com o movimento sindical docente combativo. É militante antiproibicionista e pelo desencarceramento, pautas fundamentais para barrar a violência policial e o genocídio negro. É militante feminista e uma das autoras da ADPF442, que defende a descriminalização do aborto. É uma militante comprometida com a construção de base do nosso partido, se fazendo presente nas discussões e atividades do nosso partido em múltiplos territórios e frentes de atuação.
No entanto, o PSOL decidiu apoiar a candidatura de Molon ao senado, mesmo diante da manutenção da candidatura de André Ceciliano. Alguns setores resolveram pelo apoio a Molon em torno de uma "possível" unidade da esquerda ou pela proposição de outros nomes do partido para a tarefa. Outros setores, ainda, condicionaram seu apoio a negociações em torno de candidaturas nada feministas como a de Heloísa Helena, ou apresentaram apoios pouco efetivos à candidatura de Luciana. Fizemos (Insurgência) todas as movimentações possíveis buscando um resultado diferente do aprovado pela direção do PSOL, no entanto, fomos derrotados pela correlação de forças internas ao partido. Ocupar a presidência do partido não faz com que, automaticamente, o PSOL tenha sempre a nossa posição. Agimos em consonância com Luciana, dialogando sobre nossas movimentações, tentando ao máximo fortalecê-la politicamente e buscando um resultado diferente do que foi encaminhado. Saudamos a coragem e a resistência das mulheres que passam por processos duros para se reafirmar nos espaços políticos e lutamos por um presente e um futuro sem violência política de gênero. Saudamos a disposição de Luciana em manter seu nome, em um quadro tão difícil e de tantos ataques.
É necessário ainda, um balanço sobre as limitações que a candidatura de Molon traz para verbalizar um programa próximo ao PSOL. Além disso, sua figura, ainda que progressista, está historicamente ligada a uma política tradicional masculina e cisheteronormativa, na qual mulheres, juventudes e populações periféricas, negras, indígenas e LGBTIA+ se sentem pouco representadas. Por isso o PSOL deve incidir para que seu programa se faça presente nessas eleições. No que tange às mulheres, isso significa incorporar uma agenda política radicalmente contra as opressões, as diversas formas de violência de gênero, a luta por justiça reprodutiva para mulheres, pela legalização do aborto e tantas outras pautas fundamentais. A retirada da candidatura de Luciana em torno do apoio a Molon, sem garantia de unidade ou um amplo debate programático, nos parece uma ação precipitada do PSOL, e também simboliza uma derrota aos setores oprimidos.
Nesse quadro, de forma fragmentada e sem uma candidatura majoritária que possa ser porta-voz de suas propostas e lutas, as candidaturas proporcionais do PSOL precisarão de muito mais força para verbalizar o programa do partido. Para atenuar essa situação, é necessário uma melhor articulação das mulheres do PSOL e a formação de acordos mínimos de unidade entre os setores para a construção e apoio às candidaturas de mulheres. Entretanto, nossa capacidade de articulação tem sido deixada em segundo plano frente a outras prioridades. A incapacidade de construção de espaços unitários no partido tem a ver com a encruzilhada conjuntural pela qual passamos hoje, pela opção de diversos setores pela autoconstrução, mas também por uma naturalização da não existência de espaços de encontro e de unidade articulados
As mulheres do PSOL sempre foram um pólo fundamental de resistência e intervenção do partido. Internamente, sempre fomos o setorial mais ativo, com maior regularidade, com maior combatividade. Nas eleições, sempre organizamos debates programáticos importantíssimos, fortalecemos e demos visibilidade às candidaturas de mulheres. Para esse ano, ainda podemos construir espaços fundamentais, como o lançamento coletivo das candidaturas de mulheres pelo nosso Setorial, iniciativas de apoio das candidaturas, uma campanha combativa contra a violência política de gênero (que, não temos dúvidas, será fortíssima nesse cenário de polarização), bem como o acompanhamento de comitês unitários de mulheres.
Foi a partir de nossa articulação como mulheres, que, no passado, cavamos espaço para as mulheres na política. Em sua vida, Marielle compreendeu a necessidade e a potência da articulação das mulheres do PSOL, tanto internamente no partido, quanto na ocupação do espaço público. Depois de dois anos de pandemia, ampliamos nossas distâncias e tem parecido difícil refazer as pontes e suas potências. Que possamos quebrar barreiras, construir pontes e espaços de soma e organização da militânca feminista do PSOL para resgatar a potência das mulheres e suas lutas diversas.
A vida das mulheres nunca foi fácil, nossos desafios nunca foram pequenos, mas o substantivo LUTA, é feminino e feminista!
Pela unidade para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo!
Por mais mulheres na política!
Pela vida das mulheres!
Não seremos interrompidas!
Ele Não, Ele Nunca Mais!
Marielle, presente!