Lana de Holanda e Carolinne Scoppel, 1º de dezembro de 2020
RIO DE JANEIRO - Viver com HIV, no Brasil, e falar abertamente sobre o assunto, é estar numa linha muito tênue, entre afirmar que é possível sim, vivendo com o vírus, ter uma vida como as outras pessoas, ao mesmo tempo em que diariamente precisamos resistir aos retrocessos na saúde pública.
É preciso afirmar a possibilidade de “normalidade”, mesmo vivendo com HIV, pois os estigmas ainda são muito presentes no senso comum. E temos que ser enfáticas ao afirmar que não, viver com HIV/aids não é uma sentença de morte, não é uma condenação à solidão e nem uma culpa permanente. Existe vida após o diagnóstico e o início do tratamento. Existe vida e futuro nos corpos soropositivos.
Mas também precisamos entender o que significa ser esse corpo, essa vida, num cenário de total abandono e negligência à saúde pública por parte do governo federal. No dia 05 de fevereiro desse ano, Bolsonaro disse que pessoas com HIV são “despesa para todos no Brasil”. Essa afirmação tem duas raízes: a primeira é a desclassificação de pessoas soropositivas enquanto cidadãs, como se fôssemos menos dignas de cidadania e de direitos nesse país. E outra é o falso lugar onde se colocam pessoas com HIV/Aids, num lugar de muito menos solidariedade e empatia do que pessoas afetadas por outras doenças crônicas. Quando a marca da resposta de luta contra a epidemia é justamente a solidariedade. A descontinuação das políticas de saúde para população que vive com HIV significa permitir que estas pessoas tenham suas vidas ceifadas.
Segundo a UNAIDS/ONU, o Brasil é um dos paises da América Latina com o maior aumento de casos de novas infecções por HIV nos últimos anos. O país registrou um crescimento de 21%, entre os anos de 2010 e 2018, mostra o levantamento da entidade. Em 2019, o Governo Bolsonaro interferiu diretamente no programa de enfrentamento à disseminação do HIV/Aids no Brasil. Por meio de um decreto, Bolsonaro, junto com seu então ministro Mandetta, alterou o nome do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, rebaixando a área de HIV/aids a uma coordenação. É uma tentativa de apagamento das pessoas vivendo e convivendo com HIV/aids no Brasil.
A luta contra a aids, rememorada anualmente no dia 1º de dezembro, escancara preconceitos, inspira solidariedade e explicita conflitos. São décadas de luta e de resistência, onde as pessoas vivendo com HIV, ativistas, profissionais de saúde e demais aliadas e aliados lutaram pela constituição do SUS, pelo acesso aos medicamentos de forma universal, por políticas de prevenção, pela produção pública de medicamentos, contra as patentes farmacêuticas e monopólios indevidos, pela ética nas pesquisas, contra estigmas e tantas outras frentes, nos âmbitos nacional e internacional.
Tivemos muitas lições aprendidas com as respostas à epidemia de HIV, que deveriam ajudar a orientar nossa resposta à pandemia de Covid-19 que vivemos hoje. As doenças são biológicas, mas são também sobre a estrutura da sociedade, sobre opressão, sobre medos e estigmas, sobre a percepção individual e sobre política.
Lutamos para que se fale mais sobre o HIV, pra que existam políticas de prevenção, para que as novas formas de prevenção estejam disponíveis no SUS, para que todas as pessoas tenham acesso à assistência e aos medicamentos, para que estejam acessíveis novos medicamentos, mais eficazes, seguros e que proporcionem uma vida com qualidade a todas as pessoas vivendo com HIV/aids, para que os medicamentos fiquem livres de patentes e monopólios.
Nós, pessoas com HIV, existimos e continuaremos resistindo!