Luciana Araújo
SÃO PAULO - Hoje completa-se uma semana do assassinato brutal de João Alberto Freitas, aos 40 anos, por dois seguranças da rede de hipermercados Carrefour, sob ameaças de uma funcionária da loja em Porto Alegre (RS) a quem filmava o ato. Em primeiro lugar, nossas profundas condolências e pesares à família e amigos de Beto.
Neste momento de dor que atinge todo um povo, a maioria da população brasileira que tem certeza que poderia estar no lugar de Beto ou ver ali um filho, irmão ou parente, é fundamental que as esquerdas abandonem a lógica tacanha de nanopoder que continua tratando a questão racial no Brasil como "identitária" e entendam que aquele crime é parte de um projeto baseado na necropolítica e no racismo estrutural e estruturante que faz com que até setores progressistas vejam como um episódio a lamentar o que acontece todos os dias há 520 anos em Pindorama.
O último Atlas da Violência, divulgado agora em novembro, destaca que nós negros fomos 74,4% das vítimas de violência letal no país. Em 2017 éramos 71%. Entre 2008 e 2018 o crescimento da letalidade por racismo brasileira foi ainda maior: 11,5% para homens negros e 12,4% para mulheres negras, enquanto no mesmo período as mortes violentas de pessoas não negras caiu 12% para homens e 11,7% para mulheres. Os percentuais mais desfavoráveis às mulheres devem considerar a misoginia, que também estrutura o Brasil miscigenado no estupro, e os feminicídios.
O próprio Beto foi pelo menos a terceira vítima de agressões similares na mesma rede – ao que sabemos pelo que a internet nos permite ter conhecimento, a primeira letal. Mas não podemos nos esquecer de Pedro Gonzaga, 19 anos, morto da mesma forma no Extra em 2019, do menino menor de idade chicoteado na salinha de torturas do Ricoy (que existe em todos os supermercados do país), do menino João Victor - morto aos 13 anos por seguranças do Habib’s em 2017. Nem de Luana Barbosa, Claudia da Silva, Amarildo, João Pedro e as milhares de vidas negras tiradas todos os dias pelo Estado brasileiro – a maior parte delas incluídas naqueles números mencionados pelo Atlas da Violência 2020.
Negado pelas elites e setores de pensamento atrasado dentro das esquerdas como o elemento mais estruturante do capitalismo brasileiro, o racismo mata sob o olhar de normalidade da parcela não branca da população porque é parte do que também estrutura a própria lógica de pensamento dessas pessoas: de que é menos importante tirar uma vida negra.
Ah! Você que se reivindica de esquerda está chocado/a com essa "acusação" e tem certeza que não pensa assim?! Então me responda algumas perguntas. Em quantos atos por pessoas assassinadas você já foi? Quantas pessoas de seu círculo pessoal já foram assassinadas? Quantas vezes você já teve de contribuir para o funeral de uma pessoa assassinada a fim de que a família pudesse ter preservada ao menos o direito de prover um sepultamento digno a um ente querido?
Não me venham com o papinho “Todas as vidas importam” porque isso é óbvio e só serve para quem usa continuar a não dar bola para as vidas que realmente estão sendo exterminadas, naturalizar e banalizar o racismo – ajudando a encobrir um pilar fundamental da dominação capitalista sobre o conjunto da classe.
Você, estudioso/a da História e militante provado/a, conhece a documentação dos Anais do Congresso Universal das Raças, em 1911, no qual o então diretor do Museu Nacional João Baptista de Lacerda foi o delegado oficial do Brasil para defender que a política de incentivo estatal à imigração de europeus era fundamental para o desenvolvimento nacional e levaria a que "provavelmente antes de um século a população do Brasil será representada, na maior parte, por indivíduos da raça branca, latina, e para a mesma época o negro e o índio terão certamente desaparecido desta parte da América"? O que seria "científico" e necessário para Lacerda porque "no Brasil o longo contato do negro prejudicou os dotes morais do branco".
Esse é o Brasil que levou Bolsonaro e o bolsonarismo ao poder e segue atuando para reverter a derrota do extermínio completo a que o Estado brasileiro tinha se proposto contra nós negros.
Os movimentos organizados da população negra resistem e impedem o completo genocídio de nosso povo desde a época da escravização - pela via da religiosidade do candomblé ou da umbanda ("santo do pau oco" vocês sabem o que significa, né?); pela via da cultura de resistência historicamente criminalizada e estereotipada ou tachada como "menor" da capoeira, do samba, do jongo, da ciranda, do Teatro Experimental do Negro, do rap, do funk; pela militância política e social desde os primeiros quilombos, passando pela original Frente Negra Brasileira, o Movimento Negro Unificado, o Geledés - Instituto da Mulher Negra e outras organizações antirracistas; pelo resgate das epistemologias roubadas pelos colonizadores – para a qual a política de cotas é fundamental e por isso tão combatida. E também pela disputa de espaços institucionais de poder e decisão, no estado e dentro das organizações políticas (o que envolve a disputa de espaços com quem usa o velho método da desqualificação do oponente – fantasiada de marxismo ortodoxo, mas que bebe na veia do pós-modernismo ao insistir em só valorizar a parcela da realidade que lhe convém e negar a perspectiva totalizante e sistêmica da realidade brasileira e internacional).
Mas o genocídio negro, e também indígena, segue sendo um projeto do Estado brasileiro. Por isso, a mídia – o verdadeiro partido da burguesia – busca justificar a barbárie a cada assassinato escarafunchando os erros dos mortos ou jogando sobre eles a pecha de suspeitos quando nada encontram. O mesmo que neofascismo à brasileira tentou fazer com Marielle. É a ideologia de legitimação do genocídio, a mesma que gera justificativas “técnicas” para o que ficou conhecido como ‘estupro culposo’ quando o autor é um homem branco rico.
E enquanto parcelas das esquerdas continuarem fazendo saudações discursivas ao antirracismo dentro das sedes ou em dias de festa e negando que – como lembra Angela Davis - gênero e raça informam classe nas sociedades capitalistas, e em particular no Brasil classe informa raça, o “antirracismo” de vocês não é verdadeiro e sua postura colabora para o nosso genocídio.
A direita arejada e os pós-modernos usam as condições de raça e gênero descoladas de classe para legitimar o modo de produção capitalista que defendem com uma fantasia humanitária. Até quando parcelas que se reivindicam de esquerda vão continuar envergonhando Marx e fazendo o mesmo?
Justiça de raça e classe para Beto Freitas, João Victor, Luana Barbosa, Claudia da Silva, Amarildo, João Pedro e todas as vítimas do genocídio negro. Parem de nos matar!