Publicado originalmente por Jacobin América Latina em agosto de 2020.
Em apenas quatro décadas, a China logrou uma transformação sem precedentes, ao ponto de se converter na principal concorrente à hegemonia norte-americana. Mas essa disputa imperialista pelo predomínio geopolítico não é uma batalha da classe trabalhadora.
Confira entrevista com Au Loong-Yu, escritor e ativista em Hong Kong, autor de Hong Kong in Revolt. The Protest Movement and the Future of China (Pluto Press, 2020).
Um país em transformação
O fato de a China ter conseguido completar sua transformação em apenas quatro décadas - passando de um país com população predominantemente camponesa na década de 1980 a um país altamente industrializado, onde quase 60% da as pessoas vivem e trabalham nas cidades - é uma conquista no mínimo espetacular. Dada a forma que a revolução maoísta assumiu, o PCC foi capaz de manter o controle total sobre toda a sociedade desde 1949, enquanto se entregava obsessivamente à "modernização" econômica. Isso teve efeitos mistos. Quando as políticas de crescimento davam errado, ocorriam megacatástrofes (como o Grande Salto Adiante). Mas quando se escolheu um caminho mais adequado aos interesses de longo prazo das elites, foi possível mobilizar o país com mais eficiência.
Basta dar uma olhada no que aconteceu com os investimentos na economia. Às vezes, estes ultrapassavam 40% do PIB. Foram esses níveis incomuns de investimento que possibilitaram a ascensão da China como uma grande potência manufatureira. De onde vem esse investimento todo? Vem principalmente do Estado. Embora o setor privado também contribua, é sem dúvida o Estado que assume a liderança ao investir em infraestrutura e indústrias essenciais, gerando um efeito dominó que aquece a economia. Mas a força do partido-estado chinês não é algo facilmente replicável em outros países. Isso sem falar no fato de que se trata de uma estrutura construída, nos últimos anos, à custa da exploração da classe trabalhadora e, portanto, replicá-la não seria nada desejável.
Um segundo fator que explica o enorme crescimento do país é seu tamanho físico, tanto em termos de território quanto de população. O tamanho gigantesco de um país como a China sob a liderança do Partido Comunista permitiu que Pequim concluísse a primeira fase de industrialização entre 1949 e 1979. Já de 1980 em diante, um gigantesco mercado doméstico se formou a partir da expansão da economia de mercado. É neste momento que se inicia uma segunda fase de industrialização no país.
Um terceiro fator em jogo é a abertura da China ao capital estrangeiro. Atrair capital estrangeiro teria sido impossível se a China não tivesse as valiosas “portas de entrada” de Hong Kong e Taiwan. Investimentos estrangeiros passaram a entrar em grande quantidade na China em 1979, quando Deng Xiaoping decidiu se reconciliar com o imperialismo ocidental. As regiões altamente desenvolvidas de Hong Kong e Taiwan forneceram a Pequim capital, técnicas de gestão econômica e empresarial, ligações com o mercado mundial e tecnologia.
No entanto, desde 2008, as condições vantajosas descritas acima foram se exaurindo. As taxas de investimento excepcionalmente altas deprimiram os salários reais e, consequentemente, o consumo interno. Enquanto a média global de consumo doméstico representou cerca de 60-70% do PIB dos países, a taxa média de consumo doméstico chinês foi de 50% entre 1952 e 2019. O mais preocupante é que, desde 2000, esta taxa caiu continuamente, de 47,7% para 34,6% em 2010. Desde então, o consumo chinês quase não aumentou, atingindo 38,8% do PIB em 2019. O declínio na participação da demanda doméstica resulta em um processo interminável de superinvestimento e superprodução, tornando o crescimento econômico cada vez mais improvável. O regime há muito entendeu o perigo que isso acarretaria. Há quase uma década, o PCC vem clamando por reformas estruturais para controlar os desequilíbrios econômicos. No entanto, seu esforço não tem surtido resultados.
Por trás dessa dinâmica revela-se um problema central: a decadência generalizada da burocracia do partido. Corrigir este problema exigiria uma redistribuição da riqueza e um aumento significativo da renda dos trabalhadores, o que aumentaria seu poder de compra e aqueceria o mercado doméstico. Mas essas medidas sofrem forte resistência das autoridades partidárias, por não representarem seus interesses. O principal motivo para o PCC promover a atual modernização econômica é sua própria receita: quanto mais ele investe, mais riqueza a burocracia acumula por meio de salários generosos, subornos, etc. Como não há controle sobre seu poder, as autoridades partidárias frequentemente embarcam em projetos monumentais e inúteis - como as infames “cidades fantasmas”. O investimento estatal em capital físico e bens imobiliários excede em muito a demanda efetiva. O superinvestimento chinês atingiu tais níveis que se tornou cada vez mais prejudicial à economia. Por sua vez, ele levou as autoridades do partido a buscar uma solução alternativa para a distribuição da riqueza: exportar o capital excedente. Daí o projeto da Nova Rota da Seda. A razão principal deste projeto é exportar para todo o mundo o problema interno da China, o que provocou o desgaste da sua imagem em muitos países envolvidos.
Em suma, os fatores básicos que proporcionaram a ascensão da China tornaram-se agora em sua antítese, esgotando a sua utilidade (para o capital).
Alerta de colisão
No que diz respeito à China, os velhos debates sobre a hegemonia mundial exigem uma atualização drástica. Duas décadas atrás, quando a esquerda ocidental discutia vigorosamente os problemas da hegemonia mundial, esta não tinha plena consciência de que a China estava em ascensão. Lembro-me de ter lido um debate entre Alex Callinicos e Leo Panitch sobre isso em 2006, ano em que o investimento estrangeiro direto (IED) da China atingiu níveis dez vezes maiores do que em 1996. O impacto da economia chinesa no mundo está crescendo. Há cinco anos, a China alcançou as seguintes posições:
- A segunda maior economia do mundo.
- A maior potência mundial no comércio de mercadorias.
- A maior força industrial do mundo.
- O segundo maior receptor de investimentos estrangeiros diretos (IED) do mundo e o quinto maior investidor direto no exterior.
- O país com maiores reservas de moeda internacional.
- O maior detentor de títulos do Tesouro dos EUA.
- O maior consumidor de energia (incluindo óleo e gás), dependendo das importações para atender mais da metade de seu consumo interno.
- O país com maior número de bilionários no mundo.
Uma presença econômica global tão poderosa exigiu que Pequim lançasse campanhas internacionais - políticas, diplomáticas e militares - para se proteger de seus concorrentes (que são muitos). Naturalmente, isso o posiciona em rota de colisão com os EUA. Além disso, com tamanho poder em suas mãos, é difícil imaginar que a China esteja disposta a ocupar para sempre um lugar secundário no mundo.
Os Estados Unidos toleraram o capitalismo altamente autoritário da China enquanto esta era exportara de produtos de baixo valor agregado. As elites dos Estados Unidos deram as boas-vindas ao capitalismo não liberal – mesmo depois do massacre da Praça da Paz Celestial – por ser incapaz de seguir acumulando riqueza por conta própria. Mas quando o potencial chinês se tornou evidente, isso mudou. O sucesso da China reside na natureza estatal de seu capitalismo. Comprometida com a industrialização a qualquer custo, o Estado chinês é capaz de investir grandes somas de dinheiro para atualizar sua capacidade de inovação tecnológica. Quando a elite Americana se deu conta disso, já era tarde demais. Em 2011, a então secretária de Estado Hillary Clinton anunciou a “virada para o leste”. A China respondeu, por sua vez, com uma política mais agressiva no Mar do Sul da China. Foi o início de um ciclo vicioso de ataques e contra-ataques. Discursos recentes do vice-presidente Pence e do secretário de Estado Pompeo revelam o tom de rivalidade interimperialista. Mas desta vez, em vez da rivalidade se dar entre os antigos países imperialistas, é a China quem tem ocupado este papel.
Colhendo o que plantou
O historiador Niall Ferguson, conhecido por ter postulado a inevitável simbiose econômica entre os EUA e a China ("Chimerica"), argumenta em um artigo recente que a nova Guerra Fria é "tão inevitável quanto desejável". Afirma ainda que aqueles que defendem uma posição intermediária ou uma combinação de "parceria e rivalidade" entre os EUA e a China "esquecem a possibilidade de a China não ter interesse em ser “aminimiga” [frenemies]. As autoridades chinesas sabem bem que se trata de uma nova Guerra Fria porque estavam entre na sua inauguração”.
Existem duas tendências principais entre os setores dominantes da política externa americana: os “abraços de panda” e os “matadores de dragões”. Por trás dessa divisão estão as três principais escolas de política externa: internacionalistas liberais, realistas e social construtivistas. Os “abraços de panda” foram dominantes nas últimas décadas tanto entre as elites políticas quanto na academia. Eles imprimiam uma visão favorável aos interesses americanos vinda das três escolas de pensamento. Do ponto de vista do internacionalismo liberal, pensavam que a inserção da China no comércio mundial democratizaria o país. Do ponto de vista do realismo, argumentavam que mesmo que a China tivesse seus próprios motivos e ambições para desafiar os EUA, ainda seria muito fraca para fazê-lo. Já do ponto de vista do construtivismo social, acreditavam que as relações internacionais são o resultado de ideias, valores e interações sociais e, como o liberalismo, pensavam que as elites chinesas seriam flexíveis e podem eventualmente reconsiderar seus próprios valores autocráticos.
A ascensão chinesa contrasta com a perspectiva dos “braços de panda”. A China se tornou uma potência em ascensão que não só tem alcançado os Estados Unidos, mas também tem o desafiado. Dado o fracasso da perspectiva dominante, posições pessimistas [alinhadas aos “matadores de dragões”] ganham terreno na tomada de decisão da política externa dos Estados Unidos. O pessimismo liberal agora acredita que o nacionalismo chinês é muito mais forte do que a influência “positiva” do comércio e dos investimentos. O pessimismo realista acredita que a China está se fortalecendo rapidamente e que nunca se sentará para negociar sobre o contencioso de Taiwan. O pessimismo sócio-construtivista agora acredita que os valores da China são muito rígidos e que suas elites se recusarão a mudar.
O que está claramente ausente nesses debates é uma análise de classe. Em primeiro lugar, por que o crescimento do comércio internacional seria suficiente para convencer a elite governante da China a abrir mão do poder cultural, econômico e político que tão bem serviu aos seus interesses? Do seu ponto de vista, o comércio internacional é apenas uma ferramenta para aumentar seus privilégios, nunca para enfraquecê-los. Por que permitiria eleições competitivas, por mais limitadas que fossem, se isso poderia prejudicar seu poder? O que vemos, na verdade, é a “segunda geração vermelha”, agora o núcleo da elite dominante, apostando em se manter no poder por centenas de anos.
Não há dúvida sobre as ambições expansionistas da "segunda geração vermelha" no cenário internacional. Mas porque é que um número tão reduzido de pessoas no partido não enfrenta nenhum tipo de obstáculo interno, nem no partido nem em todo o país? Hoje, o setor privado é responsável por metade do PIB da China. As classes empresariais do setor privado e as camadas superiores das classes médias são compostas por centenas de milhões de pessoas, que possuem uma riqueza de centenas de milhões de dólares. A ofensiva de Xi Jinping contra o império americano não serve a seus interesses. Mas por que eles se sujeitaram ao seu projeto expansionista? Por que este setor é tão impotente?
Correndo o risco de simplificar demais, argumento que isso ocorre porque seus interesses também têm raízes profundas no partido-estado. Essas classes renasceram na China graças às políticas do PCC. Durante a década de 1980, teveram que enfrentar de imediato a resistência de uma classe trabalhadora de 200 milhões de pessoas, tanto nos setores estatais como nos da economia coletiva, que haviam gozado segurança do emprego e previdência social – algo que se apresentava como um entrave à "reforma de mercado" que a classe empresarial e as camadas superiores da classe média queriam implementar. Para esmagar a "tigela de arroz de ferro" (isto é, segurança do emprego), a classe empresarial se aliou ao Estado ao passo que se entusiasmava com a destituição dos trabalhadores do setor público para dar lugar a 250 milhões de migrantes rurais com pouco conhecimento de seus direitos trabalhistas. Teria sido impossível sustentar o novo regime de trabalho nas fábricas ao estilo “quartel militar” por mais de um dia sem o poder despótico do PCC sobre a população. Ou seja, a dependência das classes empresariais ao partido-estado se dá pelo fato delas temerem mais a classe trabalhadora do que o partido.
A força conjunta da burocracia estatal e dos empresários do setor privado buscaram evitar que a populosa classe trabalhadora chinesa (de 350 milhões de pessoas) desenvolvesse um movimento operário de massa. Agora, a análise política de esquerda considera que a classe trabalhadora urbana é uma classe democrática e em muitas partes do mundo tem sido o principal motor dos processos de democratização. Mas na China, a classe trabalhadora não dá sinais de cumprir esse papel. O estado monolítico parece ter conseguido se livrar de um terrível inimigo potencial, pelo menos por enquanto.
Enquanto isso, o partido-estado continua sendo a única força organizada em todo o país – com um enorme potencial militar. Mas agora estamos começando a notar que este pode estar se importando cada vez menos com as classes empresariais do setor privado. O partido-estado tornou-se tão poderoso que decidiu que, após um período de crescimento lento e de guerra comercial com os Estados Unidos, pode dispensar seu antigo aliado que, por sua vez não tem a quem pedir ajuda.
À medida que sua autoconfiança aumenta, Pequim abandona sua velha e moderada estratégia de cooperação com o imperialismo ocidental. Desde 2012, Pequim se envolveu em três batalhas contra os EUA: a guerra comercial de Trump, a disputa no Mar do Sul em que a China assume injustificadamente um vasto território como seu, e a ingerência (por natureza, reacionária) sobre a autonomia de Hong Kong.
Esses três contenciosos facilitaram as intenções da elite dominante chinesa de confrontar os Estados Unidos. Mas eles também deixam nas sombras a cumplicidade do imperialismo ocidental e o papel que os Estados Unidos desempenharam na promoção da ascensão de seu atual inimigo. Desde o início, a supremacia reformista do PCC teria sido impossível de se consolidar sem a ajuda das potências ocidentais (com os EUA no comando). Os Estados Unidos são cúmplices do governo autoritário chinês e de seu regime de exploração do trabalho. Desde 1989, os ataques verbais à China têm sido uma constante durante as sucessivas campanhas eleitorais americanas. Mas, uma vez no poder, todos os esforços deram as boas-vindas ao "acordo" que permitiu a Pequim acumular grandes quantidades de reservas em moeda estrangeira – que facilitaram sua expansão global. Os Estados Unidos estão colhendo os frutos amargos que plantaram.
Um estado pré-moderno contra uma pandemia moderna
Tanto Pequim quanto Washington falharam miseravelmente em controlar a pandemia do COVID-19, embora por razões diferentes. A reação inicial das autoridades de Wuhan aos relatos de infecções em dezembro de 2019 foi o abafamento do caso. A toda poderosa burocracia chinesa sempre relutou em levar más notícias à liderança central do partido, especialmente nas semanas que antecedem a festa de Ano Novo. As autoridades só querem ouvir as boas novas.
Esta é apenas uma das manifestações da cultura política imperial pré-moderna do PCC.
Ironicamente, este partido - que declara seu compromisso com o "comunismo" - é profundamente influenciado por uma cultura pré-moderna. No 19º Congresso do PCC, em 2017, Xi Jinping já havia dito ao partido que se orientaria pelo lema “transmitir nossos genes vermelhos e assumir a importante tarefa de fortalecer o exército”. Essa afirmação é apenas um reflexo da degeneração aristocrática (no que diz respeito à burocracia em geral) e autocracia (no que diz respeito à sua liderança) do PCC. O partido precisa apertar o cerco contra a classe trabalhadora para garantir seu monopólio de poder por mais um milênio. Isso está exacerbando a degeneração da burocracia do partido, cuja melhor manifestação foi vista durante a pandemia.
No dia 7 de janeiro, a notícia da pandemia chegou às autoridades máximas do partido. A resposta de Xi foi que, apesar do fato de que medidas deveriam ser tomadas para prevenir um surto, o governo local “não deveria causar pânico nem afetar a atmosfera festiva do ano novo lunar.” A burocracia do partido entendeu imediatamente qual mensagem transmitir primeiro e continuou a promover o festival, suprimindo notícias sobre a pandemia que se aproximava. Graças a esses eventos públicos, o vírus se espalhou ainda mais rapidamente. Três dias depois, Xi Jinping deu suas "instruções", segundo as quais era necessário "atribuir grande importância à epidemia e fazer o que estiver ao nosso alcance para preveni-la". Só depois que o líder se manifestou, o governo começou a agir, e Wuhan foi fechado em 23 de janeiro.
No entanto, naquela época, cinco milhões de residentes de Wuhan já haviam, junto com centenas de milhões de passageiros, retornado à terra natal para o festival do ano novo, o que aumentou ainda mais a disseminação da doença.
As razões pelas quais as autoridades de Wuhan não agiram adequadamente devem ser atribuídas a algumas características da burocracia do PCC. Uma delas é a de que o que dizem as leis não é tão importante quanto o que pensam os superiores. Existem dois conjuntos de regras em ação: uma é a lei comum; a outra é como a expressão chinesa “qianguize”, que “regras ocultas”. Este último conjunto é sempre o mais importante. Promover ou salvar a reputação daqueles que estão em posições mais altas na hierarquia é a principal regra.
Cada vez mais, esses recursos pré-modernos atrapalham o próprio funcionamento do partido. Para superá-los, é necessário engajar-se em verdadeiras “reformas de modernização”: a seleção de líderes de fora da burocracia; a separação do partido do estado para criar um método de sucessão ao poder mais pacífico e eficiente; a renovação da burocracia, substituindo os mecanismos de lealdade pessoal absoluta, gestão personalizada, regras ocultas, clientelismo e tendência à formação de uma nova aristocracia, por uma burocracia moderna e constitucionalista de tipo weberiano; uma hierarquia baseada em regras claras, não personalizada, “racionalizada”, “meritocrática”, etc.
Este é um programa liberal de "ocidentalização". Porém, mesmo a implementação desse programa moderado é impossível sem crises e lutas políticas gigantescas, porque as autoridades com maior poder não abrirão mão de seus privilégios políticos e econômicos sem resistir. Isso também explica sua hostilidade contínua em relação à ideia de “ocidentalização”, mesmo que tal atitude seja dirigida principalmente contra as instituições políticas. Seguir os velhos “costumes chineses” significa aceitar todos os males de um partido-estado senil: crises de sucessão e lutas acirradas entre gangues e facções internas, que fazem de suas disputas um jogo de soma zero engajando todos em uma batalha de vida ou morte.
Cerrando fileiras (mas com rachaduras)
Apesar de alguns setores parecerem cerrar fileiras, há opiniões divergentes em relação à guerra diplomática beligerante que está sendo travada entre Xi Jinping e Trump. Uma tendência destoante disfarçada de debate acadêmico tem se revelado na sociedade. Recentemente, essa voz foi ouvida quando algumas personalidades do mundo acadêmico começaram a criticar Hu Angang, professor de economia da Universidade Tsinghua nomeado conselheiro de Xi em todos os assuntos relacionados aos “métodos para alcançar a grandeza da nação”. Hu é conhecido por argumentar que "a China já ultrapassou os Estados Unidos como líder mundial em termos de poder econômico e tecnológico.”
Embora não saibamos os grandes segredos do PCC, existem muitas pistas que sugerem crescentes divergências internas. Em uma entrevista a um canal de notícias online afiliado à Phoenix TV em fevereiro de 2018, Long Yongtu (um ex-funcionário que desempenhou um papel importante na entrada da China à OMC) disse que o ponto de vista de Hu estava errado e que isso não apenas prejudicaria as relações políticas da China, mas também confundiria a população. Este não parece ser um evento isolado. Em agosto de 2018, Hu foi criticado em uma carta aberta escrita por um grupo de estudantes que se formaram na Universidade de Tsinghua, conclamando a Universidade a demiti-lo. A carta o acusava de usar "critérios arbitrários" em uma pesquisa conduzida por ele para exagerar a suposta grandeza da China.
Existem dois tipos de lideranças no partido, um é o burocrático do tipo "sangue vermelho", que chegou ao poder por causa de seu sobrenome, e outro tipo tem origens menos nobres. São burocratas que ascenderam graças a conexões pessoais, trabalho duro e sorte. Pessoas como o ex-Primeiro-ministro Wen Jiabao pertencem à segunda categoria de dirigentes burocráticos, que não gostavam da "linhagem vermelha" e falavam da necessidade de "direitos humanos universais", em clara oposição ao desprezo público por esse tipo de “valores ocidentais” que Xi se orgulha em ter. A ascensão da “linhagem vermelha” é obviamente um freio àqueles de origens “menos nobres”, ao mesmo tempo que faz uma distinção ainda mais visível entre os dois componentes da burocracia.
Então, por que esta ala dentro e fora do partido não pode resistir à concentração de poder nas mãos da “segunda geração vermelha”? Porque se alicerçam num setor liberal da economia privada enfraquecida frente à monopólios capitalistas ligados ao Estado. No entanto, não é preciso pensar que os setores liberais são mais bem-intencionados. Desde a década de 1990, eles nunca tentaram organizar a classe trabalhadora para lutar pela democracia. Seu principal interesse é a reforma econômica, não a reforma política.
Houve, até certo ponto, um diálogo entre os setores liberais e a “nova esquerda” chinesa. O diálogo não foi exitoso, pois mostrou que esses setores eram mais “neoliberais” do que “liberais”. Eles apoiaram três ondas de privatizações que ocorreram na China. Seu lema era "eficiência acima da justiça (social)". Só algum tempo depois eles começaram a falar em reforma política, embora boa parte de suas reivindicações fosse direcionada apenas à possibilidade de dividir o poder com a ditadura do partido único. Separados completamente da classe trabalhadora, os setores liberais permanecem fragmentados. Portanto, conforme o Estado chinês começa a atacá-los, eles têm poucos meios para resistir.
A versão de Xi Jinping da “ascensão chinesa” não é de forma alguma uma benção para o povo chinês ou para o mundo. Sua visão é simplesmente a de um estado orwelliano hegemônico com características chinesas. Seu conflito com o império americano não é nossa luta.