Sandra Morais Ribeiro dos Santos, EcoDebate, 24 de novembro de 2020
Em 25 de novembro comemora-se o Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres. Muitos países envolvem-se nesta causa, buscando vencer o medo e quebrar o ciclo da violência. Entretanto, em tempos de covid-19, não apenas uma epidemia viral tem assolado muitos lares, mas também um aumento dos casos de violência doméstica.
Viver com medo. Infelizmente essa é a realidade de 37% das brasileiras. Praticamente quatro em cada 10 mulheres sofrem violência de alguma forma no Brasil.
A cada nove horas, uma mulher é vítima de feminicídio em nosso país. Você está lendo este artigo e neste exato momento uma mulher pode estar sendo humilhada, espancada por seu parceiro ou por alguém muito próximo, poderá estar sendo estuprada e até mesmo morta por alguém a quem ela escolheu amar e partilhar sua vida.
Falar em violência contra as mulheres não é algo novo, para nossa tristeza e vergonha. Em pleno século XXI, quando festejamos tantas conquistas humanas do conhecimento e técnica, ainda precisamos discutir, ensinar e pior, enfrentar casos de barbáries sendo cometidas pelo ser humano. Viver com medo é algo, infelizmente, corriqueiro para uma parcela da população feminina brasileira e mundial. O medo, a falta de paz, de tranquilidade, de união, de aconchego, de um lar, de uma família. Medo do outro, de suas reações explosivas e inconsequentes, abusos psicológicos, ofensas e ciúmes inconcebíveis. Desespero e vergonha substituem a paixão, o amor, o respeito e a harmonia familiar. Quebram sonhos, deixam marcas no corpo e na alma, cicatrizes visíveis e invisíveis, tanto em quem sofre a violência quanto dos filhos e de toda a família, que por vezes chora junto, indignada e revoltada com os atos insanos que inúmeras vezes culminam num hospital, ou pior, num enterro.
A violência doméstica, cujo ápice é o feminicídio, tem aumentado em nosso país, principalmente nos últimos meses por conta da pandemia. Dados do Senado Federal e do Observatório da Mulher contra a Violência, mostram que no Brasil a violência doméstica aumentou nos últimos anos. As denúncias de agressões de ex-companheiros subiram de 13% em 2011 para 37% em 2019. Já os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 indicam um aumento do feminicídio no primeiro semestre de 2020 em relação a 2019. Situações que já eram insustentáveis para muitas brasileiras, tornaram-se insuportáveis com o isolamento social, que impôs a elas e seus familiares um maior período de convívio com o agressor. Muitos casos são subnotificados, pois as vítimas não dão queixas devido a uma série de fatores que vai desde a dificuldade de fazer uma ligação ou até mesmo ir a alguma delegacia para dar queixa.
Situações como um homem colocando fogo na casa com a mulher e os filhos dentro são assustadoras, mas acabam por se tornar corriqueiras, casuais nos jornais televisivos, nos tabloides diários, nas redes sociais. Estranhamos quando não há mortes e tragédias. A morte e a violência vendem. Até nos admiramos, ficamos impactados momentaneamente, mas “vida que segue”, “não é problema meu”, e logo nos esquecemos. Afinal, o que estamos nos tornando? Muitas destas mulheres não reagem, ou se reagem, vivem debaixo do medo da represália contra si mesmas ou seus filhos. Na maior parte das vezes elas tem que sair da própria casa, e são punidas duplamente. E seus filhos? Eles têm direito a convivência com o pai, mesmo quando o agressor está sob medida de afastamento. Então a questão não é tão simples assim. Não é somente a denúncia, mas todo o processo envolvido que precisa ser revisto.
Dificilmente você encontrará uma mulher que não passou ou que saiba de alguma conhecida que não tenha enfrentado alguma espécie de violência, seja ela psicológica, moral, patrimonial, até mesmo física ou sexual. Acompanhei através de Aconselhamento Pastoral inúmeros casos de violência doméstica. Todos inconcebíveis e intragáveis. Pessoas que aparentemente eram bons cidadãos, extremamente sociáveis e amigáveis transformavam-se na convivência íntima em algozes agressores. Mulheres com os olhos arroxeados, faces inchadas e com dor. Lembro-me de uma mulher que levou um coice nas costas, e quebrou as costelas, ainda tendo que trabalhar com dor para sustentar seus filhos, pois não podia abandoná-los. Outra vítima de um murro na cabeça, foi parar no hospital, com traumatismo craniano. A violência mais grave que acompanhei foi de uma vítima que foi estuprada pelo pai e pelo tio por mais de dez anos, desde a sua pré-adolescência. Violência velada, fechada nos quartos, nas casas, no escuro.
O Brasil sofre uma epidemia de violência doméstica e ninguém se dá conta da gravidade da situação. Tornou-se normal. Uma sociedade ainda predominantemente patriarcal, que protege o agressor e penaliza a vítima, até mesmo nos tribunais. Até hoje tem-se dificuldade em efetivar a Lei Maria da Penha em muitos casos. Justifica-se o injustificável. “Deixa para lá, coitado, está estressado, desempregado. Ele tem a personalidade forte”.
Mais do que refletir sobre o problema é preciso agir e mudar paradigmas. Denunciar casos de abuso é importante, mas também é preciso buscar formas de efetivação plena da Lei. Não basta tocar na ferida e vê-la sangrar. É preciso limpar e passar o remédio para que sare. É preciso refletir, falar sobre a violência contra a mulher, esclarecer o assunto, conscientizar a sociedade desde a mais tenra infância que isso não é normal, não é aceitável, não é certo. Mudar de atitudes e hábitos culturais estabelecidos por décadas, e isso implica numa mudança de mentalidade na busca da valorização do ser-humano, na concretização da sua dignidade, de igualdade, independente de qual seja o gênero sexual.
A pandemia da covid-19 só agravou uma situação que já era insustentável, e que precisa de medidas emergenciais, não somente do poder público, com políticas públicas de combate a violência de gênero, apoio às redes de proteção da mulher, e um maior envolvimento da sociedade civil em apoio a diretrizes e medidas em prol da proteção da mulher. A ausência de denúncia pode significar uma futura morte, mas a omissão também mata.