Fernando Silva, jornalista e membro do Diretório Nacional do PSOL
A aventura golpista de Trump e da extrema direita fascista e racista estadunidense durou poucas horas. Embora barulhenta, radicalizada e impactante, em se tratando de uma invasão do Congresso dos mais antiga democracia burguesa, mostrou que não havia qualquer base real para mudar o resultado das eleições – dar um golpe em termos práticos. O Congresso voltou a reunir-se na noite do mesmo dia, depois da retirada dos extremistas e confirmou a vitória de Biden. O atentado megarreacionário no Capitólio custou a vida de quatro pessoas, em circunstâncias ainda pouco nítidas, dezenas de prisões e vários feridos.
Nesse mesmo dia, foi divulgado o resultado das eleições na Geórgia para o Senado, com vitória total dos Democratas, que elegeram os dois senadores nas duas cadeiras em disputa, sendo um deles o primeiro senador negro na história do Estado, um berço histórico do racismo sulista e terra natal de Martin Luther King. Dessa forma, os Republicanos perderam o controle também do Senado, fechando assim o quadro de uma grande derrota eleitoral e política desse partido e da fração trumpista em particular.
A partir dos fatos de ontem, algumas perguntas precisam ser feitas e, na medida do possível, respondidas. Parece inegável que estamos diante de mudanças profundas no panoramo político mundial, resultantes do aprofundamento da crise capitalista – econômica, social, política, ambiental – com a pandemia ainda em auge (o segundo), mesmo com o início da vacinação.
Presenciamos pelas Tvs e redes um episódio gritante da crise da hegemonia do império capitalista-racista estado-unidense e seu modelo político, crise não contornada desde o crash financeiro de 2008. Essa crise jogou dezenas de milhões de pessoas na pobreza no país mais rico e poderoso do planeta. Essa crise tem como resposta global do capitalismo um aprofundamento da agenda neoliberal em termos selvagens em todos os terrenos, penalizando sobremaneira os mais pobres e ameaçando todo o ecossistema do planeta de forma inédita, dado o caráter ainda mais predador desta fase 2.0 do neoliberalismo.
No terreno político, este perído aberto com a crise de 2008 tem revelado uma crise profunda das representações políticas tradicionais, seus regimes e formas de governo. Nesse contexto, e como parte de uma estratégia de aprofundamento da superexploração e terror sobre os povos e setores mais vulneráveis, têm crescido as alternativas reacionárias, autoritárias e neo ou protofascistas. No caso dos EUA, o anterior crescimento do Tea Party, ala direita extremamente conservadora do Partido Republicano, durante o período dos governos Obama, já era um prenúncio da polarização que viria. Trump a elevou à categoria de um autoritarismo explícito e provocador em termos de projeto de poder, de ódio racial, de apologia ao mercado e negação de qualquer lógica de direitos.
Fatos recentes não devem ser desprezados
A aventura golpista de 6 de janeiro, estimulada abertamente pelo presidente da República desde o resultado das eleições, se insere nesse contexto global de busca de saídas autoritárias e reacionárias para e crise sistêmica e em particular para a crise de hegemonia do imperialismo norte-americano.
Mas, inegavelmente, Trump e a extrema direita foram derrotados no dia 6. Não havia qualquer condição para que tal aventura fosse vitoriosa. Não havia apoio das Forças Armadas, nem das agências mais relevantes do aparato estatal estadunidense (em que pese o "corpo-mole" das forças policiais federais em realmente buscar deter a invasão). Não houve divisão relevante na classe dominante, nem na poderosa mídia corporativa. Mesmo no Partido Republicano o apoio ao delírio trumpista foi se desidratando após a invasão do Capitólio.
Neste momento, é possível supor que Trump poderia ter perdido o controle dos seus radicais e que a invasão do Capitólio não estava em seus planos. Mas a responsabilidade é cabalmente dele, dado o seu chamado explícito na porta do Capitólio durante a manhã, o nível de agitação, mentiras e provocações de seu discurso, que mobilizou a parcela mais extremista da sua base social.
Registre-se que não foi uma mobilização de massas nacional e nem mesmo em Washington. O chamado tanto de Trump como das redes que articularam a manifestação reacionária, como a QAnon, era para que manifestantes fossem de todo o país. Deste ponto de vista, foi relativamente pequena a adesão à aventura. A velocidade com que o próprio presidente chamou o recuo, pedindo aos seus apoiadores para irem para casa depois do discurso de Biden, dá uma dimensão dos limites da adesão e do desastre da invasão.
Trump pode ter queimado seriamente parte do seu capital político acumulado nos 74 milhões de votos e na sua relação com as instituições. Não se pode descartar que ele saia deste processo isolado e com algum tipo de retaliação (pela sua condução na aventura e até pelas suas enormes dívidas e problemas com a Receita Federal). Pode ser também que o objetivo de constituir um movimento político sob sua condução tenha se enfraquecido no curto prazo. Mas todos os nervos desta crise política, social e econômica, num país muito dividido, foram expostas na intentona aventureira de 6 de janeiro.
Coisas só ficarão mais nítidas nos próximos meses e anos.
Os democratas conseguirão capitalizar a vitória política e eleitoral iniciada em novembro e consolidada em 6 de janeiro? Terão uma agenda social e econômica capaz de tirar a classe trabalhadora dos EUA profundo, penalizada pela globalização neoliberal, da órbita do trumpismo? Vão mesmo enfrentar a questão ambiental? Vão ter uma agenda concreta para a questão racial e para combater de verdade o racismo das forças policiais? Vão enfrentar o debate do controle de armas? Em que pese o crescimento de setores de esquerda e progressistas no Partido Democrata, incluindo nas bancadas parlamentares, não é esse o histórico que prevalece nesse que é um dos principais partidos imperialistas do planeta, e isso inclui o período Obama, que contribuiu para salvar o parasitário sistema financeiro de Wall Street.
Ou seja, não se deve ter nenhuma ilusão de que o governo Biden-Harris será uma mudança de qualidade no status quo das políticas tradicionais dos democratas, representantes seculares das grandes corporações made in USA. Vale lembrar que a derrota de Trump foi produto também de um tremendo processo de mobilização e organização ao longo dos últimos anos: as mobilizações de massas antirracistas em 2020, a mobilização da juventude pelo controle de armas, a mobilização das mulheres, a mobilização LGBT contra os massacres, as greves em diversos setores (em particular os mais afetados pela pandemia, como profissionais d saúde, professores e operários da indústria alimentícia) e uma jovem renovação no sindicalismo norte-americano.
Outra questão a verificar é a do destino do Partido Republicano após a derrota neste processo. Vai aprofundar o caminho em direção ao trumpismo? Vai livrar-se de Trump e sua fração e buscar voltar ao caminho conservador dentro da ordem democrática? Vai dividir-se? Podemos estar diante de uma realinhamento inédito como a formação de um novo partido de direita com viés mais neofascista e supremacista nos EUA?
Seja quais foram as tendências predominantes, não se deve subestimar o potencial deste tipo de movimento que se forma nos EUA.
Lições para o Brasil
Guardando as devidas proporções sobre o peso e lugar que têm EUA e Brasil no cenário mundial, o nosso país tem um governo muito parecido com o de Trump. O bolsonarismo é parte deste novo repertório internacional, de representação política de um setor de classe dominante que defende saídas autoritárias e golpistas para a crise e não tem compromisso com um funcionamento democrático de sociedade, mesmo a liberal-burguesa.
Mesmo após as recentes derrotas do trumpismo, Bolsonaro continua aliado incondicional do discurso da fraude, não condenou a aventura golpista e, pior, já anuncia o mesmo roteiro para 2022, ao dizer que, se tiver voto eletrônico aqui ,vai ter fraude. Portanto, já está assinalando que não aceitará pacificamente uma derrota eleitoral.
Não sabemos ainda em que condições vão se dar as eleições do ano que vem e como estará o governo Bolsonaro até lá. O país caminha para um nível maior de empobrecimento e a questão da pandemia pode aumentar muito o desgaste de Bolsonaro. Mas não se deve desprezar algumas vantagens que ele tem se fizermos um paralelo com os recentes acontecimentos nos EUA. A democracia no nosso país é bem mais frágil que a bissecular democracia estadunidense. Bolsonaro tem algum peso nas Forças Armadas e bastante apelo nas forças policiais.
Portanto, se estamos falando de tendências internacionais de período, é importante não subestimar o potencial de aventuras golpistas futuras e tratar desde já de nos preparar, começando pelo bom e insubstituível processo de organização e mobilização, como fizeram durante os últimos anos, só para ficar em um exemplo, os movimentos antirracistas nos EUA.
Importante buscar nos movimentos sociais, na classe trabalhadora em todos seus setores e atores mais politizados e progressistas, a retomada da luta pelo Fora Bolsonaro, a organização para ação a partir das demandas sociais, democráticas, econômicas e ambientais mais urgentes para este ano de 2021. Esse é o caminho para começar a construir a derrota de Bolsonaro e de qualquer tentativa golpista o quanto antes.
Vamos comemorar a derrota da aventura trumpista, e que ela sirva de estímulo para botarmos a mão na massa e prepararmos nossas vitórias futuras.