Em vez de alimentar lucros privados, tecnologias precisam garantir transportes, saúde, educação, energia e segurança para todos. Artigo de Francesca Bria, publicado em Barcelona Metropolis/Outras mídias, 30/11/2020. Tradução O Partisano
A mudança estrutural rumo à economia digital e a quarta revolução industrial deveriam suscitar uma profunda reflexão. A inteligência artificial, a computação em massa, a robotização e a automação transformam rapidamente nossa indústria e sociedade de modo especialmente disruptivo, desde a agricultura de precisão até os carros sem motorista, passando pelo uso da aprendizagem automática no âmbito da saúde. As plataformas digitais são instituições algorítmicas poderosas que transformam radicalmente o mercado de trabalho e desafiam a legislação. A automação de setores tradicionalmente braçais em termos de mão-de-obra – como a indústria, a logística e os transportes – têm um grande impacto sobre a cadeia mundial de produtos básicos e sobre o deslocamento e a destruição de postos de trabalho.
De fato, a ascensão do capitalismo digital traz muitos desafios: desde o poder dos monopólios até a necessidade de um novo imposto sobre as plataformas digitais, passando pela legislação comercial, o desemprego devido à automatização e as questões sobre liberdades civis. As grandes empresas de tecnologia têm um valor total de mercado de três trilhões de dólares, enviando para o exterior cerca de um trilhão de dólares na última década, enquanto emitem dívida no mercado público dos Estados Unidos a taxas de juros muito baixos, reutilizando-a na recompra de ações. Isso significa que 80% da riqueza corporativa está nas mãos de 10% das empresas, o que implica um aumento do lucro corporativo e da desigualdade na distribuição da riqueza.
Acresce que o setor público depende cada vez mais da indústria tecnológica. Apesar disso, raramente perguntamos de onde provêm esse poder e essa dependência. Por que o imenso valor econômico que representa essa revolução digital exclusivamente nas empresas de tecnologia e não nos cidadãos ou das instituições públicas? E que podemos fazer para garantir que uma parte desse valor seja devolvido aos cidadãos ao mesmo tempo em que os capacitamos para usar a tecnologia para a participação política, além de oferecer serviços públicos melhores e mais acessíveis? Temos que repolitizar a questão da tecnologia, e é preciso centrar o debate na distribuição dos bens e do poder, assim como na gestão dos serviços sociais e das infraestruturas críticas do futuro.
Face ao triste estado da política em ambos os lados do Atlântico, pode parecer uma missão impossível. Mas há um ponto luminoso no horizonte: as cidades, que podem tornar-se laboratórios para a democracia e para a sustentabilidade. Podem instaurar um modelo de transporte público, moradia, saúde e educação que seja inteligente, com um uso intensivo de dados e algoritmos, baseado numa lógica de solidariedade, cooperação social e direitos coletivos.
Recuperar a soberania tecnológica
Quando falamos de tecnologia e de dados urbanos, estamos diante de uma espécie de meta-utilidade, composta pelos mesmos sensores e algoritmos que impulsionam o resto da cidade. À medida em que as cidades perdem seu controle, encontram cada vez mais dificuldades para impulsionar modelos não neoliberais em âmbitos teoricamente “não tecnológicos” como a energia ou a saúde. Um conceito de grande utilidade para as cidades que desejam preservar um certo grau de autonomia nesse mundo digital é o de “soberania tecnológica”: uma ideia bastante simples, que consiste em permitir aos cidadãos a participação na hora de decidir como funciona a infraestrutura tecnológica que os rodeia, e que finalidades tem.
A noção de “soberania”, quer seja financeira ou energética, impregna as atividades de muitos movimentos sociais urbanos. Conceitos como soberania energética podem ser compreendidos facilmente e são capazes de mobilizar grandes setores da população. Mas que sentido tem a soberania energética, quando fazemos a transição para a rede inteligente, e empresas como o Google oferecem a redução da conta de luz em um terço em troca da entrega de nossos dados de consumo de energia? Ela faz algum sentido se não estiver estreitamente ligada à luta pela soberania tecnológica? Com certeza não.
A luta pela soberania digital deveria estar acompanhada de uma agenda política e econômica coerente e ambiciosa, capaz de reverter o dano provocado pela virada neoliberal na política urbana e nacional. As intervenções práticas bem orientadas podem ter um grande impacto. Uma vez que a assinatura de contratos para projetos de cidades inteligentes demanda a aquisição de licenças de software, deveria se fazer todo o possível para exigir software livre e alternativas de código aberto. Barcelona é pioneira nessa frente, pois já estabeleceu um Plano de Cidade Digital que se compromete a retirar os produtos da Microsoft de seus sistema e investir mais de 80% de seu novo orçamento de desenvolvimento de Tecnologia da Informação em serviços de software livre e de código aberto, além de introduzir cláusulas de “soberania de dados” nos contratos de compras públicas e de definir padrões éticos digitais que devem ser seguidos pelos funcionários públicos no processo de digitalização.
É possível que seja necessário reformular o direito à cidade como o direito fundamental de gozar de direitos, já que a alternativa supõe o risco de que os gigantes digitais sigam redefinindo todos esses direitos. Por exemplo, que significa ter direito à cidade numa cidade gerida por empresas tecnológicas e governada pelo direito privado, com cidadãos e entidades civis que não podem acessar de maneira livre e incondicional recursos-chave como, por exemplo, dados, conectividade e potencial computacional, que lhes permitam aspirar à autogestão? E até que ponto a perda do controle sobre a meta-utilidade baseada na informação impediria o sucesso das campanhas de remunicipalização, para recuperar a infraestrutura energética, de transporte ou fornecimento de água, e para permitir que tais serviços públicos levem a cabo uma transição para seu próprio modelo de consumo “inteligente”, com um novo conjunto de intermediários privados?
Definitivamente, as corajosas cidades que queiram implementar recursos-chave e infraestruturas digitais sob um modelo jurídico e econômico diferente, que gere resultados benéficos para os cidadãos e para a indústria local, devem demonstrar que os modelos econômicos propostos pela Uber, pelo Google, pelo Airbnb e outros, não oferecem os resultados prometidos, ao menos sem provocar um dano considerável em forma de aumento da economia especulativa e da gentrificação, da precarização do trabalho, e de um enorme bloqueio da inovação social aos que não possuem acesso aos dados. Muitas dessas experiências alternativas para garantir cidades digitais soberanas precisam contar com a participação de outras cidades afins e com sinergias mais fortes em escala nacional, europeia e mundial, como o demonstram projetos promissores como por exemplo a Aliança das cidades para proteger os direitos digitais, iniciada por Barcelona Nova York e Amsterdam.
Um novo acordo: dados comuns da cidade
Mudar o regime de propriedade de dados pode ser uma opção acessível, simplesmente por não demandar compromissos financeiros vultuosos e por representar uma agenda com um atrativo popular intuitivo: as cidades e os cidadãos, não as empresas, deveriam poder utilizá-los para melhorar os serviços públicos e por em prática suas políticas.
Na quarta revolução industrial, os dados e a inteligência artificial (IA) são infraestruturas digitais essenciais, críticas para a atividade política e econômica. Os dados tornaram-se a mercadoria mais valiosa do mundo. São a matéria-prima da economia digital e o combustível da IA. Empresas de todos os setores contam com a inteligência artificial para impulsionar o crescimento nos próximos anos e a aprendizagem automática aumentará a rentabilidade do investimento de 10% a 30%. Os dados não podem ser controlados por um punhado de gigantes tecnológicos. Os modelos de negócio que exploram dados pessoais para pagar infraestruturas críticas não funcionam. Temos que democratizar a propriedade dos dados e a inteligência artificial, passando do extrativismo dos dados aos dados comuns ou data commons.
Adotar uma postura firme quanto à propriedade dos dados pode permitir alcançar simultaneamente diversos objetivos. Em primeiro lugar, tornaria muito mais difícil a especulação imobiliária desenfreada facilitada por empresas como a Airbnb: as cidades e os cidadãos poderiam comprovar rapidamente a veracidade da alegação recorrente da Airbnb em defesa própria, de que os usuários particulares são seus principais beneficiários. Em segundo lugar, o controle das cidades de seus próprios dados eliminaria uma das principais moedas de troca que empresas como a Uber têm para negociar com os reguladores: em Boston, por exemplo, a Uber ofereceu às autoridades o acesso aos dados de trânsito em troca de uma regulação mais permissiva. Em terceiro lugar, parece muito improvável que as cidades possam estimular o crescimento de uma economia digital alternativa de alcance local, potente e descentralizada, sem um regime de dados alternativo sólido: na falta disso, é possível que esses pequenos aspirantes não possam competir com os gigantes.
O projeto DECODE
O enorme valor econômico desses dados deveria ser devolvido aos cidadãos. Ajudando-os a recuperar o controle de seus dados, podemos gerar valor público em lugar de benefícios privados. Para citar um dos exemplos mais ambiciosos, Barcelona está apostando num novo enfoque de dados chamado “city data commons” que supõe um novo pacto social para aproveitar ao máximo os dados, garantindo a soberania e a privacidade. Os dados são uma infraestrutura-chave da cidade e podem ser utilizados na adoção de decisões melhores, mais rápidas e mais democráticas, promover a inovação, melhorar os serviços públicos e empoderar as pessoas.
Experimentamos em Barcelona a socialização dos dados para promover novas plataformas cooperativas e democratizar a inovação. Esse é o objetivo do projeto DECODE, que a cidade lidera com treze organizações associadas de toda a Europa, e que também inclui Amsterdam. O projeto desenvolve tecnologias descentralizadas (como, por exemplo blockchains e criptografia baseada em atributos) para oferecer às pessoas um controle melhor de seus dados, em parte estabelecendo regras sobre quem pode acessá-los, com que finalidades e em que condições. Nosso objetivo é criar “dados comuns” ou data commons a partir de dados produzidos por pessoas, sensores e dispositivos. São um recurso compartilhado que permite que os cidadãos, além de contribuir na coleta de dados e ter acesso a eles, possam utilizá-los – como por exemplo dados relativos à qualidade do ar, à mobilidade ou à saúde, como um bem comum, sem as restrições de direitos de propriedade intelectual.
Barcelona considera os dados como uma infraestrutura pública, juntamente às redes de comunicação, à eletricidade, a água e o ar limpo. Trata-se de uma metautilidade que nos permitirá construir futuros serviços públicos inteligentes de transporte, saúde e educação. No entanto, não estamos construindo um novo panóptico. Os cidadãos estabelecerão o nível de anonimato, de maneira que não possam ser identificados sem consentimento explícito, e manterão controle sobre os dados compartilhados para o interesse comum. Essa infraestrutura de dados comum estará aberta a empresas, cooperativas e entidades sociais locais que possam gerar serviços centrados nos dados e criar valor público a longo prazo.
Envolvendo os cidadãos de Amsterdam e de Barcelona, o DECODE aborda os problemas do mundo real. Por exemplo, está integrado à plataforma de participação decidim.barcelona, já utilizada por milhares de cidadãos para definir a agenda política da cidade, com mais de 70% das ações da prefeitura propostas diretamente pelos cidadãos. Em lugar de utilizar a informação pessoal dos eleitores (proporcionada por empresas como a Cambridge Analytica) para a manipulação, como outros fazem, nossa intenção é utilizar as plataformas de uso intensivo de dados para potencializar a participação e exigir mais responsabilidade de los políticos.
Os dados comuns também podem ajudar as cidades a desenvolver alternativas a plataformas sob demanda depredadoras como a Uber ou a Airbnb. A introdução de uma regulação justa e de uma transparência algorítmica para controlar a economia sob demanda é necessária mas insuficiente. Barcelona empreendeu várias iniciativas para potencializar o uso compartilhado de alternativas econômicas, como por exemplo cooperativas de plataforma e experiências com plataformas coletivas de última geração que trabalham pelo interesse público.
Começando pelas cidades, podemos desafiar a narrativa atual dominada pelo capitalismo de vigilância com vazamentos do Vale do Silício e os modelos distópicos como o sistema de crédito social da China. Há muito falta um novo acordo sobre dados, estabelecido com base nos direitos e centrado nas pessoas, que não explore os dados pessoais para pagar infraestruturas críticas.
A Europa acaba de aprovar uma nova norma de proteção de dados, baseadas em princípios tão válidos como, por exemplo, a “privacidade desde a concepção”, a “portabilidade de dados” ou o “direito ao esquecimento”. Junto aos novos instrumentos normativos fiscais, antimonopolistas e de comércio digital, essas intervenções arrojadas podem gerar alternativas em que os cidadãos tenham mais poder sobre seus dados e sobre o futuro que se constrói.
Agora que nos perguntamos como poderíamos criar um setor financeiro a serviço da economia real, deveríamos perguntar-nos também como poderíamos criar um setor digital a serviço das pessoas. Precisamos de um novo pacto social para a sociedade digital que aproveite ao máximo as novas tecnologias, o acesso aos dados e a inteligência artificial, garantindo os direitos dos trabalhadores, os padrões ambientais e a igualdade de gênero. Este novo pacto social demandará a reformulação do modelo econômico para a sociedade digital, garantindo que se possa gerar valor público, e não apenas lucros privados, reconquistar infraestruturas digitais críticas – cedidas há muito tempo a empresas como o Facebook, a Alphabet ou a Microsoft – e proteger a soberania digital dos cidadãos. É uma questão de democracia e cidades como Barcelona podem mostrar o caminho e abrir uma nova via rumo a uma rede de cidades digitais soberanas que reivindiquem a governança democrática das infraestruturas do século 21, incluindo a soberania de dados e uma IA ética para os cidadãos. Assim configuraremos um futuro digital para uma maioria, e não para poucos.