bel hooks, El País Brasil, 2 de março de 2021
Ao falar de amor com pessoas da minha geração, descobri que elas ficavam nervosas ou assustadas, especialmente quando eu comentava que não me sentia amada o suficiente. Em diversas ocasiões em que falei de amor com amigos, eles me aconselharam a fazer terapia. Entendi que alguns poucos estavam simplesmente cansados da minha insistência na questão e achavam que se eu fizesse terapia eles teriam uma folga. No entanto, a maioria ficava apavorada em relação ao que poderia ser revelado em qualquer investigação sobre o significado do amor na vida deles. Toda vez que uma mulher solteira por volta dos quarenta anos introduz na conversa a questão do amor, vem à tona, repetidamente, a suposição, enraizada no pensamento machista, de que ela está “desesperada” por um homem. Ninguém pensa que ela está apenas intelectualmente interessada no assunto. Ninguém pensa que ela está rigorosamente envolvida numa empreitada filosófica na qual está se aventurando a entender o significado metafísico do amor na vida cotidiana. Não: ela é vista apenas como alguém em busca de uma “atração fatal”.
Na cultura popular, o amor sempre é da ordem da fantasia. Talvez seja por isso que os homens tenham produzido a maioria das teorias acerca do amor. A fantasia tem sido em grande parte domínio deles, tanto na esfera da produção cultural quanto no dia a dia. A fantasia masculina é vista como algo capaz de criar realidade, enquanto a fantasia feminina é tratada como puro escapismo. Portanto, o romance, como gênero literário, é o único domínio em que as mulheres falam de amor com algum grau de autoridade. Entretanto, quando os homens se apropriam do gênero das narrativas românticas, suas obras são muito mais reconhecidas que a escrita das mulheres. Um livro como As pontes de Madison o exemplo supremo. Se essa história de amor sentimental e superficial (que, apesar disso, tem seus momentos altos) tivesse sido escrita por uma mulher seria improvável que ela se tornasse um sucesso tão grande, cruzando todas as fronteiras do gênero literário.
É claro que são as mulheres as principais consumidoras de livros sobre o amor. Ainda assim, o machismo sozinho não explica a ausência de mais obras de e sobre o amor escritas por mulheres. Aparentemente, as mulheres estão dispostas e ansiosas a ouvir o que os homens têm a dizer sobre o amor. Mulheres machistas podem achar que já sabem o que outra mulher diria. Esse tipo de leitora pode ter a sensação de que tem mais a ganhar lendo o que homens têm a dizer.
Quando eu era mais nova, lia sobre o amor e nunca pensava a respeito do gênero do autor. Ansiosa para compreender o que queremos dizer quando falamos de amor, não considerava de fato quanto o gênero molda a perspectiva do escritor. Foi apenas quando comecei a pensar seriamente sobre o tema do amor e a escrever sobre isso que ponderei se mulheres o fazem de forma diferente dos homens.
Ao revisar a bibliografia sobre o amor, percebi que poucos escritores, sejam homens ou mulheres, falam do impacto do patriarcado, da forma como a dominação masculina sobre mulheres e crianças é uma barreira para o amor. A criação do amor: a grande etapa do crescimento, de John Bradshaw, é um dos meus livros favoritos sobre o tema. Ele corajosamente tenta estabelecer uma relação entre a dominação masculina (a institucionalização do patriarcado) e a falta de amor nas famílias. Conhecido por chamar a atenção em sua obra para a “criança interior”, Bradshaw acredita que acabar com o patriarcado é um passo em direção ao amor. Entretanto, seu livro a respeito do amor nunca recebeu a atenção e o reconhecimento merecidos. Ele não teve a repercussão das obras de homens que escrevem sobre o assunto reafirmando papéis de gênero machistas.
Mudanças profundas na forma como pensamos e agimos precisam acontecer se quisermos criar uma cultura baseada no amor. Homens que escrevem sobre o amor sempre atestam que foram amados. Eles falam a partir desse lugar, isso lhes confere autoridade. Mulheres, com frequência, falam de um lugar de falta, de não terem recebido o amor que desejavam. Uma mulher que fala de amor é suspeita. Talvez isso ocorra porque tudo que uma mulher esclarecida teria a dizer sobre o amor representaria uma ameaça direta e um desafio às visões que nos foram oferecidas pelos homens.
Quase todos os livros recentes e populares de autoajuda sobre o amor escritos por homens, títulos como Homens são de Marte, mulheres são de Vênus [de John Gray] e Love and awakening: discovering the sacred path of intimate relationship [Amor e despertar: descobrindo o caminho sagrado da relação íntima], de John Welwood, se apoiam em perspectivas feministas sobre os papéis de gênero. No entanto, em última análise, os autores continuam apegados a um sistema de crenças que sugere a existência de diferenças intrínsecas entre homens e mulheres. Na realidade, todas as evidências concretas indicam que, embora as perspectivas de homens e mulheres frequentemente difiram, tais diferenças são aprendidas, e não inatas ou “naturais”. Se fosse verdadeira a ideia de que homens e mulheres seriam complemente opostos, habitando universos emocionais totalmente diferentes, os homens jamais teriam se tornado as autoridades máximas no amor. Levando em conta os estereótipos de gênero que atribuem às mulheres o papel dos sentimentos e da emotividade, e aos homens o da razão e da não emoção, “homens de verdade” teriam aversão a qualquer conversa a respeito do amor.
Embora sejam considerados “autoridades” no assunto, apenas alguns homens falam abertamente, dizendo ao mundo o que pensam em relação ao amor. No dia a dia, homens e mulheres são relativamente silenciosos quanto ao tema. Nosso silêncio nos protege da incerteza. Queremos conhecer o amor. E temos medo de que o desejo de saber muito sobre ele nos aproxime cada vez mais do abismo do desamor. Embora vivamos numa nação cuja grande maioria dos cidadãos se declara seguidora de credos religiosos que proclamam o poder transformador do amor, muitas pessoas sentem que não fazem a menor ideia de como amar. E praticamente todos sofrem uma crise de fé quando se trata de vivenciar no cotidiano as teorias bíblicas sobre a arte de amar. É bem mais fácil falar de perda do que de amor. É mais fácil articular a dor da ausência do amor que descrever sua presença e seu significado em nossa vida.
Todo mundo quer saber mais sobre o amor. Queremos saber o que significa amar, o que podemos fazer em nosso dia a dia para amarmos e sermos amados. Queremos saber como seduzir aqueles que continuam fiéis à falta de amor e abrir as portas de seu coração para que deixem o amor entrar. A força de nosso desejo não muda o poder de nossa incerteza cultural. Em todos os lugares aprendemos que o amor é importante, mas somos bombardeados por seu fracasso.
Nosso país é igualmente movido pela obsessão sexual. Não há aspecto da sexualidade que não seja estudado, comentado ou demonstrado. Há tutoriais para todas as dimensões da sexualidade, até para a masturbação. No entanto, não existem escolas para o amor. Todo mundo supõe que saberemos, instintivamente, como amar. Apesar de esmagadoras evidências contrárias, ainda aceitamos que a família é a escola primordial para o amor. Daqueles de nós que não aprendem como amar em família, espera-se que experimentem o amor em relações românticas. Contudo, esse amor geralmente nos escapa. E passamos a vida inteira desfazendo os danos causados pela crueldade, pela negligência e por todas as formas de desamor que vivenciamos em nossa família de origem e em relacionamentos nos quais simplesmente não sabíamos o que fazer.
Só o amor pode curar as feridas do passado. Entretanto, a intensidade de nossos ferimentos frequentemente nos leva a fechar nosso coração, tornando impossível retribuirmos ou recebermos o amor que nos é dado. Para abrirmos nosso coração mais plenamente para o poder e a graça do amor, devemos ousar reconhecer quão pouco sabemos sobre ele na teoria e na prática.
bell hooks (pseudônimo de Gloria Jean Watkins, sempre escrito em minúsculas) é escritora e ativista norte-americana e uma das mais importantes intelectuais feministas da atualidade. Autora de E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo e Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra, entre outros. Este texto é um trecho de seu livro Tudo sobre o amor, que a editora Elefante publica no Brasil.