“A controvérsia repousa na realidade na oposição política entre uma ecologia humanista e uma ecologia anti-humanista, entre uma ecologia social e uma ‘ecologia profunda’ ou naturalista. O debate é sobre se o homem pode ser considerado como um fim atual da biodiversidade ou como uma espécie entre outras cujo futuro somos indiferentes. Confrontados com as misérias de nossos tempos, nos esforçamos para responder a elas com nossos meios, lidando com nosso nicho espaço-temporal. Nesse nível, a crise ecológica continua se cruzando com a crise social.” - Daniel Bensaïd, Critique de l'écologie politique, Contretemps n.4, 2002, em tradução livre.
Há algum tempo, Belo Horizonte se viu tomada pela discussão acerca da proibição do uso de carroças com tração animal. Alçada à condição de projeto de lei – o PL n. 142/2017, de autoria do empresário Osvaldo Lopes (então no PHS, hoje no PSD), foi aprovado pela Câmara Municipal da capital mineira no apagar das luzes da legislatura passada, encontrando-se hoje às vésperas da data limite para ratificação pelo prefeito reeleito Alexandre Kalil (PSD).
Chamado “Carreto do bem”, propõe a substituição de veículos de tração animal por tração motorizada, isso no prazo de dez anos. Vencido esse prazo, a lei aponta que eventuais animais encontrados tracionando veículos serão apreendidos, destinados ao Centro de Controle de Zoonoses para “adoção” e o carroceiro será multado pela prática proibida. Como medidas transicionais, aponta a obrigatoriedade do cadastramento e microchipagem de animais, capacitação de carroceiros para condução de veículos automotores1 e “transposição, através de políticas públicas, dos condutores de veículos de tração animal identificados e cadastrados para outros mercados de trabalho”, sem afirmar que políticas seriam estas.
Com o reaquecimento destas discussões, que infelizmente se deu mais nas redes sociais do que nas ruas – muito embora estas também tenham pulsado no dia 14 e 19 de janeiro com manifestações contrárias à promulgação do texto legislativo –, nos parece fundamental, enquanto ecossocialistas, trazer alguns comentários ante ao debate colocado:
1. O tema não é nada simples de abordar, e como tudo no mundo se vê atravessado por diversas contradições. Pelo próprio processo social e político que o alcança, tais contradições se mostram muitíssimo profundas, isso por não afetarem pura e tão somente a vida de equinos, muares e outros animais usados na condução de carroças, mas por incidir na contradição entre capital-trabalho-natureza e dizer diretamente a respeito da vida dos carroceiros.
2. Os argumentos colocados por uma expressiva parte dos defensores do projeto não leva em conta essa tensão e assumem de modo simplista a necessidade de proteção dos animais, passando ao largo da complexidade do tema. Menor seria o problema se estas defesas tão somente eclipsassem questões fundamentais relacionadas a aspectos sociais importantes resultantes da proibição pretendida. Mas ao contrário disso, rebaixam duramente a discussão e trazem argumentos que chegam mesmo a assustar.
3. Talvez a mais absurda alegação são as que fazem paralelos entre o uso de animais na tração – sobretudo equinos – à escravidão, que em nosso país se manifestou como a mais aberrante chaga da história da humanidade, reduzindo pessoas sequestradas do continente africano e populações autóctones – estas últimas em menor quantidade – à condição de coisas, apropriadas e feitas enquanto objeto de comércio e cruel exploração. Um desrespeito sem tamanho a toda população negra e indígena de nosso país, descendente desse componente imenso de trabalhadores e trabalhadoras que experimentaram as piores atrocidades já vividas por seres humanos e que seguem contemporaneamente marcadas pela afirmação do genocídio, concordando com as linhas de Abdias Nascimento. Mais grave ainda é perceber essa alegação quando temos em conta, como nos traz a vereadora Iza Lourença (PSOL), que são a maioria destes carroceiros pessoas negras.
4. Argumentos outros, como a ocorrência de acidentes de trânsito – como se os maiores causadores destes não fossem os veículos automotores –, a sujeira das vias públicas – desconsiderando a poluição por hidrocarbonetos dos motores a combustão –, a intensificação de engarrafamentos – esquecendo que a substituição por veículos outros não afeta a questão – e a aparente sujeição dos animais a maus-tratos – tomadas por episódicas notícias em que o mesmo ocorre – invariavelmente se revestem de traços moralizantes que desconsideram questões relacionadas ao vínculo dos carroceiros com seus animais, o uso tradicional das carroças em diversas atividades de trabalho no campo e na cidade e a própria necessidade – e anseio – destes carroceiros em seguirem na execução de seus ofícios para fins de existência.
5. Mas não é por falta de argumentos, que nos habilitem a trazer outros em defesa do projeto, que nossa manifestação se coloca contra o PL n. 142/2017, prestes a ser promulgado enquanto Lei n. 98/2020. Mas justamente pelo completo descabimento da medida é que nos manifestamos.
6. Precisamos colocar, todavia que de modo algum estamos a defender os maus-tratos aos animais. Muito pelo contrário, somos os primeiros a nos lançar na defesa de toda vida, contra o consumo desenfreado de carne e sua produção industrial, pela redução de práticas de consumo em geral e predação do planeta, reconhecendo a finitude dos recursos naturais, a reclamar a cada passo – imediato ou estratégico-revolucionário – que damos a atenção a esta perspectiva ecológica radical. Nossa luta é permanente conta toda forma de destruição da natureza e da teia de vida da qual fazemos parte também.
7. É certo que em um plano ideal, nenhum ser humano seria explorado ou oprimido, e nossa vivência seria harmônica para com o restante da natureza. Inclusive para que fossem minoradas drasticamente as ingerências humanas em todas as formas de existência que nos cercam. Estamos longe, porém, deste plano.
8. Nesse contexto de profunda crise ecológica – que sensibiliza mentes e corações em prol da defesa de rios, florestas, mares, da atmosfera e toda biodiversidade –, justifica-se a defesa do interesse destes animais domésticos usados para o trabalho. Ocorre que esta contundente e ineditamente profunda crise ecológica se faz atravessar por uma dimensão social também sem precedentes, que não nos autoriza fazer vistas grossas dos problemas sociais graves que podem resultar de medidas como esta proposta.
9. Em um momento em que a economia do país se vê solapada por uma gangue de irresponsáveis, que a inflação galopa, que é crescente o número de pessoas colocadas abaixo da linha da miserabilidade e o desemprego chega às marcas mais altas das últimas décadas, eliminar pela apropriação os meios de vida de mais de dezena de milhar de cidadãos de Belo Horizonte não só parece uma péssima ideia como é de todo desumana.
10. E não podemos deixar de ter em conta que o ecossocialismo é antes de tudo uma expressão radical do humanismo. Qual o marxismo, do qual bebe e alimenta. Desse modo, uma ecologia social amparada nesta tradição teórica e prática – e que anima o ecossocialismo – deve fazer frente a perspectivas que não só são anti-humanistas da ecologia, como também são fomentadoras da lógica de predação capitalista, seja pela explícita adesão às perspectivas desta lógica sistêmica, seja pela incapacidade de buscar uma apreensão de totalidade, deixando de enxergar tudo que se coloca a mais de um palmo adiante de seus narizes.
11. Não se está aqui, pois, a hierarquizar uma dimensão de proteção em detrimento de outra – como é o que fazem os defensores do PL, mandando às favas os carroceiros –, mas sim se trata de reconhecer a importância também dos carroceiros no cuidado desses animais, na continuidade de suas existências dignas, em condições de comum auxílio na reprodução de suas condições de vida. Certamente, mais do que um gestor estatal pertencente a uma força reacionária e privatista, os carroceiros são os mais indicados e intuitivamente reconhecidos “protetores” destes animais usados para tração.
12. Do agir dos representantes desta “ecologia” que sai em defesa da criminalização de carroceiros despontam diversas contradições, que enunciamos exemplificativamente:
a) Nenhuma palavra é dita quanto à destinação dos animais a Centros de Controle de Zoonoses, que historicamente tiveram papel de eliminação de animais domésticos e que mais do que qualquer outra coisa reafirmam uma tônica especista que sinaliza quais animais devem ser “protegidos”, quais devem ser eliminados;
b) Não há qualquer garantia dos bons préstimos do Centro de Controle de Zoonoses municipal, ou meios de viabilizar as “adoções” de eventuais animais apreendidos em tais condições;
c) Nem mesmo há garantias de que o Centro de Controle de Zoonoses seguirá público nos próximos dez anos,o que torna ainda mais infactível o projeto de lei;
d) Espanta o conjunto de “protetores” de cavalos, burros e mulas não se colocarem contra uma microchipagem dos animais – que lhes traria não só a dor da incisão como também uma ingerência dura na sua própria corporalidade –, que tem única intenção promover um controle estatal da existência destes animais em lógica própria de despossessão dos carroceiros;
e) Nem esboço de movimentação se percebe por parte dos defensores do banimento do uso de carroças com tração animal na busca da proibição da entrega de produtos adquiridos por aplicativos por ciclistas, com imediata aquisição de motocicletas a estes trabalhadores que na acidentada topografia de Belo Horizonte passam os dias a pedalar – revelando uma preocupação que é de fato anti-humanista, e não iguala em preocupações a qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras;
f) Quanto menos no sentido de que cavalos e cães deixem de ser utilizados pelas forças de repressão policiais pelo Governo do Estado de Minas Gerais;
g) Mais absurdo, de um lado almejam a proteção ambiental pela salvaguarda de animais utilizados para carga, mas de outro retroalimentam o colapso ecológico global – que coloca em risco todas as formas de vida – ao fomentam veículos automotores à combustão como saída para tal impasse.
12. Afinal, a matéria se resolveria como simples questão de exercício da vontade? Que o carroceiro poderia escolher, e o cavalo não? Hayek e Mises bateriam palmas para estes argumentos!
13. Tudo isso desemboca em uma ainda mais grave circunstância que é a da potencial criminalização dos carroceiros, que resulta da proibição prevista no referido projeto de lei. Pode uma positivista e mesquinha leitura, que busca ser jurídica mas não é nada mais do que legalista, dizer que os carroceiros não serão criminalizados. Afinal a ilegalidade que passarão a praticar caso sigam a usar carroças com tração animal é meramente administrativa. Acontece que a aplicação de uma multa, sobretudo a um conjunto de trabalhadores profundamente precarizados e pauperizados, por certo importaria na interdição do acesso aos seus bens de vida, fato que na mais medíocre das leituras liberais importaria na inibição de suas liberdades, mas que preferimos tomar como uma forma deliberada de atentar diretamente contra a existência destes mesmos trabalhadores.
14. No mais, não caiamos no discurso fácil – e tão caro à pós-modernidade – do apego à pureza das tradições, aos costumes, e da absolutização fragmentária do lugar no mundo dos carroceiros como meio de defesa do veto. Esse argumento não nos serve, nem pode servir. Não se trata simplesmente da defesa de um modo de vida – que pode se transformar e efetivamente se dinamiza –, ou da voz dos carroceiros – que por óbvio deve ser escutada –, mas sim expressão de uma posição política e de um saber situados, que gozam de um lugar específico no mundo, lugar esse coletiva e socialmente referenciado pelos interesses de explorados e oprimidos.
15. Trata-se de uma defesa de posição, que reconhece, uma vez mais mencionando, os carroceiros como melhores “protetores” de seus animais, a indispensabilidade da vida comum entre equinos e seus donos na busca de seus meios de vida e a indispensabilidade de, de modo coerente, reclamar uma existência harmônica e menos pautada por ingerências e conflitos entre seres humanos e as demais formas de vida, sem deixar ninguém pra trás.
16. Um dia ainda chegará que nada, nenhuma coisa ou forma de vida será tratada como propriedade, que nenhuma exploração e opressão se dará. Porquanto esse dia não chega – e nós o faremos, tenham certeza! -, mediações devem ser criadas e o lugar oportuno para tanto é na vida política – institucional ou não.
17. Certamente movidas por essas perspectivas, louvável foi e é a posição da bancada do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL na CMBH quanto ao particular, colocando-se contra na votação de dezembro passado – com votos de Bella Gonçalves e Cida Falabella – e tendo o atual endosso da posição pela nova parlamentar Iza Lourença à necessidade de se vetar o PL.
18. Tomar posicionamento pela ilegalidade, e no frigir dos ovos, pela criminalização, dos carroceiros pode ser tudo – pet friendly, protetor, ecocapitalista, neoliberal –, menos ecossocialista.
Veta Kalil!
A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!
20 de janeiro de 2021, 48o do assassinato de Amilcar Cabral.
1Qual a surpresa que um dos entusiastas do projeto tenha sido Wesley da Autoescola (PROS)!
Carla Benitez é professora de Criminologia e Direito Processual Penal na Universidade Federal de Jataí. Gustavo Seferian é professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais. São militantes da Insurgência em Minas Gerais.
Publicado originalmente no Blog Aos que Virão, em 20 de janeiro de 2020.