[No Brasil, este artigo foi publicado na revista Margem Esquerda e no livro Centelhas: marxismo e revolução no século XXI (São Paulo: Boitempo, 2017). É o único texto escrito conjuntamente pelos dois amigos, que partilhavam da mesma postura de rebeldia e radicalidade que os delimitam perante as duas correntes dominantes do pensamento socialista: uma centralizadora, estatizante, anticapitalista, e a outra mais socialista, reformadora, democrática. Embora trate de uma grande figura do movimento revolucionário francês, contêm uma sistematização dos grandes temas da visão política dos dois marxistas - aquelas que constituem a "corrente quente" do pensamento revolucionário.]
Na história do socialismo francês há uma corrente subterrânea, herege, marginalizada e reprimida que constitui uma sensibilidade oculta entre as tendências prevalecentes na esquerda do fim do século XIX até hoje – tendências estas representadas pelas duplas rivais e complementares Jaurès e Guesde, Blum e Cachin, Mollet e Thorez, Mitterrand e Marchais. Caso se considerasse uma história do socialismo sob a ótica do corte entre a “primeira” e a “segunda” esquerda – uma centralizadora, estatizante, anticapitalista, e a outra mais socialista, reformadora, democrática – tratar-se-ia então de uma “terceira” esquerda muito mais radical, que ficou, durante muito tempo, fora do jogo político, parlamentar e ministerial.
Não se trata de um grupo ou uma tendência organizada; menos ainda de um partido: no máximo de uma constelação intelectual e política, na qual as estrelas mais visíveis são Auguste Blanqui (1805-1881), Georges Sorel (1847-1922), Charles Péguy (1873-1914) e Bernard Lazare (1865-1903). Tentando redescobrir essa “tradição omitida” do socialismo francês, muito bem escamoteada tanto pelo silêncio de alguns quanto pelas tentativas de “recuperação” de outros – por exemplo, aquela (que não se realizou) da “segunda” esquerda de se apropriar de Sorel –, não temos intenção alguma de propor uma nova ortodoxia no lugar daquelas já existentes. Isso seria, além do mais, impossível, uma vez que esses pensadores apresentam entre eles a mesma proporção de diferenças e de afinidades.
Não esquecemos também as sérias limitações que têm, cada qual à sua maneira, nossos quatro autores: a tentação putschista de Blanqui, a tentação nacionalista de Péguy e de Bernard Lazare, o curto porém intenso flerte de Sorel com a Ação Francesa. Essas ambigüidades esclarecem, sem legitimar, as tentativas de possessão do fascismo sobre Sorel ou do pétainismo sobre Péguy – ao preço de uma formidável falsificação de seu pensamento.
Para evitar qualquer mal-entendido, esclarecemos também que não se trata de apresentar essa constelação como uma alternativa a Marx. Estamos convencidos – contra a última moda do “prêt-à-penser”, que pretende reduzir o autor de O capital a um cachorro morto e enterrado sob os escombros do Muro de Berlim – de que o marxismo continua sendo (para retomar a célebre expressão de Sartre) “o horizonte insuperável de nossa época”: as pretensões de “ultrapassá-lo” – ou de bricolar um “pós-marxismo” improvável – acabam sempre por voltar (aquém, e não além de Marx) ao bom e velho Adam Smith (e a sua mão invisível e não menos criminal), a Locke (e a seu contrato de ingênuos) ou a Bentham (e a seu senso de utilidade, evidentemente).
Dessa maneira, é como marxistas críticos que relemos os “socialistas dissidentes”, convencidos de que eles podem contribuir para enriquecer o marxismo e para desembaraçá-lo de certo número de escórias. Apesar de sua evidente diversidade, heterogeneidade e particularidade, acreditamos que os quatro autores citados compartilham, desigualmente, algumas características que permitem considerá-los um conjunto:
• A rejeição do positivismo, do cientificismo e do determinismo mecânico.
• A crítica da ideologia do “progresso”, de uma filosofia evolucionista da história e de sua temporalidade linear.
• A percepção aguda dos danos provocados pela “modernidade”.
• A oposição irreconciliável ao capitalismo, considerado intrinsecamente injusto.
• Uma sensibilidade rebelde que conduz à rejeição do reformismo, do cretinismo parlamentar e dos arranjos da política comum.
• Uma tendência antiautoritária e antiestatal.
• Um estilo “profético”, no sentido bíblico do termo, que procede por meio de previsões condicionais e apelos à ação a fim de evitar o perigo da catástrofe.
• Uma visão “mística” e intransigente – profana e laica – da política, como ação inspirada pela fé, pela paixão, pela moral – em oposição ao horizonte mesquinho e restrito da política cotidiana.
• Uma concepção “aberta”, não linear, não cumulativa dos eventos, deixando lugar a alternativas, bifurcações e rupturas.
Esse conjunto de mandamentos completo não é encontrado necessariamente em cada um de nossos autores: um ou outro aspecto ocupa lugar central em um e é ausente em outro. Eles compartilham menos da maioria desses elementos, ligados entre eles por sutis relações de “afinidades eletivas”. É o que dá a seus escritos essa qualidade, esse estilo vigoroso de pensamento, esse tom que contrasta com a maioria de seus contemporâneos. Essa constelação socialista desconhecida parece trazer uma contribuição única e preciosa – apesar de todas essas ambivalências e contradições –, reprimida na história da esquerda francesa, tal qual foi formatada por suas correntes dominantes sob a influência preponderante de um positivismo republicano .
Auguste Blanqui, comunista profético e anarquista regular
As críticas políticas comumente dirigidas a Blanqui são suficientemente bem conhecidas, sendo supérfluo repeti-las: putschismo, elitismo revolucionário, germanofobia etc. Entretanto, sua imagem não cessa de nos obcecar: encarna não somente a vítima de todas as reações – orleanistas, bonapartistas, versalheses e republicanos da ordem se revezam para mantê-lo isolado –, mas também ressoa bem além de seu século a mensagem de sua “voz impiedosa” (Walter Benjamin). Se fosse preciso resumir a política de Blanqui, poderia ser dito que se trata, antes de tudo, da forma mais conseqüente de um voluntarismo revolucionário, fonte ao mesmo tempo de sua força e de sua fraqueza, de sua grandeza e de seus limites. Ao contrário dos saint-simonianos e, sobretudo, dos positivistas – esses miseráveis que não se distinguem a não ser por “seu respeito à força e seu cuidado de fugir ao contato dos vencidos”, que tendem sistematicamente a assimilar a sociedade à natureza –, Blanqui não acreditava nas pretendidas “leis” da política. A palavra “lei”, para ele, apenas tinha sentido em relação à natureza, sendo o que se nomeia “lei”, ou regra imutável, incompatível com a razão e a vontade. Lá, onde o homem age, não há lugar para a “lei” . Se esse voluntarismo às vezes conduziu Blanqui ao fracasso – os “levantes armados” de 1839 e 1870 são o melhor exemplo –, também não o salvou do lodo viscoso do determinismo “científico”.
Essa fé na razão e na vontade é, sem dúvida, uma herança da filosofia iluminista na qual penetrou todo o seu pensamento. O grito “Luz! Luz!” retorna seguidamente às páginas de La critique sociale, em relação estreita com uma parte da ilusão iluminista que caracteriza os movimentos socialistas da época, repetida sem cessar: o comunismo será “o resultado infalível da instrução universalizada”. Será suficiente expulsar das escolas “a Armada Negra” (a Igreja) e generalizar a instrução para que a luz advenha e, com ela, necessariamente, a comunidade . Entretanto, Blanqui se distingue radicalmente da única herança dos iluministas por sua crítica mordaz às ideologias do progresso. Algumas de suas formulações a esse respeito são de surpreendente acuidade. Elas sem dúvida atraíram a atenção e suscitaram o interesse de Walter Benjamin (1892-1940), que as retomaria mais tarde quase palavra por palavra .
Blanqui não subestima de forma alguma os progressos da ciência e da indústria. Mas também não é menos convencido de que, na sociedade atual, todas as conquistas científicas e técnicas “se tornam uma arma terrível nas mãos do capital contra o trabalho e o pensamento” . Contra a natureza também, como veremos mais adiante. De forma geral, Blanqui não concebe o passado como uma acumulação gradual e linear de luzes ou liberdades: não se pode esquecer, diz ele, “a interminável série de calamidades que marca a história do gênero humano”. Rejeitando o historicismo conformista, positivista e limitado, que sempre legitima os vitoriosos em nome do “progresso”, condena essa “mistura de cinismo e de hipocrisia”, segundo a qual as vítimas do passado são “folhas mortas” que se “desprezam”. Para esses ideólogos, a
história se esboça rapidamente, a sangre-frio, com montes de cadáveres e de ruínas. Nenhum matadouro faz pestanejar essas testas impassíveis. O massacre de um povo, evolução da humanidade. A invasão dos bárbaros? Infusão de sangue jovem e novo nas velhas veias do Império Romano. [...] Quanto às populações e às cidades que o flagelo pôs-se sobre sua passagem [...] necessidade [...] marcha fatal do progresso.
É difícil saber se Benjamin tinha em mente essa passagem de La critique sociale no momento em que descrevia, na sua Tese IX “Sobre o conceito de história”, os frutos do progresso como um amontoado de ruínas catastróficas que sobe ao céu, embora a afinidade com as imagens de Blanqui seja evidente.
O processo histórico não é, para Blanqui, o fundador da Sociedade das Estações, uma evolução predeterminada, mas um movimento aberto, que se reveste, em cada momento crítico, na forma de uma decisão, de uma bifurcação nos caminhos. Segundo uma bela imagem de seu biógrafo Gustave Geffroy, “Blanqui colocava em uma encruzilhada de Revolução a visível e atraente bandeira de sua incerteza” . A história humana pode, então, ao mesmo tempo, conduzir tanto à emancipação quanto à catástrofe. “A humanidade nunca está estacionada. Ela avança ou recua. Sua marcha progressiva a conduz à igualdade. Sua marcha retrógrada atinge, por todos os graus do privilégio, até a escravidão pessoal, última palavra do direito de propriedade. Antes de retornar a esse ponto, é evidente, a civilização européia estaria em perigo. Mas por qual cataclismo?” Já é, meio século antes, a idéia da alternativa “socialismo ou barbárie” enunciada por Rosa Luxemburgo. Em uma conversa de 1862 com Théophile Silvestre, Blanqui insistia novamente sobre sua recusa de toda concepção linear do tempo histórico:
Não sou daqueles que afirmam que o progresso caminhe por si mesmo, que a humanidade não possa recuar. [...] Não, não há fatalidade, senão a história da humanidade, que se escreve hora por hora, seria toda escrita antes.
É por isso que Blanqui se opunha categoricamente à “teoria sinistra do progresso apesar de tudo, da saúde contínua”, pregada pelos positivistas, esses “fatalistas da história”, esses “adoradores do fato consumado”. O positivismo é para ele a história contada do ponto de vista dos opressores:
Todas as atrocidades do vitorioso, a longa série de seus atentados são friamente transformados em evolução regular, inelutável, como aquela da natureza. [...] Mas a engrenagem das coisas humanas não é inevitável como aquela do universo. É modificável a cada minuto.
Para Benjamin, a grandeza de Blanqui é que ele não acreditava no progresso, mas na decisão de liquidar com a injustiça presente. Ele era, de todos os revolucionários, o mais determinado a “arrancar a tempo a humanidade da catástrofe que a ameaça permanentemente” .
É exatamente o que chamamos “seu papel profético” – no sentido do Antigo Testamento, definido anteriormente. É durante o ano de 1848 que o profetismo se manifesta de forma extraordinária. Desde o mês de maio – algumas semanas antes dos dias sangrentos de junho – suspeitava “dos sintomas precursores da catástrofe” e insistia sobre a intenção das forças da reação de executar, graças às tropas de linha, “uma Noite de São Bartolomeu dos trabalhadores parisienses” . Preso pouco depois, não pôde participar dos combates desesperados de junho – um dos eventos fundadores da sociedade burguesa moderna. Porém, sua lucidez não foi esquecida, principalmente por Marx, em Les luttes de classes en France: “O proletariado se agrupa cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo pelo qual a burguesia inventou o nome de Blanqui. Esse socialismo é a declaração permanente da Revolução” .
Encarcerado no forte de Belle-Île-en-Mer, Blanqui enviou, em 25 de fevereiro de 1851, a seus amigos exilados em Londres uma saudação que se tornaria um de seus tratados mais célebres. Traduzido por Marx e Engels, foi largamente difundido na Inglaterra e na Alemanha. Tal tratado exprime, ao mesmo tempo, uma severa crítica dos “burgueses fantasiados de tribunos revolucionários” de 1848 (Ledru-Rollin, Lamartine etc.) e uma advertência profética – condicional – para o futuro: “Desgraça para nós se, no dia do próximo triunfo popular, a indulgência do esquecimento das massas deixasse voltar ao poder um desses homens que renunciou a seu mandato!”. Quanto às doutrinas socialistas, “somente resultariam em um lamentável aborto se o povo [...] negligenciasse o único elemento prático assegurado”: a força, as armas, a organização. A palavra-chave desse documento é “se”: não se trata de prever o inevitável, mas de demonstrar um perigo e apelar para uma decisão. A saudação se conclui com estas palavras: “que o povo escolha”.
Esse texto de Blanqui teve o efeito de uma bomba nos meios de exilados franceses e provocou, como era previsível, protestos e críticas. Escrevendo de novo, o Encarcerado se justificou em uma declaração (“A propósito dos clamores contra o esclarecimento ao povo”, em abril de 1851), em que reivindicava, pela primeira vez, o título de “profeta”. Lembrando sua “precisão de previsão” em 1848, observava:
Quantas vezes, nos meios populares, bradou-se: Blanqui tinha razão! [...] Repetiu-se seguidamente: ele bem disse! E esse desengano tardio, essa expressão de remorso e de lamento era uma reabilitação, um reconhecimento dos erros cometidos. Mas eis que o profeta retoma sua palavra. É para mostrar um horizonte desconhecido, para revelar um mundo novo? Não, é para ruminar as predicações de seu clube. [...] Aos perigos que ameaçam renascer idênticos, opõe seu grito de alerta: Proletários, de prontidão!
A imagem de profeta que Blanqui faz de si mesmo é sem dúvida de inspiração bíblica, mas possui caráter completamente profano e secular. Existe, de outra parte, um modo antigo de profecia que ele recusa: a Jérémiade. A verdadeira profecia não é uma reclamação, mas um apelo à ação redentora. Eis a conclusão de sua célebre Instructions pour une prise d’armes (1868):
É a inépcia habitual de nosso tempo de se lamentar no lugar de reagir. A moda é a das lamentações de Jeremias. Jeremias tem todas as atitudes: chora, satiriza, dogmatiza, rege, explode, flagela a si mesmo entre todos os flagelos. Deixemos essa arandela da elegia aos coveiros da liberdade. O dever de um revolucionário é a luta sempre, a luta apesar de tudo, a luta até a exaustão.
Uma das profecias mais impressionantes de Blanqui escapou, até o momento, da atenção dos comentadores. Estritamente ligada à sua visão crítica do progresso e da utilização da ciência pelo capital, denuncia um novo perigo: a destruição do ambiente natural pela civilização capitalista. Segundo Blanqui, o “mundo civilizado” diz:
“Depois de mim o dilúvio” ou, se não o diz, pensa e, conseqüentemente, age. Poupam-se os tesouros acumulados pela natureza, tesouros que não são inesgotáveis e não se reproduzirão? Faz-se um odioso esbanjamento da hulha sob o pretexto de depósitos desconhecidos, reserva para o futuro. Exterminam-se as baleias, recurso poderoso que vai desaparecer, perdido para nossos descendentes. O presente devasta e destrói ao acaso, para suas necessidades ou seus caprichos.
Em um outro ponto do mesmo texto, após uma referência à extinção das populações ditas “selvagens” pela irrupção da civilização européia, afirma:
Desde cerca de quatro séculos, nossa detestável raça destrói sem piedade tudo que encontra, homens, animais, vegetais, minerais. A baleia vai se extinguir, por ignorância e por uma perseguição cega. As florestas de quinino caem uma após outra. O machado corta, ninguém replanta. Preocupa-se pouco que o futuro tenha febre.
Esse alerta feito em 1869-1870, sem equivalente no socialismo do século XIX – e raro ainda naquele do século XX, até os últimos vinte anos! –, não perdeu nada de sua atualidade mesmo 136 anos depois. Seria suficiente substituir a hulha pelo petróleo e o machado pelo trator, para encontrar uma descrição precisa de algumas catástrofes ecológicas que nos espreitam no começo do século XXI. Blanqui se enganou, sem dúvida, em relação aos prazos – falha partilhada por muitos espíritos proféticos! –, mas previu, muito tempo antes, a inquietante ameaça.
Como todo profeta revolucionário, Blanqui tem uma visão “mística” (no sentido péguista da palavra) da política, como ação inspirada por uma fé, uma ética e uma paixão. Essa fé revolucionária se opõe da maneira mais radical ao egoísmo mesquinho e calculista do clericalismo burguês e de sua (des)razão de Estado. Se a religião continua sua inimiga mortal, o revolucionário respeita a fé sincera, qual seja sua forma e seu conteúdo, na medida em que se distingue da adoração do bezerro de ouro:
O povo, quer na sua ignorância – inflamado pelo fanatismo da religião – quer mais esclarecido – deixando-se levar pelo entusiasmo da liberdade –, é sempre grande e generoso: não obedece aos vis interesses do dinheiro, mas às mais nobres paixões da alma, às inspirações de uma moralidade elevada.
Em uma carta de 1852 a seu amigo Maillard, Blanqui não hesita em falar de “fé” – liberada de qualquer implicação religiosa – para explicar o significado do socialismo para as classes oprimidas: a idéia socialista, apesar da diversidade e das contradições de suas múltiplas doutrinas,
apoderou-se do espírito das massas, tornou-se sua fé, sua esperança, seu estandarte. O socialismo é a faísca elétrica que atravessa e sacode as populações. Elas se agitam, se inflamam ao menor sopro quente dessas doutrinas [...], dessas idéias poderosas que têm o privilégio de apaixonar o povo e de o jogar na tempestade. Não se enganem, o socialismo é a Revolução. É somente isso. Suprimindo-se o socialismo, a chama popular se apaga, o silêncio e a escuridão se fazem por toda a Europa.
Trata-se de uma visão idealista da história, que negaria o papel dos interesses materiais na ação dos explorados? Longe de opor-se ao materialismo e à exigência do bem-estar material, essa “religião” revolucionária – o termo é de Blanqui, mas concebido em um sentido absolutamente ateu e profano – é sua expressão consciente:
Mazzini discursa com furor contra o materialismo das doutrinas socialistas, contra a preconização dos desejos, o apelo aos interesses egoístas. [...] O que é a Revolução senão a melhoria das condições das massas? E que tolice esses ataques contra a doutrina dos interesses! Os interesses de um indivíduo não são nada, mas os interesses de todo um povo se elevam à altura de um príncipe; aqueles pertencentes a toda a humanidade tornam-se uma religião.
Em outras palavras, a “mística” dos profetas socialistas não exclui uma dialética materialista.
A dimensão ética do socialismo, como combate contra a injustiça, é também capital aos olhos de Blanqui. Uma de suas principais críticas contra o positivismo refere-se à ausência de distância crítica/moral diante dos fatos:
O positivismo exclui a idéia de justiça. Somente admite a lei do progresso (ainda assim) contínuo, a fatalidade. Cada coisa é excelente ao seu tempo porque ocupa um lugar (marca uma escala) na série dos aperfeiçoamentos (a filiação do progresso). Tudo é sempre melhor. Nenhum critério para apreciar o bom ou o mau.
Entretanto, Blanqui tem a fama de ser um pensador autoritário. Com efeito, seus projetos de “ditadura revolucionária” ou de “ditadura parisiense” (“durante dez anos”), encarregados de esclarecer pedagogicamente um povo ainda mergulhado na obscuridade diante da “difusão geral dos Iluministas” – tentativa típica dos enciclopedistas do século XVIII e de seus discípulos socialistas do século XIX –, são preocupantes. Apesar disso, no mesmo texto, condena também toda tentativa autoritária de estabelecer um comunismo de cima para baixo: “longe de se impor por decreto, o comunismo deve esperar sua chegada das livres resoluções do país” .
De fato encontra-se, no coração dos escritos de Blanqui, um equilíbrio instável entre o iluminismo autoritário e uma profunda sensibilidade libertária. Essa última se exprime, por exemplo, em seu elogio à diversidade e ao pluralismo no seio do movimento socialista:
Proudhonianos e comunistas são igualmente ridículos em suas diatribes recíprocas e na incompreensão da utilidade imensa da diversidade das doutrinas. Cada nuança, cada escola tem sua missão a cumprir, sua parte a jogar no grande drama revolucionário, e se essa multiplicidade dos sistemas lhes parecia funesto, lhes desconheceriam a mais irrecusável das verdades: “A luz somente brilha da discussão”.
Outro aspecto estarrecedor é sua atitude em relação ao inimigo: quanto mais Blanqui prega a guerra das classes, denuncia passionalmente os exploradores e clama a vingança popular, mais tem repulsa pelo terror, pela guilhotina e pelos pelotões de execução. O pior castigo que propõe para os contra-revolucionários, notadamente os agentes da Igreja, é a expulsão para o exterior da França. Desse ponto de vista, está mais próximo da democracia ateniense da Antiguidade que do jacobinismo de 1794 (do qual é crítico feroz). Quanto aos capitalistas – “a raça dos vampiros” –, a instrução integral do povo lhes tornará fracos e eles acabarão por “se resignar ao novo meio”. Está fora de cogitação utilizar contra eles a guilhotina: “Que não se engane, a fraternidade é a impossibilidade de matar seu irmão” .
Blanqui não é, entretanto, um utópico: recusa-se a propor planos para o futuro e considera os utópicos doutrinários “fanáticos amantes da clausura”, “executando com emulação edifícios sociais para aprisionar a posteridade”. Convencido de que é preciso deixar às gerações futuras a liberdade de escolher seu caminho, apenas atribui à Revolução o papel de aplainar as dificuldades, abrindo assim “as estradas, ou de preferência as vias múltiplas, que conduzem em direção à nova ordem”. Sobre essa última, limita-se a enunciar os princípios mais gerais do comunismo: a instrução universal, a igualdade, a associação (e não a partilha que reproduz a propriedade privada). Concebe esse futuro comunista com um espírito libertário, como uma sociedade de seres humanos “ariscos como cavalos selvagens”, onde “somente alguma coisa de execrável e de execrado que se chama governo poderia mostrar seu nariz”, uma comunidade de indivíduos livres que não admitirão “uma sombra de autoridade, um átomo de constrangimento”. De forma ainda mais explícita, proclama em um manuscrito (inédito até sua morte) de novembro de 1848: “A anarquia regular é o futuro da humanidade. [...] O governo por excelência, fim último das sociedades, é a ausência de governo” . Não é por acaso que, meio século mais tarde, Walter Benjamin se inspiraria em Blanqui para insuflar um novo espírito revolucionário em um marxismo reduzido, por seus epígonos, a um miserável boneco autômato!
A estratégia de Blanqui: contra a ditadura do fato consumado, o capítulo das bifurcações continua aberto
Figura de transição entre o babovismo republicano, o carbonarismo conspirador e o movimento socialista moderno, Auguste Blanqui ilustra, desde os anos 1830, a conscientização dos limites do republicanismo. Algumas de suas proposições parecem anunciar a mudança de tom do próprio Marx, do humanismo liberal ao socialismo da luta de classe. Mais impiedosamente do que Marx, rejeita “a burlesca utopia” dos fourieristas que faziam corte a Luís Filipe, assim como o clericalismo positivista de Auguste Comte. Entrevê o transcrescimento da emancipação política em emancipação social e humana. Nomeia a força propulsora – o proletariado –, mesmo se a palavra precede ainda, em grande medida, o termo que surgirá a partir da grande indústria. Blanqui permanece, entretanto, um revolucionário da primeira metade do século, das revoluções de 1830 e 1848, filiado desde os dezenove anos à Carbonária francesa. Sua crítica ao jacobinismo parece original para a época, sem dúvida em razão de sua herança babovista, mas também porque esclarece os limites de certo republicanismo burguês. Assim, critica duramente Robespierre por ter, com a cabeça de Cloots, “sacrificado os temas rebeldes refugiados na Revolução Francesa” e com a de Chaumette dado penhores aos padres. Atrás do incorruptível, já vê brotar o Bonaparte, “um Napoleão prematuro”; atrás do ser supremo, a beatice republicana (e o fetichismo ainda teológico do Estado) .
Então se esboçou uma nova revolução, que ainda não tinha recebido seu nome. Uma revolução ainda espectral, que Michelet batizou de romântica em sua Histoire de la Révolution Française, percebendo nos Enragés de 1893 “o germe obscuro de uma revolução desconhecida”: “Os republicanos clássicos tinham atrás deles um espectro que caminhava rápido e ganhara velocidade: o republicanismo romântico de cem cabeças, de mil escolas, que nós chamamos hoje de socialismo”. Blanqui é, de certo modo, seu herdeiro, que procura ultrapassar a idéia de uma República sem frases, de uma república simplesmente, para melhor determinar o conteúdo social. Assim escreve em 1848:
A República seria uma mentira se fosse somente a substituição de uma forma de governo por outra. Não é suficiente mudar as palavras, é preciso mudar as coisas. A República é a emancipação dos operários, é o fim do regime de exploração, é a chegada de uma nova ordem que libertará o trabalho da tirania do capital.
Doravante, a República será social ou não será. Esse aprofundamento social da revolução política propaga a crítica de Marx (em seu texto de 1844 A questão judáica) da exclusiva “emancipação política” em nome da “emancipação humana” e da alienação religiosa transformada em alienação social. Blanqui reteve dos cursos de Jean-Baptiste Say uma crítica ainda mal conceitualizada do capital. Assim como, para Marx, o cristianismo (notadamente em sua forma protestante) dissocia o privado e o público para deixar que se exprima livremente o interesse egoísta, Blanqui vê no protestantismo vitorioso “nosso avesso absoluto” como “religião do egoísmo e da individualidade”; dito de outra forma, como espírito do capitalismo .
Que força será capaz de levar a nova Revolução para além dos limites esperados pela Revolução Francesa? Já em sua alocução de 2 de fevereiro de 1832, diante da Sociedade dos Amigos do Povo, Blanqui apresenta uma análise lúcida do antagonismo de classes e de sua dinâmica. Depois da Revolução de Julho,
a classe alta é aniquilada, a classe média, que se escondeu durante o combate e que o desaprovou, mostrando o mesmo tanto de habilidade quanto tinha de prudência, escamoteou o fruto da vitória obtida apesar dela. Mas [...] o povo que fez tudo, fica a zero como antes: embora tenha irrompido brutalmente na cena política, invadindo-a, foi caçado quase que imediatamente, sem chance de dar seu testemunho, prosseguindo em sua renúncia. Doravante, é entre a classe média e o povo que vai se praticar uma guerra obstinada. Não é mais entre as classes altas e os burgueses – estes terão mesmo necessidade de chamar para ajudá-los seus antigos inimigos para melhor resistir. De fato, a burguesia não dissimulou durante muito tempo sua raiva contra o povo.
Em sua carta a Maillard de 6 de junho de 1852, exprime novamente, à luz dos eventos de 1848: “Você me disse: eu não sou nem burguês nem proletário. Guarde as palavras sem definição, é o instrumento favorito dos intrigantes”. Sabe-se até que ponto o “nem isso nem aquilo” é um tique característico da ideologia burguesa do justo meio. Mas o que significa democrata senão uma máscara ecumênica para dissimular a luta das classes? “Essa mistificação sempre renovada data de 1789. A classe média lança o povo contra a nobreza e os clérigos; depois joga o povo fora e toma o seu lugar. Logo que o antigo regime é abatido pelo esforço comum, a luta começa entre os dois aliados vencedores, a Burguesia e o Proletariado”. Em Le Peuple, Michelet constatava desde 1846 que meio século tinha sido suficiente para a burguesia derrubar a máscara de sua crueldade de classe. Depois de 1848, a fortiori, tornou-se necessário chamar um gato de gato. Entretanto, Blanqui tem da noção de classe social uma compreensão mais ampla e mais aberta do que o obreirismo de um Tolain (configurando uma forte tendência do movimento operário francês), que somente quer admitir na I Internacional e no movimento cooperativo trabalhadores sociologicamente certificados. Blanqui, ao contrário, é favorável a acolher todos “os desclassificados” (diríamos os excluídos e os espoliados), que “são hoje o fermento secreto que incha a massa na surdina e a impede de cair no marasmo. Amanhã, serão a reserva da Revolução”.
Clarificar os fundamentos do antagonismo de classe tem, todavia, uma conseqüência política maior: a delimitação do movimento operário nascente e a afirmação de sua independência política em relação à burguesia republicana. Assim, durante a revolução de 1848, Blanqui apóia a candidatura de Raspail contra a de Ledru-Rollin: “Pela primeira vez na arena política, o proletariado se separou completamente, como partido político, do partido democrático” .
Qual política para essa revolução desconhecida que amadurecia na luta de classes? Blanqui recusa categoricamente tanto as utopias libertárias quanto o “mercado consentido” à la Bastiat*, “o mais audacioso apologista do capital”. Isso que não se chamava ainda “socialismo de mercado” só podia ser, segundo sua opinião, um pacto com o diabo, pois a opressão capitalista é fundada sobre “as sangrentas vitórias da propriedade”. Mas o próprio comunismo deve “preservar-se dos andamentos da utopia e nunca se separar da política” . Blanqui mostra um robusto senso prático do possível. Os utópicos querem “reger demais o futuro”: “Deixemos o futuro a si próprio [...]. Desviemos os olhares dessas perspectivas longínquas, que cansam por nada o olho e o pensamento, e retomemos nossa luta contra os sofismas e a escravização” . Como Marx, execra todas as formas de utopia ou de socialismo doutrinários, procurando a lógica interna do movimento real capaz de inverter a ordem estabelecida. Daí sua desconfiança em relação ao movimento cooperativo de produção, de consumo ou de crédito, e sobretudo em relação ao primeiro, que lhe parece uma armadilha, conduzindo seja ao desencorajamento em caso de fracasso, seja a uma promoção (ou cooptação) social que envolve o povo sem transformar a sociedade. Entra, nessa hostilidade às experimentações sociais de um movimento operário nascente, uma dose inegável de sectarismo associado a uma crítica pertinente das “ilusões sociais” propaladas por algumas correntes, como os proudhonianos, que se esquivam diante da questão política do poder.
Para Blanqui, ao contrário, a conquista do poder político é a chave da emancipação social. Sua maneira de pensar é, então, inversa àquela de Saint-Simon ou de Proudhon, que subordinam a revolução política à reforma social, o fim ao movimento, até dissolver esse fim no gradualismo ilusório do processo. Blanqui está convencido de que
a questão social só poderá entrar em discussão séria e prática após a solução mais enérgica e mais irrevogável da questão política. Agir de outra forma é precipitação. Já se tentou isso uma vez e a questão social foi postergada por vinte anos.
Sem dúvida, contentando-se em inverter a dialética dos fins e dos meios, do processo e do ato, opera-se uma simplificação excessiva que impede a resolução da questão crucial: como do nada tornar-se tudo? Seria vão procurar nele uma problemática da hegemonia. Mesmo se o reformismo que já se desenha com a burocratização do movimento sindical é o perigo principal, é essa insistência unilateral sobre o momento de decisão política que valeu a Blanqui, e mais ainda aos blanquistas, a reputação de putschistas, freqüente na II Internacional: criticando o próprio Marx como “blanquista”, Bernstein confirma que Blanqui tinha realmente percebido, ainda que confusamente, o que seria o mal senil do socialismo.
A contrapartida dessa fixação quase exclusiva sobre o golpe de Estado revolucionário é, em Blanqui, uma extrema e mesmo excessiva prudência e uma imprecisão evasiva sobre as transformações econômicas e sociais a executar, bem como sobre seu ritmo. É preciso ainda lembrar que as dez medidas que substituem o programa no Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels permanecem, elas também, no domínio das generalidades necessárias. Em críticas coerentes da utopia como “sentido não prático do possível”, os autores procuram se abster, tal como Blanqui, de assegurar inconsideradamente subsistência do futuro. Entretanto, na circunstância, e diferentemente dos autores do Manifesto, Blanqui aparece como um revolucionário de um tempo de transição, formado na primeira metade do século XIX, em uma época em que a crítica do capital ainda estava em construção. Assim, afirma várias vezes que o domínio econômico, “infinitamente mais complexo”, deve ser percorrido minuciosamente “com uma sonda na mão”. Essa ressalva não é sem sabedoria. É coerente com sua crítica à utopia e com sua convicção de um aprendizado necessário para a direção da economia. O pior seria pretender criar um organismo social de fantasia. A “grande barreira”, para Blanqui, é a ignorância. A prioridade (a primazia), depois da tomada do poder político é, então, a tarefa educativa que já havia obcecado os deputados da Convenção (1793-1794). Mas essa “utopia educativa” inconsciente deixa aberta uma questão maior. Qual forma de poder, enquanto se espera que o povo amadureça? Uma ditadura esclarecida? Nessas circunstâncias, Blanqui não escaparia aos impasses dos revolucionários do século XIX descritos por Garrone, à procura de uma fórmula política de transição que gira invariavelmente em torno de um poder de exceção exercido por uma elite virtuosa .
Em 1867, Blanqui define o Estado burguês como “uma delegacia dos ricos contra os pobres”. Trata-se então, como repetirá Marx à luz da Comuna de Paris, de um aparelho a destruir. Mas Blanqui mistura curiosamente imagens evolucionistas e a rapidez do golpe de Estado. As revoluções são, afirma ele, como “a liberação de uma crisálida”: “cresceram lentamente sob o invólucro rompido”. Porém, é também uma chegada brusca, um rasgo e, ainda, um momento de entusiasmo e de euforia: “um momento de triunfo e de poder, um momento à frente para tantos anos de servidão”. Mas os dias que seguem à Revolução são aqueles de uma dissipação melancólica da euforia: “Homens e coisas são os mesmos de antes. Somente a esperança e a crença mudaram de lugar”. Tudo continua por fazer. Isso era somente um início, uma abertura, um lance. A maturidade da crisálida justificava, todavia, o golpe de Estado que somente seria, em suma, um pequeno empurrão. A questão estratégica não formulada se resolve, com efeito, pela técnica: aquela que ilustra seu famoso Instructions pour une prise d’armes de 1868.
As experiências de 1830, 1839 e 1848 tinham evidenciado o perigo da “contra-revolução democrática” que espreita a revolução social: a burguesia joga conseqüentemente a legalidade institucional contra a soberania popular. No momento do processo de Bourges, em abril de 1848, Blanqui assim explica sua luta na primavera desse ano pelo relatório das eleições:
Se tivessem sido feitas eleições logo em seguida à Revolução, aconteceria que as populações iriam votar seguindo as idéias do regime deposto. Isso não era de nosso interesse; não eram os interesses da justiça, pois quando há a defesa diante de um tribunal os dois partidos têm o direito de ter respectivamente a palavra. Diante do tribunal do povo que ia julgar, seria necessário que tivéssemos a nossa vez para falar, como nossos inimigos a haviam tido, e para isso seria preciso tempo.
“Tempo!” Daí a manifestação de 17 de março para pedir ao governo provisório o adiamento das eleições. Mas como não se tratava também de reclamar um relatório indefinido, surgiu a proposição de 31 de maio, a que Blanqui não se opôs. Contentou-se em guardar o silêncio, convencido da insuficiência do prazo: teria sido preciso mais tempo, mas quanto mais? De fato escreveu, em 14 de março: “O povo não sabe: é preciso que saiba. Não é a obra de um dia, nem de um mês [...]. As eleições, caso se realizem, serão reacionárias. [...] Deixe o povo nascer para a República”. Encontra-se aqui a idéia do preâmbulo educativo que lhe é cara.
A contradição aparece, todavia, como um círculo vicioso. Para a Revolução seria preciso um povo educado; mas, para tornar essa educação possível, o povo deve começar tomando o poder. Como do nada tornar-se tudo? É o enigma obsedante das revoluções modernas. O silêncio de Blanqui no momento de fixar um prazo eleitoral final prefigura o conflito das legitimidades para atuar em quase todas as revoluções modernas, entre um poder constituinte exercido permanentemente e a instituição do poder constituído, entre sovietes e Assembléia Constituinte na Rússia, entre assembléias de comitês e Assembléia Nacional eleita em Portugal, entre a rua e o Parlamento, entre a “desordem” (ou a “baderna”) que horrorizava De Gaulle em 1968 e as formas parlamentares respeitadoras. “O pior de todos os perigos, nos momentos de crise”, advertia Blanqui em 1870, após a rendição de Sedan, “é uma assembléia deliberativa [...]. É preciso acabar com o desastroso prestígio das assembléias deliberativas” . Certamente ele não tinha a resposta. Também não tocava no fato essencial de que uma ordem legal nova não nasce na continuidade da ordem legal antiga. Nada de revolução autêntica sem ruptura, sem passagem pelo estado de exceção, sem suspensão do direito antigo, sem exercício pleno do poder constituinte.
Desde 1836 Blanqui havia declarado em um discurso, que ficou inédito por muito tempo:
Cidadãos, temos menos em vista uma mudança política do que uma refundição social. A extensão dos direitos políticos, a reforma eleitoral, o sufrágio universal, podem ser excelentes coisas, porém apenas como meios, não como objetivo; o que é nosso objetivo é a repartição igual das cargas e dos benefícios da sociedade; é o estabelecimento completo do reino da igualdade. Sem essa reorganização radical, todas as modificações de forma no governo seriam somente mentiras, todas as revoluções, somente comédias encenadas em benefício de alguns ambiciosos.
Em 1848, proclamava: a luta de 1793 “acaba de recomeçar”. Nesse intervalo, o emblema tricolor tinha sido comprometido, o tempo então tinha vindo mostrar suas intenções: passar à bandeira vermelha. A burguesia tinha usurpado o bom nome republicano e o emblema revolucionário, mas “felizmente, ela rejeitou nossa bandeira, cometeu um erro... ela continua a ser nossa. Cidadãos, a Montanha morreu! Ao socialismo, seu único herdeiro!” . A saudação enviada de Belle-Île que entusiasmava Marx e Engels se inscrevia na mesma lógica quando denunciava a responsabilidade do governo provisório e dos burgueses liberais . Entretanto, trata-se exatamente de um texto de ruptura que tira proveito do evento: “não é suficiente que os escamoteadores de fevereiro sejam repelidos para sempre da prefeitura, é preciso se precaver contra novas traições”. A reação só tinha feito seu trabalho de degolador: “O crime é dos traidores, aqueles que o povo, em confiança, tinha aceitado como guias e que o entregaram à reação”.
Essa saudação famosa merece uma longa citação:
que obstáculo ameaça a Revolução de amanhã? O obstáculo com que se deparou aquela de ontem: a deplorável popularidade de burgueses fantasiados de tribunos [...]. É o Governo Provisório que matou a Revolução, é sobre sua cabeça que deve recair a responsabilidade de todos os desastres, o sangue de muitos milhares de vítimas. A reação apenas fez seu trabalho degolando a democracia. O crime é dos traidores, aqueles que o povo, em confiança, tinha aceitado como guias e que o entregaram à reação [...]. Infelizmente para nós, se no dia do próximo triunfo popular a indulgência do esquecimento das massas deixar voltar ao poder um desses homens que prevaricaram seu mandato! Uma segunda vez, o que seria feito da Revolução! Que os trabalhadores tenham continuamente diante de seus olhos essa lista de nomes malditos, e se um único aparecesse em um governo saído da insurreição, que eles gritem todos em uníssono: Traição! [...] Traidores seriam os governos que, celebrados pelos proletários, não realizariam imediatamente: 1o O desarmamento das guardas burguesas; 2o O armamento e a organização em milícia nacional de todos os operários. Sem dúvida há várias outras medidas indispensáveis, mas sairiam naturalmente desse primeiro ato que é a garantia inicial, a única prova de segurança para o povo [...]. Porém, para os proletários que se deixam divertir por caminhadas ridículas nas ruas, por plantios de árvores de liberdade, por frases sonoras de advogados, haverá água-benta inicialmente, injúrias em seguida e, enfim, a metralhadora; a miséria sempre. Que o povo escolha!
Esse texto não é particularmente putschista (“armamento em milícia de todos os operários”), mas em outros escritos e seguidamente em sua prática Blanqui parece privilegiar a iniciativa de uma pequena vanguarda. Daí o comentário de Engels em sua introdução de 1895 às Luttes de classes en France: “O tempo dos golpes, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes encabeçando massas inconscientes, passou”. Rosa Luxemburgo igualmente criticava Lenin por seu “blanquismo” e também criticava duramente o manifesto blanquista de 1874 aos ex-combatentes da Comuna de Paris, no qual, segundo Luxemburgo, “a ação cotidiana é substituída por especulações sobre o desmoronamento que supostamente aconteceria imediatamente à revolução social”. Trotski ou Daniel Guérin juntam sua voz a esse concerto crítico do ponto de vista da auto-emancipação. É claro que Blanqui ilustra um tempo de transição, de nascimento e de aprendizagem do movimento operário. Mas seria injusto esquecer que é preciso também ligação entre duas épocas. Apesar de seus limites e suas falhas, não é por acaso ou por indulgência que ele sempre foi tratado por Marx com respeito. Thiers bem sabia, afirma Marx, que Blanqui, em liberdade, “daria uma cabeça à Comuna”. Com ele, talvez a Comuna tivesse caminhado sobre Versalhes quando ainda havia tempo, e talvez tivesse ousado apropriar-se da reserva do Banco da França. No momento de decisão, a audácia e a iniciativa são necessárias. Marx então não havia se enganado quando escreveu logo após 1848 que a burguesia tinha inventado, para o comunismo e para a declaração da revolução permanente, o nome de Blanqui. Não se poderia render maior homenagem ao Encarcerado.
Com Blanqui, é a razão estratégica das revoluções futuras que balbucia. Inabilmente, colocam-se questões para as quais ainda dá respostas técnicas e conspirativas de uma época que está terminando. Em 1830, um único impulso popular foi suficiente para derrubar “um poder terrificado pelo golpe de Estado”. Mas uma “insurreição parisiense posterior aos velhos trâmites hoje não tem nenhuma chance de sucesso”, reconhecia em 1868 o velho lutador em suas Instructions. Em 1848, o povo tinha vencido pelo “método de 1830”, mas foi abatido em junho “por falta de organização”. O exército tem, com relação ao povo, apenas duas vantagens: o fuzil de guerra e a organização. Então não seria preciso permanecer estático e “perecer pelo absurdo”, temendo as modificações haussmannianas. Seria preciso ousar tomar a iniciativa, passar à ofensiva. Daí a virulência de Blanqui contra a sociologia positivista, que é essencialmente antiestratégica. Quando “nos processos do passado diante do futuro, a história é o juiz e a sentença, quase sempre uma iniqüidade”, o “apelo continua para sempre aberto”. Pensamento de ordem e progresso em boa ordem, de progresso sem revolução, o positivismo é uma “doutrina execrável do fatalismo histórico” instituída em religião. Entretanto, “a engrenagem das coisas humanas não é inevitável como aquela do universo, é modificável a todo minuto”. A todo minuto! Cada segundo, acrescentará Benjamin, que é uma porta estreita por onde pode passar o Messias. Contra a ditadura do fato consumado, para Blanqui, somente o capítulo das bifurcações continuava aberto para a esperança. Contra “a mania do progresso” contínuo e “a volubilidade do desenvolvimento contínuo”, a erupção factual do possível no real se chamava Revolução. A política primando sobre a história apresentava as condições de uma temporalidade estratégica, e não mais mecânica, “homogênea e vazia”.