Acordo entre Vale e MG expõe favorecimento mútuo entre as elites. Empresa limpa sua imagem, deixa de pagar 19 bi aos atingidos e controla “reparação”; governador recebe recursos para investir em Rodoanel… que favorecerá mineradora.
Andréa Zhouri, Outras Palavras, 10 de fevereiro de 2021
Os desastres causados pela mineração em Minas Gerais apresentam características que os identificam como processos de grande magnitude e longa duração, compreendendo desdobramentos socioambientais complexos, em muitos casos, imprevisíveis e irreversíveis, o que torna difícil diagnósticos e soluções que sejam simultaneamente objetivos, céleres e justos.
Um aspecto menos visível dos desastres, entretanto, diz respeito ao mundo de negócios e oportunidades que eles inauguram. Talvez pelo constrangimento moral diante de imagens impactantes de destruição, morte e sofrimento, o lado business que movimenta vultosos recursos é assunto ainda pouco debatido.
Não obstante, o tema merece ser abordado neste momento em que o governo de Minas Gerais celebra um acordo com a empresa Vale, responsável pelo desastre-crime de Brumadinho, não à toa adjetivado como “bilionário” e anunciado como o “melhor acordo da América Latina”. Sob o aparente propósito da reparação e da indenização, ainda que ao Estado em primeiro lugar, o que este acordo consagra é o grande negócio Brumadinho, bom para a política e melhor para a empresa.
Elaborado de forma sigilosa, sem a participação das comissões de atingidos e suas assessorias técnicas, o acordo foi fechado em 37,68 bilhões de reais (na realidade, com um teto de 26 bilhões descontados os gastos já havidos) a partir de um total inicialmente calculado em 56 bilhões. A Vale deixa de pagar, portanto, cerca de 19 bilhões de reais no âmbito deste acordo, fazendo uma economia que se aproxima ao lucro líquido que a empresa obteve no terceiro trimestre de 2020 (15,6 bilhões de reais). Ressalte-se que as ações da empresa subiram 4,3%, no dia do anúncio do acordo, em ambiente de intensa movimentação dos investidores. A Vale consegue, assim, passar uma imagem de “quitação de compromissos” gerados com o desastre, reforçando a confiabilidade perante o mercado. Além do pagamento das medidas de reparação e indenização ao Estado dentro dos valores por ela almejados, a mineradora conseguiu ainda manter o controle sobre o processo de reparação, ao ficar também encarregada da execução de alguns programas, entre outros benefícios.
Para o governo de Minas, o desastre representa influxo para o caixa falido do Estado e uma oportunidade política para realizar obras de infraestrutura, que são a forma preferencial de realização da política na prática. Destaca-se aqui a construção do Rodoanel e de hospitais, além de melhorias a serem feitas no metrô da capital mineira. Como de costume, a ausência de transparência e de controle social sobre os gastos públicos permitirá a reprodução do modus operandi político por meio do qual há favorecimento de setores da economia e da elite. O Rodoanel é projeto antigo, alvo de críticas por parte de ambientalistas e moradores da região sul metropolitana, tendo em vista incidir sobre duas Unidades de Conservação (Serra do Rola Moça e Serra da Calçada) e dois distritos envolvidos com o turismo histórico e ecológico (Piedade do Paraopebas e Casa Branca). É importante considerar que se trata também de projeto interessante para a Vale e outras mineradoras, em função de suas demandas para o transporte do minério extraído nessa região. Resulta, portanto, em excelente negócio para a Vale, que não precisará arcar com “gastos extras” relativos à infraestrutura para escoamento das commodities.
Menos do que preocupação do Estado para com a reparação justa dos danos e prejuízos causados às pessoas e comunidades pelo crime da Vale, o acordo da mineradora com o governo de Minas Gerais pode ser entendido como uma grande cartada política e de negócios. Embora não extinga ações indenizatórias cíveis e criminais ajuizadas contra a Vale, não restam dúvidas quanto ao efeito de sua assinatura sobre aquelas ações uma vez que, no caso das vítimas, a dianteira do Estado na tomada dos recursos para si, as coloca numa posição enfraquecida perante a gigante Vale. O acordo manifesta, assim, elementos da “necropolítica” (Achilles Mbembe) e do “necrocapitalismo” (James Tyner) ao golpear, de fato, os segmentos mais vitimados pelo desastre. Ele naturaliza a desigualdade que impera nas contendas judiciais, onde os agentes com maior volume de capital econômico, político e simbólico (Pierre Bourdieu) conseguem acesso diferenciado ao direito. O governante manifesta posição elitista ao se referir à quantia de 4,4 bilhões destinada ao programa de transferência de renda (que substituirá o pagamento de auxílio financeiro emergencial às vitimas) como uma quantia suficiente “se administrada de forma parcimoniosa”. Além desses valores serem bem inferiores à estimativa de gastos realizada pelas assessorias técnicas dos atingidos (aproximadamente 9,4 bi), o posicionamento do governador produz um efeito de suspeição quanto à idoneidade das vítimas e à eficiência das entidades envolvidas nos processos de governança do desastre (MP, assessorias técnicas). Sobretudo, desconsidera que a reparação implica no direito à retomada da vida em condições equivalentes ou melhores do que antes do desastre.
Já no contexto de Mariana, o governador Romeu Zema havia criticado o processo de reparação ali em curso por ser, em sua visão, pouco objetivo, ao não oferecer uma base padrão para a indenização às pessoas de “povoados humildes”, que poderiam, segundo seu raciocínio, obter reparação a partir de um calculo mínimo comum do tipo “arroz, feijão, bife e salada” para alimentação e “uma casa de 200 m2” para moradia (FSP, 11 de nov. 2019). Ora, na melhor das hipóteses, trata-se, como diria o filósofo Jacques Rancière, de raciocínio aritmético simples lançado como princípio de justiça distributiva, mas que desconsidera a variedade da geometria das partes representada pela diversidade das formas de ser, fazer e viver territorializadas, bem como as diferenças materiais que efetivamente existem mesmo em vilarejos rurais. Ao interceptar o caminho da reparação às vítimas em Brumadinho, o interesse político de Zema favorece o interesse financeiro da Vale e revela a faceta cruel da “necropolítica” (que delibera sobre quais vidas serão sacrificadas) associada ao “necrocapitalismo” (que define quais vidas serão mais lucrativas). Resta indagar o que motivou a legitimação desse “necronegócio” por entidades que foram criadas constitucionalmente para defender a sociedade das violências perpetradas pelo Estado e pelo mercado. A assinatura do Ministério Público neste big business Brumadinho só aumenta as incertezas, tanto sobre a justa reparação às vítimas do desastre-crime, quanto sobre a sua condição de instituição autônoma.