Miquel Echarri, El País Brasil, 22 de julho de 2021
A corrida espacial não é mais a mesma. Os veteranos do primeiro duelo tecnológico por explorar e conquistar o universo ficariam perplexos de ver como agora que colhe o bastão são bilionários como Jeff Bezos (que nesta terça-feira decolou, chegou até o espaço e voltou, tudo em 11 minutos), Richard Branson (que fez algo parecido em 11 de julho) e Elon Musk (que se prepara para tal). O que foi do romantismo em tons sépia que hoje atribuímos, sacando da memória seletiva, aos astronautas e cosmonautas da Guerra Fria?
A primeira corrida espacial foi uma questão espinhosa entre duas superpotências, União Soviética e Estados Unidos, que se desafiaram mutuamente e não deram trégua entre 1951 e 1969. Depois de uma fase em que os dois lados foram pondo em órbita insetos, roedores e mamíferos (a cadela Laika, os macacos Sam e Baker, uma longa série anônima de ratos e moscas-da-fruta), os soviéticos se impuseram com contundência no primeiro grande round, levando ao espaço o primeiro astronauta humano, Yuri Gagarin, em 12 de abril de 1961.
Entretanto, em 22 de julho de 1969 os Estados Unidos obtiveram a vitória com a chegada à Lua da missão Apollo 11, naquela que é sem dúvida uma das imagens mais célebres do século XX. Esse feito formidável e o posterior ocaso de uma União Soviética corroída por seus problemas internos resolveram, basicamente, a corrida espacial tal como a conhecíamos. Nas últimas décadas, ocorreram avanços muito significativos, mas não mais um fascinante duelo entre dois poderes globais e duas visões de mundo.
Agora, sem dúvida, é outra coisa. A jornalista norte-americana Jackie Wattles a descreve como “uma desconcertante feira das vaidades”, confrontando três dos homens mais ricos do mundo. Em um artigo na seção de negócios da CNN, Wattles se perguntava dias atrás, de maneira um tanto retórica, quem está ganhando a corrida espacial dos bilionários. E sua resposta é que depende do que entendemos como vitória. Os golpes de efeito recentes de Bezos e Branson ou a sólida liderança tecnológica e financeira da qual Musk pode se gabar atualmente?
Depressa, depre
Jeff Bezos acaba de recuperar a iniciativa em termos midiáticos com seu divulgadíssimo voo suborbital deste 20 de julho. Bezos prega com o exemplo e embarca ele mesmo na sua própria tecnologia para se transformar em astronauta privado, o que atualmente chamamos de turista espacial. O lema da sua companhia Blue Origin, fundada em 2005, sempre foi a frase latina “gradatim ferociter” (“gradualmente, ferozmente”). E sua mascote é uma tartaruga, o animal que nunca tem pressa, mas acaba chegando a qualquer lugar. Bezos não se propôs a correr, e sim a avançar com firmeza, mas agora acaba de acelerar bruscamente.
Mais pragmático e menos mitômano que seus dois rivais, ele começou centrando seus esforços em desenvolver uma tecnologia de voo espacial que fosse barata e sustentável, com o objetivo de criar a médio prazo uma base lunar e o que ele mesmo batizou de “uma rede de urbanizações espaciais”, germe das futuras colônias para onde cedo ou tarde nos mudaremos, quando nosso planeta já não der mais conta. Entretanto, depois de anos avançando com solidez, mas a passo de tartaruga, o fundador da Amazon optou por rasgar a fantasia. Conscientizou-se de que participa de uma corrida e que deseja ganhá-la. Por isso se lançou à aventura de cruzar várias camadas da atmosfera na companhia de outro passageiro, “uma das figuras mais reconhecidas do mundo dos negócios”, cuja identidade não foi revelada, mas que pagou 24 milhões de dólares para embarcar no New Shepard, o foguete de Bezos, antes de cancelar a viagem na última hora por “problemas de agenda”.
A volta ao universo em 80 d
ias
Elon Musk também tem argumentos para afirmar que é ele quem está na liderança. Afinal de contas, sua companhia, a SpaceX, fundada em 2002, é a que coopera de maneira mais estreita com a NASA e o Pentágono. Também a que transformou as viagens (não tripuladas) pela órbita do nosso planeta em simples rotina. Musk diz se sentir um pioneiro da exploração do universo e um futuro colono, não um promotor turístico como Branson e Bezos. Em janeiro deste ano, um foguete da sua companhia, o Falcon 9, pôs 143 satélites em órbita de uma só vez. Na opinião de Waddles, “Musk está fazendo um investimento formidável e batendo todos os recordes de eficácia no que se refere a voos comerciais ao espaço”.
Quase se poderia dizer que ele “banalizou esse tipo de feito tecnológico, ao torná-los relativamente simples e muito frequentes”. Entretanto, ainda não deu o passo de embarcar em num dos voos da sua companhia, algo que se mostrou disposto a fazer só quando “for completamente seguro”. Sua mais célebre declaração a respeito é que pretende “morrer em Marte, mas após viver alguns anos por lá, não no momento de aterrissar”.
Muito mais resoluto se mostrou o britânico Richard Branson, terceiro na disputa desde que lançou, em 2009, sua própria companhia de turismo espacial, a Virgin Galactic. Apesar da vantagem que seus dois principais concorrentes levavam sobre ele, Branson os ultrapassou com nitidez em 11 de julho, quando se tornou o primeiro bilionário a viajar ao espaço exterior. Seu voo estava previsto para semanas depois, mas o magnata londrino, célebre desde muito jovem por sua tendência a surpreender a concorrência com sua audácia e seus golpes de efeito, acelerou os preparativos para chegar antes que Bezos ao momento histórico.
Foi uma travessia breve e comparativamente modesta, que o levou a 85 quilômetros sobre o nível do mar, justamente no limite da mesosfera. Algo bem diferente do voo suborbital de Bezos, mais ambicioso, mas ainda assim suficiente para fazer de Branson o ganhador desta etapa da corrida. Além disso, ele cumpriu o compromisso, assumido há mais de uma década, de ser também o primeiro a embarcar turistas num voo deste tipo: com ele viajou um seleto grupo de geeks ricos, milionários excêntricos e celebridades que se permitiram o luxo de contemplar o planeta Terra de uma perspectiva insólita, por quantias nunca inferiores a 200.000 dólares, ou mais de um milhão de reais.
Ashton Kutcher seria um dos participantes no segundo voo de Branson, porém optou por ficar em terra por enquanto. Apesar de ter comprado sua passagem há quase 10 anos, o ator de Iowa acabou seguindo o conselho de sua esposa, a também atriz Mila Kunis, de esperar —como Elon Musk— até que este tipo de experiência VIP se torne muito mais cotidiana e 100% segura.
Salvamos este planeta ou procuramos ou
tro?
Além dos sucessos parciais de uns e outros, a privatização da corrida espacial gerou um debate adicional que a imprensa internacional vem repercutindo nos últimos dias. Bernie Sanders abriu a torneira meses atrás, em resposta a um tuíte em que Elon Musk se comprometia a “possibilitar a vida multiplanetária e levar a luz da consciência para as estrelas”. O veterano político admitia que “as viagens espaciais continuam sendo uma ideia emocionante”, mas que “no dia de hoje, nossa prioridade deveria ser nos centrarmos nos problemas da Terra e criar um sistema de impostos progressivos para que não haja crianças que passem fome, não haja gente sem lar e todos os norte-americanos desfrutem de uma adequada assistência sanitária”.
Sanders concluía sua mensagem afirmando que “os níveis de desigualdade que os Estados Unidos enfrentam atualmente são obscenos e representam uma ameaça à nossa democracia”, no que foi interpretado como um ataque frontal a Musk, uma das grandes fortunas que com mais firmeza apoiaram as reduções de impostos promovidas por Donald Trump.
Em um artigo de opinião no site The Hill, o divulgador científico Mark Whittington entrou na polêmica pondo-se do lado de Musk, a quem descreveu como “o capitalista mais cool do planeta”, um homem com ambições tão extravagantes e extremas como fundar uma colônia em Marte e, sobretudo, com capacidade financeira, organizativa e criativa para “tornar realidade até o mais delirante de seus sonhos”. Para Whittington, Sanders por sua vez se inscreve em uma “longa e infeliz” tradição de “demagogos” de esquerda “que já tentaram boicotar em seu momento o lançamento da Apollo 11 argumentando que a corrida espacial devia ser abandonada enquanto não fossem resolvidos problemas sociais como a pobreza e o pleno reconhecimento dos direitos civis dos afro-americanos”.
Whittington acredita firmemente que “ciência e mudança social não precisam ser incompatíveis”, e que iniciativas como as da NASA décadas atrás e de Musk atualmente “geram prosperidade e um horizonte mais promissor para o conjunto de nossas sociedades —ricos, pobres, afro-americanos ou brancos”. Henry Mance, especialista em ciência do Financial Times, oferece uma perspectiva radicalmente diferente. Na sua opinião, o pior desta nova etapa da corrida espacial, comercial e privada, é que “será inútil e não interessa a praticamente ninguém”. Foi algo que comprovou, muito a seu pesar, o próprio Richard Branson, “magnífico promotor de si mesmo”, ao voltar de sua viagem espacial e observar que a repercussão da sua façanha foi “praticamente nula: a final masculina de Wimbledon e a da Eurocopa de futebol tiveram uma cobertura midiática dez vezes maior no Reino Unido”.
Que um bilionário britânico suba 85 quilômetros e volte à Terra são e salvo não é, para seus compatriotas, “um acontecimento à altura de uma disputa de pênaltis”. Mance afirma inclusive que o turismo espacial, tal como o concebem Bezos e Branson, não tem um futuro glorioso pela frente. “É preciso estar muito desesperado para gastar um quarto de milhão de libras em quatro minutos de barulheira infernal e contorções corporais”. O jornalista propõe que dediquemos o próximo par de décadas “a combater de maneira eficiente a mudança climática”, que invistamos nosso tempo e nossos recursos em “salvar o planeta onde vivemos atualmente, ao invés de preparar uma incerta mudança coletiva a alguma galáxia longínqua e inóspita”. Mais ainda, conclui, se esse voo de ida rumo às estrelas estiver apenas ao alcance dos mais ricos.icos.