Diagnosticar casos individuais não basta. É preciso atuar sobre determinantes sociais para diminuir compras compulsivas. Adotando hábitos de consumo socialmente responsáveis e sustentáveis e hábitos de produção que vão além da busca pela maximização dos lucros.
Pablo Ruisoto, Esquerda.net / The Conversation, 25 de Novembro, 2021
Regressa a Black Friday e, com ela, as aglomerações de consumidores dispostos a lutar para conseguir os melhores descontos e ofertas. Em 2020, a Amazon faturou 10.000 dólares por segundo e foi precisamente nesse dia que alcançou o seu recorde de vendas.
Este ano, as ofertas incluem, até, novos produtos e serviços de centros de reprodução humana. Como explicar estes níveis de consumo? Teremos uma adição por compras? Neste artigo, iremos questionar esta ideia e rever a importância do contexto social nos nossos hábitos de consumo: quanto, o quê e quando consumimos.
Adição nas compras?
O problema de comprar em excesso não é novo e as tentativas de o explicar como resultado de um transtorno também não. Em 1915, o psiquiatra Emil Kraepelin definiu-o como a “mania pelas compras” ou “oniomania”. Em 1924, Eugen Bleuler redefiniu-o como um “impulso incontrolável pelas compras” ou “loucura impulsiva” tal como a cleptomania ou a piromania. Recentemente, redefiniu-se uma vez mais como transtorno aditivo ou obsessivo-compulsivo apesar de não ter sido incluído nos manuais de diagnóstico de referencia em saúde mental.
Sem dúvida que a perda de controlo nas compras, persistindo apesar das suas sérias consequências para o consumidor, é real. Contudo, os limites que separam os meros consumidores daqueles que o fazem de forma “patológica” não são claros e a delimitação arbitrária deste diagnóstico perpetua o mito de que será mais fácil curar-se através de tratamentos psicofarmacológicos. Ou seja, contribui para medicalizar mais um aspeto da vida quotidiana, apesar de não existir nenhum tratamento psicofarmacológico específico eficaz. Para além disto, desvia a atenção do contexto social no qual ocorre.
Para muitos consumidores com ou sem problemas, ir às compras funciona como ir à farmácia, como um mecanismo de enfrentamento para regular o nosso estado anímico. Por isso, as diferenças entre um consumidor e um consumidor com adição parecem ser mais quantitativas que qualitativas.
Obsessão pelas compras e sintomas de um problema social
A perda de controlo nas compras poderia ser considerada não apenas um problema individual, mas também o sintoma de um problema social. A expressão do consumismo, que se caracteriza pela compra ou acumulação de bens e serviços não essenciais, constitui o fim último da economia para garantir o crescimento constante.
As marcas competem para vender mais e os consumidores para comprar mais. Segundo o economista Victor Lebow, o consumismo converteu-se numa forma de vida.
Alguns dos fatores contextuais que contribuem para explicar a crescente perda de controlo sobre as compras são os seguintes:
- O aumento de facilidade para comprar pela internet e através de cartões de crédito. Isto reduz a demora entre o impulso ou desejo de comprar e a compra. Atualmente, é possível comprar apenas com um clique.
- Os descontos, as ofertas e promoções limitados no tempo ou em unidades favorecem a urgência da compra porque sobrevalorizamos os produtos difíceis de conseguir ou supostamente escassos.
- Os meios de comunicação social de massas e as redes sociais multiplicam as oportunidades de nos compararmos com pessoas bem além da nossa esfera de contacto e classe social, aumentando assim os nossos desejos.
- A publicidade favorece as compras porque sobrevaloriza bens materiais desnecessários e gera novas necessidades que se satisfazem mediante o consumo materialista.
- As modas favorecem o consumo, desvalorizando rapidamente o valor do que se adquiriu e reforçando o desejo de comprar novos produtos.
- O narcisismo converte o consumo compulsivo num ritual de auto-complacência com vista a satisfazer os nossos egos.
- Os hábitos de consumo são indicadores do nosso estatuto, aceitação e prestígio social. As compras constituem um meio de nos mantermos ou de nos aproximarmos ao estatuto desejado ou procurado. Mesmo que implique poupar menos ou endividar-nos porque a incapacidade de consumir afetaria a nossa estima e reconhecimento social.
Isto é importante porque, paradoxalmente, incentiva-se ao consumo ao mesmo tempo que o poder de compra é cada vez mais desigual: Oito pessoas ganham mais que metade da população mundial.
Além disso, os custos derivados da maximização das taxas de lucro ao produzir-se cada vez mais, mais rápido e mais barato tornam-se cada vez mais evidentes, tanto em termos de precarização das condições laborais como em termos da grave deterioração do meio ambiente.
Assim, enquanto os níveis de consumo alcançaram máximos históricos durante a pandemia, os problemas de saúde mental também registam números recorde.
As compras numa sociedade de consumo
O êxito do Black Friday é um símbolo do êxito do consumismo como forma de vida na sociedade atual, onde consumimos, substituímos e descartamos a um ritmo cada vez maior e, portanto, insustentável.
A natureza irracional, aditiva ou compulsiva das compras, especialmente durante o Black Friday, seria o resultado expectável no contexto disfuncional da nossa sociedade de consumo, ao passo que um diagnóstico simplesmente etiqueta esse padrão de consumo irracional sem explicar porque ocorre.
Como consequência, a redução das taxas de compras compulsivas não pode limitar-se ao diagnóstico e tratamento dos casos individuais mas é também necessário atuar sobre os determinantes sociais do consumo. Não apenas adotando hábitos de consumo éticos, socialmente responsáveis e sustentáveis mas também hábitos de produção para além da busca da maximização da margem de lucros económicos para as empresas privadas.
Necessitamos de mais cidadãosecccc informados e participativos na tomada de decisões que os afetam e menos consumidores passivos, aturdidos pelo marketing e sem controlo sobre o quê, quanto ou como se consome ou produz.
Pablo Ruisoto é professor de Psicologia na Universidade Pública de Navarra. Texto publicado originalmente no The Conversation. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.