O triunfo de Luis Arce na primeira volta surpreendeu até as fileiras do MAS e confirmou o fracasso do "voto útil" contra ele. Porém, o seu governo não será nada fácil num cenário regional pós-progressista e com uma economia muito complicada.
Pablo Stefanoni, Esquerda.net, 20 de outubro de 2020
Nem mesmo unida a oposição teria conseguido impor-se. Durante quase um ano que durou o governo Áñez, o MAS conseguiu entender a nova etapa, rever os seus próprios erros e até gerar novas lideranças.
Quando se aproximava a meia-noite e faltavam resultados oficiais - mesmo a sondagem à boca das urnas e contagens rápidas –, começava a crispar-se o ambiente e a alimentar-se as suspeitas, houve uma reviravolta inesperada. A cadeia Unitel, uma das mais seguidas na noite eleitoral e de maior audiência no país, que vinha adiando repetidamente as suas projeções, anunciou que finalmente se conheceria a contagem rápida da empresa Ciesmori. O resultado caiu como uma bomba: nem mesmo os mais otimistas da campanha do Movimento pelo Socialismo (MAS) imaginavam tal número: Luis Arce Catacora ultrapassava com folga os 50% dos votos e transformava-se em presidente sem necessidade de uma segunda volta. O ex-presidente Carlos Mesa, a carta do “voto útil” para impedir o retorno do MAS, ficava a 20 pontos de distância.
Que nestes tempos conturbados a saída tenha sido eleitoral não é pouca coisa,
nem para a Bolívia nem para o continente
Todas as análises da campanha e do próprio dia das eleições sobre o máximo de votos de Arce - supostamente o candidato com menos possibilidades de crescimento - explodiram e o MAS prepara-se para regressar ao Palácio Quemado com uma votação plebiscitária. Mesmo que tivesse havido uma única candidatura anti-MAS, se a oposição tivesse alcançado a unidade, não teria sido suficiente. O facto de a presidente interina Jeanine Áñez reconhecer rapidamente o triunfo do MAS e felicitar Arce, contribuiu sem dúvida para evitar que o clima de crispação e potencial instabilidade acabasse por impor-se face à lenta contagem oficial, após um dia exemplar de votação seguindo os protocolos em tempos de pandemia.
O MAS obteve também maioria no Parlamento. No seu bastião de La Paz, impôs-se com 65% a 32%, enquanto conseguiu uns significativos 35% em Santa Cruz, onde se fortaleceu o conservador Luis Fernando Camacho, líder dos protestos de rua de novembro do ano passado que, no quadro de um motim policial e de um pronunciamento militar, levaram ao derrube de Morales e ao seu exílio na Argentina.
Liderança
Com estes resultados, Arce deverá construir a sua própria liderança presidencial, com um Evo Morales que voltará à Bolívia menos forte do que antes, mas sem dúvida influente, e um vice-presidente, David Choquehuanca, distante de Morales e com base própria entre as lideranças aymaras das terras altas de La Paz. Mais ainda: Arce deverá mostrar que o seu modelo económico –uma das cartas mais fortes do MAS na sua década e meia no poder– serve também em tempos de crise económica e incerteza aprofundada pela pandemia. Por enquanto, no seu discurso de domingo à noite, ele mostrou-se humilde, sugeriu uma autocrítica e prometeu unidade nacional.
O que estava em jogo nas eleições? Mais do que programas eleitorais, a eleição enfrentou diferentes leituras sobre os 14 anos de governo do MAS e os quase 12 meses de gestão de Jeanine Áñez, uma senadora conservadora que, aproveitando o vazio de poder após o derrube de Evo Morales e a renúncia da presidente do Senado a assumir a presidência, desembarcou inesperadamente no Palácio Quemado.
Desde o início, o governo interino procurou demonizar o MAS, que tentou reduzir a uma força “narco-terrorista”, caracterizando a sua gestão como uma infame mescla de autoritarismo, corrupção e desperdício de recursos públicos, distante das imagens de sucesso económico destacadas até mesmo por Organizações internacionais. Nessa narrativa radical, alguns chegaram mesmo a falar de uma “ditadura” em que só se podia falar em sussurro nos cafés para não ser perseguido pelo autoritarismo indígena. No entanto, como costuma acontecer com as rebeliões antipopulistas, a vingança prevaleceu sobre as promessas institucionalistas e republicanas, ao que na Bolívia se acrescentou uma gestão administrativa particularmente deficiente da crise gerada pelo coronavírus, que provocou mais de 8.000 mortes, segundo os dados oficiais.
Muitos viram no governo Áñez um esforço das classes médias e altas “brancas” para retomar o poder parcialmente perdido desde 2006. Mas o MAS, apesar de ter sofrido uma derrota em novembro do ano passado, conseguiu reconstituir -se a partir do Parlamento - onde continuou a conservar a maioria de dois terços - e das ruas, mantendo o seu lugar de única força de base popular no país. Às vezes, o governo de Áñez era bastante semelhante ao da Revolução de Libertação Argentina de 1955: muitos não hesitaram em se referir a Evo Morales como o "tirano fugitivo" e não conseguiram perceber que, apesar de tudo, o MAS continuava a expressar um bloco étnico-social de matriz plebeia. As ações exageradas e repressivas do ministro do Interior Arturo Murillo, que ameaçou com prisões e perseguições, produziram um efeito paradoxal, na medida em que visavam não apenas o MAS, mas também expressões mais amplas dos movimentos sindicais e sociais.
No plano estritamente eleitoral, Carlos Mesa confiou demasiado no “voto útil”, a partir de uma premissa de que a maioria queria evitar a todo o custo o regresso do MAS e possivelmente nem tentou ligar-se ao mundo indígena-popular. Mas, como se viu nas eleições, essa rejeição – que nas redes sociais e nos media parecia absoluta – não existia; pelo menos com essa força. O “voto útil” limitou-se a cerca de 30% dos votos.
O segundo dado eleitoral é a confirmação da dificuldade das lideranças de Santa Cruz para sair da sua região. Camacho, que em 2019 parecia ter conquistado muitas pessoas de La Paz, obteve um resultado inconsequente na sede do governo, ao mesmo tempo que se consolidou como uma força regional. Santa Cruz escolheu o seu próprio "voto útil" em defesa de seus interesses regionais e regionalistas.
O MAS
Ao mesmo tempo, o triunfo do MAS mostra que era possível ganhar com outro candidato que não Evo Morales, e que a sua tentativa de reeleição acabou por levar o seu governo a um beco sem saída, que possibilitou uma espécie de "contra-revolução" que acabou por expulsá-lo do poder. A sua incapacidade de se livrar do MAS não significa que a recusa à reeleição indefinida não fosse ampla e que o governo do MAS tenha visto a sua forma de exercício do poder implodir em novembro passado. A rebelião terminou num golpe, o que não exclui que tenham ocorrido mobilizações massivas (por baixo) e uma forte crise (por cima) que explicam a saída tumultuosa do MAS do poder.
O triunfo do MAS mostra que era possível ganhar com outro candidato que não Evo Morales, e que a sua tentativa de reeleição acabou por levar o seu governo a um beco sem saída
No entanto, a repressão e o retorno à base incutiram uma nova mística na campanha eleitoral, que faltou na campanha de 2019, quando a confiança no aparelho estatal substituiu a mobilização a partir de baixo. A crise também permitiu a emergência de uma nova camada de dirigentes, como Andrónico Rodríguez, sucessor de Morales nos sindicatos cocaleiros. Camponês com uma licenciatura em Ciência Política, Rodríguez expressa a nova sociologia do mundo rural, cada vez mais interligada com as cidades. Nesta campanha, apareceram muitos “Andrónicos”, que permitiram retirar do primeiro plano vários dirigentes sociais desgastados e com visões de usar a política e o Estado para obter privilégios.
Desde o início, o MAS atuou com relativa autonomia em relação a um Evo Morales exilado em Buenos Aires e limitado nos seus movimentos. Os parlamentares, liderados por Eva Copa, optaram pela moderação diante dos apelos de resistência vindos da Argentina. A verdade é que não houve um pedido massivo do tipo "Evo volta"; o que existia era antes uma rejeição a atos ofensivos do novo governo, como a tentativa de queima de wiphalas1 nos protestos anti-MAS e outros episódios considerados racistas, como as contínuas referências às “hordas do MAS” e às colunas da imprensa sobre o “inimigo público número um”2 ou o “cancro da Bolívia”3. O “voto útil” do mundo rural e urbano popular periférico foi, sem dúvida, para Arce, e isso definiu a sua vantagem final.
Ao contrário de parte da solidariedade anti-golpista internacional, perdida em slogans vazios, o MAS conseguiu entender a nova etapa e apostar no resultado eleitoral, com os compromissos que esta exigiu, para além da resistência nas ruas. Este foi especialmente o caso daqueles que ficaram na Bolívia, que entenderam a complexidade do ocorrido em novembro: o processo que culminou com uma “sugestão” militar de demissão de Morales, que tecnicamente configura um golpe, fez parte de uma crise com mais dimensões, incluindo a popularidade inicial de Áñez e o próprio desgaste de Morales. Essa relativa autonomia ampliou o campo de ação do MAS, enquanto o tenor moderado Arce - um economista técnico obrigado a fazer o jogo da campanha, cantando ou jogando basquete em público - aumentou o seu prestígio como gestor da economia, permitiu responder, sem exagero, aos ataques da direita.
O futuro
O novo desafio do MAS será governar sem o poder que teve entre 2006 e 2019. Esse período "épico" da revolução já não poderá repetir-se. O seu governo operará num cenário pós-progressista na região, e possivelmente deverá transformar-se num partido mais aberto a partilhar o poder e a aceitar a alternância em maior medida, sem pensar na saída do governo como uma pura catástrofe.
O cenário é mais favorável do que se poderia imaginar nos dias anteriores: por um lado, a ampla vantagem nas urnas constitui um capital eleitoral fundamental, num contexto de polarização; por outro, vários atores políticos, económicos e sociais já haviam abandonado a possibilidade de o MAS regressar ao palácio de governo.
Por fim, a épica "Revolução das Pititas" - como ficou conhecido o movimento de novembro de 2019 - acabou por diluir-se apesar dos livros, suplementos de jornais e tentativas de construir uma história de "libertação". No entanto, permanece como uma recordação de que as insurreições urbanas são uma constante na história nacional boliviana – tanto as progressistas como as reacionárias - e que o novo governo deverá reconciliar pedaços da sociedade atravessados por clivagens étnicas, sociais e regionais. Que nestes tempos conturbados a saída tenha sido eleitoral não é pouca coisa, nem para a Bolívia nem para o continente.
Pablo Stefanoni é chefe de redação da revista Nueva Sociedad. Artigo publicado em Correspondencia de Prensa e originalmente em Le Monde Diplomatique, edição Cone Sul. Tradução para português de Carlos Santos, para esquerda.net
Notas:
1 (Nota do tradutor) Wiphala andina, quadrangular de sete cores, usada por povos andinos, presente especialmente na Bolívia, mas também em Perú, Colômbia, Norte da Argentina e do Chile, sul do Equador e oeste de Paraguai. Ver mais em, https://es.wikipedia.org/wiki/Wiphala(link is external)
2 https://eldeber.com.bo/opinion/el-enemigo-publico-no-1_184334(link is external)
3 https://www.lostiempos.com/actualidad/opinion/20191116/columna/cancer-bolivia