O bolsonarismo é a expressão de transformações mais profundas na estrutura da sociedade de classes no Brasil
Luis Felipe de Farias, A terra é redonda, 20 de julho de 2022
Atualmente, a maior parte do discurso dito crítico ao bolsonarismo interpreta este fenômeno exclusivamente a partir da dinâmica eleitoral, creditando sua resiliência a ferramentas de desinformação em massa ou a programas públicos de transferência de renda em momentos políticos decisivos.
Nesta leitura, o bolsonarismo é reduzido a uma expressão pontual e passageira de irracionalidade política, algo como um pesadelo de que acordaremos após uma eventual vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, capaz de restaurar a normalidade dos pactos sociais e do quadro institucional vigentes após 1988. Silencia-se assim sobre a possibilidade de o bolsonarismo ser a expressão de transformações mais profundas na estrutura da sociedade de classes no Brasil, minimizando-se os impasses radicais da chamada “Nova República” e ocultando-se desafios do embate contra este fenômeno para além das eleições.
O pacto social estabelecido pela Constituição de 1988 expressou as potências e os limites do conjunto de forças sociais que tiveram relativo protagonismo no processo que levou ao fim da ditadura civil-militar no Brasil. Construído de modo a preservar importantes estruturas de poder consolidadas durante a ditadura, nosso atual quadro institucional formalmente democrático ainda assim possibilitou a ampliação de canais de pressão popular sobre o poder público e a criação de ferramentas de relativa redução de desigualdades sociais.
Simultaneamente, entretanto, durante as últimas quatro décadas de “Nova República” intensificaram-se transformações estruturais na sociedade brasileira, que levaram à emergência de novas forças dotadas de inquietações e horizontes que parecem transbordar aquele pacto social estabelecido em 1988. Contrariando ilusões passadas e presentes acerca do alcance e da solidez que a democracia liberal enfim teria alcançado em nossas terras, a “Nova República” parece ter gestado em seu interior impulsos que hoje que a colocam em xeque.
Desindustrialização e esgotamento dos projetos de modernização social
Dentre as transformações na estrutura da sociedade de classes no Brasil nas últimas quatro décadas destaca-se o processo de desindustrialização. Segundo carta do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) publicada em junho/2021, entre 1980 e 2020, a parcela da manufatura no PIB do Brasil recuou constantemente, enquanto o grau de industrialização da economia mundial aumentou durante as últimas quatro décadas impulsionado especialmente pelas transformações na economia e na sociedade chinesas.
Enquanto a manufatura brasileira reduziu sua participação no PIB nacional de 21,1% em 1980 para 11,9% em 2020, o grau de industrialização em escala mundial elevou-se de 15,6% para 16,56% do PIB global no mesmo período. Trata-se de uma mudança estrutural de longo prazo do padrão de articulação do Brasil com o mercado internacional, com profundos desdobramentos sobre a dinâmica da sociedade de classes no Brasil.
Esta profunda transformação co-determinou o relativo esgotamento das forças sociais e dos projetos de modernização concorrentes que ergueram e animaram a chamada Nova República no Brasil a partir da década de 1980. Primeiramente, este processo de desindustrialização tem sido acompanhado de uma erosão dos aparelhos de hegemonia que permitiram às frações das classes dominantes no Sudeste e à intelectualidade orgânica especialmente em São Paulo consolidarem um relativo consenso na sociedade civil em escala nacional. Órgãos de imprensa escrita, emissoras de televisão, universidades públicas, federações industrias e aparelhos partidários sediados prioritariamente na região sudeste, cada um com sua dinâmica própria, tem perdido capacidade de dirigir interesses, elaborar valores e orientar expectativas no país como um todo.
Destaca-se neste processo o esgotamento do projeto característico do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de liberalização e internacionalização da economia brasileira, com o pretenso objetivo de corrigir distorções e quebrar privilégios de elites oligárquicas no interior de um Estado patrimonialista. Contrariamente às ilusões características dos anos 1990, a inserção do Brasil na chamada globalização não promoveu uma racionalização econômica e social, mas antes desgastou os próprios fundamentos da sociedade moderna no país. Chama a atenção neste contexto o fracasso crescente da intelligentsia paulista em torno deste partido em apresentar nas últimas duas décadas candidaturas presidenciais minimamente capazes de se afirmar em escala nacional.
Paralelamente, o processo de desindustrialização também co-determinou uma acelerada transformação da morfologia da classe trabalhadora brasileira, com destaque para a quebra do protagonismo social do operariado da região sudeste que esteve a frente do ascenso de lutas populares da década de 1980. As redes de solidariedade animadas pelo catolicismo popular que estiveram na gênese da Central Única dos Trabalhadores e do Partido dos Trabalhadores perderam sua capacidade de interpretar as inquietações e orientar as esperanças de uma juventude trabalhadora distante do chão de fábrica, dispersa pelo espaço urbano, movida a motocicletas e articulada por plataformas online. Trata-se de uma juventude trabalhadora marcada por um grau relativamente mais alto de escolarização formal em comparação com as gerações passadas, atravessada por maiores expectativas de ascensão social e pela inquietação perante a permanência crônica de sua subalternidade econômica e política.
Perante estes sujeitos, o Partido dos Trabalhadores (PT) parece ainda capaz de mobilizar interesses por meio de programas pontuais de transferência de renda, mas parece incapaz de oferecer horizontes estratégicos que criem novo valores. Isso decorre do completo esgotamento do discurso dito (neo)desenvolvimentista, que apostava na (re)industrialização brasileira capitaneada pelo poder público e por empresários elevados à condição de “players globais” como condição para maior autonomia nacional e para a extensão da cidadania salarial às massas. Se nas décadas de 1950 e 1960 a estratégia desenvolvimentista e a aposta em uma burguesia nacional culminaram em uma tragédia, nas décadas 2000 e 2010 a reedição desta tradicional retórica da esquerda brasileira foi apenas uma farsa.
Reprimarização e protagonismo crescente do agronegócio e do neoextrativismo
A despeito de sua retórica modernizante, tanto os governos da social-democracia quanto os governos do Partido dos Trabalhadores estimularam um acelerado processo de reprimarização da pauta de exportações brasileiras, buscando responder aos constrangimentos e instabilidades de crises financeiras globais que ampliaram sua frequência e intensidade a partir da década de 1990. Com isso, a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho alterou-se rapidamente, provocando mudanças na correlação de forças dentre as frações das classes dominantes que compõem o bloco no poder que dirige este país.
Em uma transformação geopolítica de consequências ainda imprevistas, a parcela dirigida à China (incluindo Hong Kong e Macau) das exportações brasileiras aumentou de 2,8% em 2000 para 27,9% em 2018, enquanto a participação dos EUA dentro do conjunto caiu de 23,9% para 12% neste período. Este incremento das relações comerciais com a China levou a um aumento da exportação brasileira de produtos básicos como minério de ferro e soja em grãos e ao aumento de importações especialmente de produtos manufaturados, intensificando o enfraquecimento de cadeias produtivas industriais nacionais e fortalecendo cadeias produtivas ligadas às commodities minerais e agrícolas. Dentro deste contexto, segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, a participação dos produtos manufaturados nas exportações totais do Brasil caiu de 59% em 2000 para 36% em 2019, enquanto a participação dos produtos básicos aumentou de 23% para 51% no mesmo período.
Consolidou-se assim um novo protagonismo político, econômico e cultural no século XXI de frações das classes dominantes vinculados à produção e comercialização de commodities minerais, agrícolas e agroprocessadas no país. Trata-se de setores econômicos que possuem algumas características comuns: (1) cadeias produtivas pouco densas com capacidade limitada para impulsionar relações sociais crescentemente complexas, diversificadas e dinâmicas; (2) baixa geração de empregos formais e horizontes estreitos de extensão de cidadania salarial às massas trabalhadoras; (3) apropriação voraz de terras com desdobramentos degradantes sobre territórios sob sua influência; (4) mobilização direta ou indireta de violência paramilitar como ferramenta de controle social. Formaram-se sob estas bases centros de poder em espaços urbanos de médio porte pelo interior do Brasil que demandam novos canais de representação, ainda incapazes de exercer hegemonia em escala nacional, mas com capacidade crescente de pautar as decisões do poder público e mesmo parcela significativa da produção cultural do país.
Especificamente o complexo soja vem mostrando uma capacidade impressionante de reorganização de ampla parcela do território nacional: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, entre 2000 e 2018 a produção de soja no Brasil saltou de 32,8 milhões de toneladas em 13,7 milhões de hectares para 117,9 milhões de toneladas em 34,8 milhões de hectares. Segmento central do chamado agronegócio, o complexo soja tornou-se decisivo para o atual padrão de articulação do Brasil com o mercado internacional: segundo as séries históricas do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, as exportações brasileiras de soja em grãos, farelo e óleo saltaram de US$ 4,2 bilhões (equivalentes a 7,5% de toda exportação do país em 2000) para US$40,7 bilhões (equivalentes a 17% de toda exportação do país em 2018).
Impactos socio-ambientais desta expansão avassaladora da sojicultura são ilustrados pela obra Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia, de Larissa Mies Bombardi. Segundo Bombardi, o consumo de agrotóxicos no Brasil saltou 135% em 15 anos passando de 170.000 toneladas no ano 2000 para 500.000 toneladas em 2014, liderado pela sojicultura que consumiu 52% dos agrotóxicos do país em 2015. Ainda segundo a autora, entre os anos de 2007 e 2014 houve no Brasil cerca de 25 mil intoxicações por agrotóxicos notificadas ao Ministério da Saúde (equivalentes a 3.125 casos notificados por ano ou ainda 8 intoxicações diárias). Contudo, devido à taxa de subnotificação estimada na ordem de 1 para 50, a autora considera possível dizer que houve 1.250.000 intoxicações por agrotóxicos no país durante este período.
Similarmente, a cadeia produtiva de minério de ferro também se tornou um elo fundamental de articulação do Brasil com o mercado internacional. Segundo as séries históricas do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, exportações brasileiras de minério de ferro saltaram de US$3 bilhões (equivalentes a 5,5% das exportações totais do Brasil em 2000) para US$44,6 bilhões (equivalentes a 15,9% das exportações totais do Brasil em 2021). De acordo com o Dossiê desastres e crimes da mineração em Barcarena, Mariana e Brumadinho, organizado por Edna Castro e Eunápio do Carmo e publicado no ano de 2019, tal crescimento econômico vertiginoso vem sendo acompanhado de diversas externalizações dos riscos socio-ambientais sobre “zonas de sacrifício”.
Os autores constroem um balanço crítico das políticas públicas e das práticas empresariais da mineração nos estados do Pará, Maranhão e Minas Gerais, destacando três eventos que simbolizam os impasses do Brasil contemporâneo: o rompimento em 2015 da barragem de rejeitos da mina do Fundão da empresa Samarco, provocando diretamente o óbito de 19 pessoas em Mariana (MG); o vazamento em 2018 de rejeitos de bauxita da barragem da mineradora Hydro Alunorte, contaminando rios e imenso território no município de Barcarena (PA); o rompimento em 2019 da barragem de rejeitos da mina do Córrego Feijão da empresa Vale do Rio Doce, matando 272 pessoas em Brumadinho (MG).
Acumulação primitiva permanente e significado estratégico da região amazônica
O que parece unificar e dar sentido às forças que dirigem tais cadeias de commodities minerais e agroprocessadas é o aprofundamento da acumulação primitiva permanente na região amazônica, um dos maiores bolsões de recursos comuns ainda não reduzidos à condição de propriedade privada no mundo hoje. Historicamente, a apropriação ultra-concentrada de terras públicas (e, consequentemente, de renda da terra) no interior do Brasil foi um dos fundamentos para a formação de capital urbano industrial durante o século XX.
Períodos de impasse na acumulação de capital foram assim respondidos durante ciclos ditatoriais pela aceleração do avanço sobre a fronteira amazônica, com destaque para a Marcha para o Oeste durante o Estado Novo varguista na década de 1940 e para incentivos fiscais e creditícios da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) durante a ditadura entre 1964 e 1985. A particularidade do atual flerte com um novo período de exceção não é, portanto, uma intensificação do regime de espoliação sobre a região amazônica, mas sim o fato de que esta acumulação primitiva permanente não parece hoje servir de alavanca aos processos de industrialização do país.
Parece antes ter se tornado um horizonte estratégico por si só capaz de unificar parcela das frações das classes dominantes que compõem o bloco no poder, em um contexto de aborto das pretensões de um Brasil moderno e de regressão a um padrão primário-exportador de articulação com o mercado internacional.
Segundo mapa publicado pelo jornal Nexo em abril de 2017, cerca de 47% do território brasileiro ainda é composto de terras públicas concentradas sobretudo na região norte, incluindo áreas militares, terras indígenas, unidades de conservação e terras públicas ainda não destinadas pelo poder público. Segundo a publicação, terras indígenas representam hoje 13% da área do país, com destaque para três unidades da federação com maiores percentuais de áreas indígenas em seus territórios: Roraima (46%), Amazonas (28%) e Pará (22%).
Por sua vez, as unidades de conservação ambiental correspondem a 12% da área do país, em que mais uma vez se destacam 3 estados pela proporção destas unidades em suas terras: Amapá (63%), Acre (32%) e Pará (26%). Especialmente vulneráveis a disputas, grilagens e desmatamentos ilegais, terras públicas não destinadas ou “desprotegidas” (às quais o governo federal ainda não deu nenhum destino) correspondem a 10% do território nacional (maior que as áreas somadas de São Paulo e Minas Gerais) e concentram-se especialmente nos estados do Amazonas (35%), Acre (19%) e Roraima (17%).
A unidade estratégica dos setores vinculados ao agronegócio e ao neoextrativismo decorre do objetivo comum de transformar estas reservas de recursos públicos em renda da terra, ainda que existam dentre estes setores importantes divergências táticas quanto à maneira como isso deve ser realizado.
O relatório Cartografias das violências na região amazônica, publicado em 2021 e produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Clima e Sociedade e com o Grupo de Pesquisa Terra – UEPA, registra a dimensão da violência mobilizada por esta acumulação primitiva. Segundo este relatório, entre 2011 a 2020 houve um salto de 47,3% nas mortes violentas intencionais (MVI) na região amazônica com destaque para o crescimento de homicídios nos municípios rurais e intermediários amazônicos, em contextos de intensificação de crimes ambientais e conflitos fundiários.
Comparando taxas de Mortes Violentas Intencionais por zonas de ocupação em 2020, o relatório aponta que os municípios com as maiores taxas são aqueles sob pressão de desmatamento (37,1 por 100 mil habitantes), seguidos por municípios desmatados (34,6) e por municípios não florestais (29,7), enquanto municípios florestais apresentaram a menor taxa de letalidade da região (24,9). O relatório também aponta que a violência decorrente da grilagem de terras, do desmatamento, do mercado ilegal de madeira e do garimpo ilegal tem sido potencializados pela presença de facções do crime organizado e pelas disputas entre elas por rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região. Tal crescente protagonismo de mercados ilegais e sua complexa articulação com as redes de poder relacionadas aos crimes socio-ambientais fizeram com que entre 1980 e 2019 a taxa de mortalidade por homicídio tenha crescido 260,3% na região norte, enquanto na região sudeste ela caiu 19,2% no mesmo período.
Os povos originários na região amazônica são um alvo preferencial desta escalada de violência, mas também um importante foco de resistência às irracionalidades socio-ambientais desta aceleração da acumulação primitiva. O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) identificou naquele ano 263 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” em pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados. Segundo a mesma fonte, trata-se de um aumento em comparação com o ano de 2019 quando foram contabilizados 256 casos e um acréscimo vertiginoso de 137% em comparação com o ano de 2018 quando foram identificados 111 casos.
Por sua vez, o relatório Fundação Anti-indígena: Um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro, publicado em 2022 e produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Indigenistas Associados (INA), faz um balanço crítico da “Nova Fundação nacional do Índio” especialmente a partir de 2019 quando assumiu a presidência do órgão o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. O relatório destaca a presença crescente de militares e policiais na instituição: 27 das 39 Coordenações Regionais da Funai tiveram chefes nomeados de fora dos quadros do órgão, sendo dezessete militares, três policiais militares, um policial federal e seis pessoas sem vínculo prévio com a administração pública.
A despeito dos esforços da “Nova Funai” para impedir que processos demarcatórios pendentes alcancem a etapa de homologação, para enfraquecer mecanismos de proteção e atuação nas TIs não homologadas e para regularizar formas veladas de arrendamento em TIs para exploração agropecuária, mineradora e madeireira, o relatório destaca que o anti-indigenismo ruralista da era Bolsonaro não logrou nenhuma efetiva mudança legislativa até o momento. Especificamente o julgamento paradigmático sobre o marco temporal das terras indígenas segue até o momento uma batalha inconclusa, indício da capacidade de resistência dos povos originários perante a ofensiva da acumulação primitiva.
Conclusão
Este texto propôs-se levantar a hipótese de que o bolsonarismo não pode ser considerado uma expressão pontual e passageira de irracionalidade política. Propomos interpretar o bolsonarismo como a expressão de uma profunda transformação da acumulação de capital e da sociedade de classes no Brasil, primeiro ensaio hegemônico de setores vinculados às cadeias produtivas de commodities minerais e agrícolas galvanizados em torno do horizonte estratégico de intensificação da acumulação primitiva sobre a região amazônica.
De acordo com esta leitura, o bolsonarismo é radicalmente distinto tanto dos regimes nazi-fascistas na Itália e na Alemanha nas décadas de 1920 e 1930, quanto das ditaduras militares na América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Todos estes regimes impulsionaram processos acelerados de industrialização cuja força centrípeta foi fundamental à consolidação dos estados de exceção. Ao contrário, o bolsonarismo é resultado do crônico processo de desindustrialização que levou ao aborto dos projetos de modernização social que haviam animado a construção da “Nova República” a partir da década de 1980.
Marcado pela força centrífuga dos novos centros de poder que se fortaleceram pelo interior do país com a reprimarização da pauta de exportações brasileiras, o bolsonarismo não parece capaz de consolidar um novo pacto social que estabeleça mínimo consenso dentre as classes no interior da sociedade civil, mas parece capaz de acelerar a erosão das bases da institucionalidade vigente.
Por sua vez, forças ditas à esquerda no Brasil não oferecem horizonte estratégico que reconheça o impasse civilizatório em que mergulhamos. Aprisionada em cálculos de caráter pragmático restritos à dinâmica eleitoral, estas forças ditas à esquerda tomam como dado inquestionável um quadro institucional formalmente democrático em franco processo de decomposição. Assim, restringem-se a um discurso de caráter nostálgico com potencial decrescente de mobilizar a inquietação de uma juventude trabalhadora imersa em relações de trabalho e espaços urbanos crescentemente precarizados.
Este discurso nostálgico parece suficiente para angariar votos dentre as camadas mais afetadas pela crise econômica e com memória viva da estabilidade recente, mas um eventual terceiro governo Lula possuirá menos fichas e terá de pagar mais caro para implementar mecanismos mínimos de redução da desigualdade e neutralização dos conflitos sociais como os que vigoraram na década de 2000. Poderemos então ver o bolsonarismo derrotado nas eleições de 2022 porém ainda assim com capacidade de mobilização estável ou crescente em um contexto de ingovernabilidade crônica e de crise institucional aguda.
Luiz Felipe F. C. de Farias é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências
BOMBARDI, Larissa Mies. Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: FFLCH – USP, 2017.
CASTRO, Edna; CARMO, Eunápio. Dossiê Desastres e Crimes da Mineração em Barcarena, Mariana e Brumadinho. Belém: NAEA – UFPA, 2019.
CENTRO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: Dados de 2020. Disponível em https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-violencia-povos-indigenas-2020-cimi.pdf.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Cartografias das violências na região amazônica: Relatório final. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-amazonica-relatorio-final-web.pdf.
IEDI, Carta 1085. Disponível em https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_1085.html. Acesso em 10/07/2022
INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Fundação anti-indígena: Um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro. Disponível em https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Fundacao-anti-indigena_Inesc_INA.pdf. Acesso em 10/07/2022.
NEXO. Públicas e privadas: A divisão de terras no território brasileiro. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/04/07/P%C3%BAblicas-e-privadas-a-divis%C3%A3o-de-terras-no-territ%C3%B3rio-brasileiro. Acesso em 10/07/2022.