Governabilidade, se tal coisa existe, está por um fio com CPI à vista e embate entre Lira e Guedes
Igor Gielow, Folha de S.Paulo, 9 de abril de 2021
Para quem fingiu acreditar na regeneração de Jair Bolsonaro, encarnando um ponderado presidente preocupado com a pandemia e com a estabilidade política, as duas últimas semanas trataram de acabar com a pantomima.
Após uma confusa crise militar que seguirá inconclusa, bastando ver o teor do discurso do número 2 do Exército na frente do presidente na quinta (8), e uma nova rodada de absurdos sanitários, o mandatário máximo nos brinda com um choque direto com o Supremo Tribunal Federal.
Sabendo dos riscos óbvios que a CPI da Covid traz para o Planalto, Bolsonaro sacou a carta do impeachment do ministro Luís Roberto Barroso, a "bomba atômica" preferida de 9 entre 10 bolsonaristas —assume-se aqui que ter um artefato nuclear real faz parte do imaginário da turma.
Por ora, tal movimento é o que parece: uma ameaça barata. Mesmo com a bovinice interessada do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), parece impensável que ele dê curso a tal agitação.
Do ponto de vista retórico, Bolsonaro joga para sua plateia e também para os militares, que usualmente são muito críticos do trabalho do Supremo.
Só que os generais da ativa ora estão muito ressabiados com a intervenção feita por Bolsonaro no Ministério da Defesa, que gerou a crise da semana passada. Sua fala, no mesmo evento de promoção de oficiais-generais da quinta, evocando o "meu Exército", novamente foi bastante mal avaliada na cúpula militar.
Assim, muxoxos em WhatsApp abundarão, mas se Bolsonaro espera uma nota do comandante do Exército em apoio ao impeachment de Barroso, tudo indica que o fará sentado. Qualquer movimento diferente deste sugere um problema maior.
Por fim, o uso da bomba tem o condão de unir a corte, o proverbial arquipélago com 11 ilhas, como sempre acontece quando um de seus membros é alvejado.
Para Barroso, acabou sendo bom negócio. Sua decisão foi criticada por dois ministros ouvidos pela reportagem, que a viram como contraditória com a ideia de evitar aglomerações que o voto sobre cultos presenciais evidenciou na quarta.
Além disso, havia a expectativa de que o ministro levasse a decisão primeiro ao plenário, sem a concessão de uma liminar. Mesmo Luiz Fux, que integra a mesma ala que se proclama progressista da corte, ficou surpreso com o movimento.
Isso ocorre também num momento de instabilidade na corte. Kassio Nunes Marques está efetivamente marcado como um defensor de Bolsonaro na corte.
A saída do decano Marco Aurélio Mello em julho colocará um potencial Kassio 2 na corte. Isso tem preocupado os ministros, e a reprimenda do decano de fato, Gilmar Mendes, ao advogado-geral da União e ao procurador-geral da República, sinaliza isso.
Na quarta, ambos esgrimiram argumentos inacreditáveis em favor de manter cultos e missas com gente. No caso do advogado-geral André Mendonça, até há pouco ministro da Justiça, os termos foram de pregação religiosa: ele falou que é OK morrer em nome da fé, espalhando o Sars-CoV-2 por aí se necessário.
Ou seja, tanto ele quanto Augusto Aras, em menor escala, apresentaram credenciais para uma indicação bolsonarista à corte. Pode não dar em nada, mas impressionou muita gente de forma negativa.
Por isso, alguns ministros se queixaram de que a decisão de Barroso adicionou uma temperatura indesejável à situação.
Para um presidente acuado com uma crise sanitária, econômica e política, contudo, foi um tiro indesejável —CPI, reza o catecismo brasiliense, você só sabe como começa. O centrão vai voltar a subir seu preço, mas mesmo ali há um ruído fortíssimo em curso.
O nível da altercação entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro Paulo Guedes (Economia) tem subido muito devido à crise da apresentação do Orçamento inexequível para este ano.
Segundo aliados de Lira, nesta semana ambos quase foram à vias de fato, entre gritos, acerca da condução do processo. Esse é o arranjo de apoio que Bolsonaro costurou.
Sempre haverá empresários dispostos a aplaudir tal acerto, mas cresce, e muito, o contingente da elite que não tolera mais a turbulência institucional constante que marca o governo.
A bomba atômica, como se sabe, é feita para não ser usada. Mas sua radiação pode afetar aqueles que a manuseiam de forma inconsequente.