Ana Carvalhaes e José Correa
SÃO PAULO - Praticamente todas as análises de esquerda brasileira sobre a situação política do país enfatizam os elementos que emergem na disputa política nos limites da fronteira do Estado nacional. Nessa ótica, apenas a pandemia e a consequente situação econômica global, com seu impacto sobre o comércio e o câmbio, teriam incidido sobre as relações de poder no Brasil. Esta é, todavia, apenas a aparência do processo. Se a essência e a aparência dos fenômenos coincidissem, não seria necessário o conhecimento científico (a "crítica" ou a análise materialista histórica). A realidade tem que ser decifrada em seus elementos constitutivos ocultos, não aparentes na pseudo-concretude.
Esse olhar “nacionalista” que prevalece nas esquerdas brasileiras constitui uma espécie de miopia aguda. A explicação é que as esquerdas operaram, nos últimos quarenta anos, com parâmetros herdados do período desenvolvimentista, ou seja, dos tempos do Estado de Bem-Estar no Norte Global e das grandes lutas anticoloniais no Sul (África, Ásia, América Latina). São parâmetros de quando o mundo era outro, ou seja, quando eram outras a geopolítica, outra a formatação da hegemonia imperialista, outras as condições econômicas do sistema, as configurações de classe e dos sujeitos, a correlação de forças de médio e longo prazos.
Se esta defasagem já era brutal há vinte anos, tornou-se absurda depois da crise de 2008 e diretamente inútil nos últimos dois anos. Para utilizar uma metáfora, os processos globais (emergência generalizada de conflitos sócio-políticos depois de 2019, pandemia da Covid-19, multiplicação de sinais catastróficos da crise climática, aguçamento do conflito EUA-China) obrigaram as classes dominantes hegemônicas a colocarem uma quinta marcha no carro que conduzem. A burguesia (e falar no singular é remeter a um conceito no seu nível de abstração próprio e não a uma realidade empírica) é uma classe essencialmente internacional, porque o mercado mundial há muito - há pelo menos 70 anos - já é o determinante central para os negócios de praticamente todos os setores empresariais decisivos.
Esta ideia esteve no centro do debate clássico sobre o imperialismo desde antes da Primeira Guerra Mundial. O tema da relação entre o global e o nacional foi, por exemplo, o ponto central da crítica de Trotsky à Stálin nos anos 1920 e 1930; a polêmica sobre a possibilidade ou não de construção do socialismo em um só país foi derivada daquele tema. Alemanha e Japão foram à Segunda Guerra Mundial impulsionados por governos nacionalistas conservadores, para negociar mais autonomia e o controle de parcelas maiores do mercado mundial. E foram derrotados pelas coalizões de classes dominantes conduzidas pelas burguesias inglesa e norte-americana, qualitativamente mais globalizadas, em aliança com o estado soviético. Ora, aquelas burguesias de meados do século XX eram praticamente amadoras no trato e controle mundial dos fluxos de capital, na construção de hegemonia e na governança política global (projetando-se dentro das classes dominantes nacionais e suas instituições), se comparadas com as classes dominantes globalizadas, financeirizadas e plataformizadas deste primeiro quinto do século XXI - momento em que se acirra a disputa entre Washington e Beijing.
É importante resgatar esta dimensão global como determinante de processos nacionais porque essa abordagem veio se perdendo nas análises e compreensões de praticamente todas as esquerdas, entre as quais as correntes do PSOL. Leituras nacionalistas que antes eram autojustificações - injustificáveis - das movimentações conciliadoras do do PT com setores conservadores são incorporadas e reproduzidas com cada vez mais segurança, como se experiências e acúmulos do passado simplesmente não tivessem ocorrido.
O Brasil no mundo
O Brasil é um espaço econômico vital para os três fluxos de poder decisivos no capitalismo global - organizados a partir de Washington, Bruxelas-Frankfurt e Beijing. Todos os setores capitalistas fundamentais no Brasil se movem como componentes inseparáveis das teias de associações financeiro-corporativas, político-ideológicas e militares do capitalismo neoliberal. Mesmo a lumpenburguesia que se mobiliza em torno de Bolsonaro movimenta-se nos interstícios destas relações de poder e capital. As classes dominantes brasileiras nunca foram, e hoje são menos do que nunca, provincianas.
É um grande equívoco analítico, por exemplo, concluir que o globalismo neoliberal e o ultraliberalismo nacionalista conservador são apenas variações da mesma essência capitalista - filhos legitimos ou ilegítimos de Hayek, como formularam alguns analistas. Evidentemente, isto não está errado em um determinado nível de abstração teórica, mas a ênfase nessa semelhança, sem levar em conta o embate entre dois objetivos estratégicos diferentes, torna-se um caminho para o desastre, quando traduzida para o terreno político. Churchill e Hitler eram dirigentes de duas potências imperialistas, mas de forma alguma poderiam ser tratados politicamente sob o mesmo rótulo. O mesmo se dá no âmbito nacional, se comparamos o projeto neoliberal implementado pela coalizão PSDB-DEM nos anos FHC, com o projeto bolsonarista.
Estamos hoje mergulhados no embate entre dois "projetos" burgueses internacionais que disputam encarniçadamente, por todo lado, o destino do mundo. Mesmo com a distância histórica ainda curta, de apenas seis a sete anos, hoje é possível trabalhar com a hipótese de que o “desembarque” da maior parte dos setores burgueses “brasileiros” da sustentação ao governo Dilma, entre 2014 e 2016, foi resultado e parte dessa viragem global de uma parcela do empresariado em direção a um projeto ultraliberal mais ofensivo no terreno econômico (saqueador, espoliador), mais repressivo e reacionário no político (racista, patriarcal, xenófobo), cuja expressões maiores foram Trump e o Brexit. Bolsonaro, o bolsonarismo e, quase com certeza, uma parte importante das forças militares e civis que o apoiam são, ao mesmo tempo, produto de uma reviravolta na conjuntura doméstica, e representantes de uma tendência planetária à existência e fortalecimento de opções de extrema-direita inimigas dos regimes de democracia política liberal, mesmo que formal. Elas mobilizam, nas condições culturais de cada país, componentes violentos e irracionais da psiquê humana, com o apelo à pulsões mais destrutivas, num mundo em que a globalização e as redes sociais desestabilizam as antigas identidades e vínculos de pertencimento que prevaleceram na segunda parte do século XX.
A disputa é muito dura no coração do capitalismo global, os Estados Unidos. A vitória de Biden revela a força das resistências à esta deriva nacionalista- autoritária, que ameaça as condições de uma vida civilizada. Ao mesmo tempo, a persistência de iniciativas republicanas de restrição ao direito de voto mostram que as tendências abertamente fascistizantes seguem operando. Há variações dentro de cada um destes grandes campos em que se digladiam as forças do capital. Por abarcar o horizonte de universalismo possível para o capital, o globalismo neoliberal ainda cosmopolita abarca iniciativas variadas, como o novo projeto do capitalismo de plataformas “verde” norte-americano, o capitalismo de estado chinês, o social-liberalismo da socialdemocracia europeia, do PT e de variantes “progressistas” latino-americanas como o da Concertación chilena, da Frente Ampla uruguaia e do kirchenismo. [1]
O drama de nossa época é que, até agora, nenhuma alternativa de esquerda se propondo a ir além do universalismo mercantil burguês, de um lado, e de um desenvolvimentismo extrativista retrógrado, de outro, conseguiu tornar-se referência para a convergência das lutas sociais que não cessam de crescer.
E a crise brasileira?
Tem circulado com angústia entre o ativismo e intelectuais de oposição a pergunta: por que, apesar de todo o desgaste nacional e internacional, Bolsonaro não cai? Mais que isso, por que sequer conseguimos desengavetar o impeachment? É evidente que a mobilização nas ruas faz toda a diferença e a pandemia impediu mobilizações mais cedo e mais massivas do que as recentes. Também é nítido que o controle do governo sobre o Congresso (ainda mais agora com o Centrão no Palácio do Planalto) dá a Bolsonaro um vetor de força poderoso, que contrabalança, pelo menos até agora, seu desprestígio e fricções com Judiciário, a mídia, governadores e partidos.
No entanto, mais uma vez, olhando para o andar de cima, estudando os passos da globalizada e experiente burguesia com pé no Brasil, é possível chegar perto da resposta. Tudo indica que, apesar de desgostosas com a condução da pandemia e da economia por Bolsonaro e seus militares, as parcelas mais importantes do capital ainda consideram (ou consideravam até agora) melhor para seus negócios a manutenção do atual governo até sua substituição via eleitoral, em 2022. As pressões internacionais sobre os temas ambientais ainda não afetam diretamente seus negócios. O impeachment ainda não lhes interessa.
Mas as disputas entre projetos, e as variáveis que daí resultam a cada momento, seguem intensas. De fato, escalaram nesta semana de agudização da crise institucional, com manifestações formais de parcelas do empresariado e da cúpula do Judiciário contra as investidas golpistas do presidente. São expressões dessa disputa “por cima” que aparecem, editorializadas, nas manchetes dos jornais deste 6 de agosto: “Fux se reúne com Aras e faz alerta sobre papel das instituições na crise com Bolsonaro, que volta a atacar o Supremo” (O Globo) ou “Fux cobra Aras para que PGR cumpra seu papel na investigação de denúncias” (O Estado de S. Paulo), “Chefes militares receberam 28 políticos, todos da base governista” (UOL) ou “Alto-Comando do Exército concorda com reação de Fux e teme cópia de atos golpistas dos EUA” (Folha de S. Paulo), “Bolsonaro repete ataques e diz que 'parte' do STF quer 'volta da corrupção” (O Tempo/Folhapress), “Fux parece ter aprendido que caso do Bolsonaro é de camisa de força”(Josias de Souza/UOL), ou ainda “Relator designado para parecer contrário ao voto impresso renúncia à função” (Terra).
Tanto os setores das classes dominantes como as instituições que condensam seu poder como classe abstrata (Legislativo, Judiciário, mídia, Forças Armadas) têm autonomia relativa e variável nos tempos da política. Mas todas elas têm que se mover na mesma teia de relações do "mercado" – e o mercado é global - e são condicionadas por ele. É, portanto, equivocado enxergar a crise do governo Bolsonaro apenas ou fundamentalmente da ótica da mobilização de massas ou de uma correlação de forças doméstica descolada do que se passa no planeta. Essa crise tem sido até agora essencialmente uma "crise dos de cima", com um forte componente internacional. Nessa ótica, como Lula não deixa de sinalizar, fazer Bolsonaro "sangrar" ou inabilitá-lo para 2022 pode ser muito mais vantajoso do que tirá-lo do governo.
Estamos em pleno desdobramento da crise, das movimentações para viabilizar um golpe, um contra-golpe ou eleições. Lula não é o candidato "da burguesia" para 2022, mas foi habilitado por uma parte dela e está se propondo a ser o candidato da sua parcela mais estratégica, isto é, da mais poderosa e globalizada dela (setores das finanças, agronegócio exportador, construtoras, indústrias internacionalizadas). Ele está, como Bolsonaro, se deslocando para catalisar o maior apoio possível, dentro e fora do Brasil. Lembremos que a “Carta aos Brasileiros”, de 2002, não foi lançada aos brasileiros, mas em Nova Iorque, para dialogar com os mesmos setores financeirizados que hoje estão conflagrados com Bolsonaro - embora em 2016 tenham apoiado o impeachment de Dilma.
Na política institucional (afinal estamos falando da gestão do estado) como nos negócios, os acordos e os preços variam conforme a ocasião. A lumpemburguesia do garimpo, da extração madeireira, das empresas de segurança, da rapinagem do trabalho precário segue entusiasmada com Bolsonaro, assim como que parece ser maioria da classe média proprietária. Mas como estão se movendo e como podem se mover os empresários cujas ações são negociadas na Bolsa de Nova Iorque? Como vão se mover as Forças Armadas como instituição diante da proposta do governo Biden de incluir o Brasil (leiam-se os militares brasileiros) na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em troca de que o governo Bolsonaro barre a chinesa Huwaei da disputa do 5G no país? Que novas sarnas para se coçar encontrarão Bolsonaro e militares se topam o acordo, diante de setores empresariais com interesses extremamente entrelaçados aos da China? (Basta lembrar a dependência dos exportadores das importações da China e a enorme participação de empresas chinesas no estratégico setor elétrico.) [2]
Queremos que esta não seja apenas uma "crise dos de cima". Buscamos que os "de baixo" não aceitem mais esta situação e expressem seu descontentamento, e que os "do meio" oscilem em direção aos "de baixo". Sabemos que crises “por cima” podem ser solucionadas por negociações por cima, ignorando as regras do jogo liberal, se interesses fundamentais - dependendo da correlação de forças - forem contrariados. E se há uma coisa que as classes dominantes brasileiras não têm é apego às "regras do jogo". Mas estes processos traumáticos também perturbam o “ambiente de negócios”. As mobilizações organizadas pelas esquerdas são um componente central do deslocamento social e político de forças. Mas um processo com o objetivo de promover o impeachment do governo Bolsonaro - ou outra saída, como a inabilitação dele como candidato para 2022 - só se consolida com uma onda de descontentamento social que ultrapasse qualquer mobilização organizada e fuja do controle dos “de cima” (e às vezes também dos candidatos a dirigentes populares). E essas ondas ou explosões de descontetamento vêm se multiplicando pelo mundo afora nos últimos dois anos, pelo menos.
Essa visão, é bem verdade, não resolve de antemão o problema do projeto alternativo de uma esquerda antissistêmica, sem a qual os deslocamentos políticos continuam se dando de forma a poderem ser recuperados pelo capital. Acompanhando o que fazem Biden, a Comissão Europeia e Xi Jinping, percebemos que distintos segmentos das burguesias globalistas estão se movendo muito mais rapidamente do que as forças politicamente antissistêmicas no diagnóstico da situação e em encaminhar mudanças (dentro do capitalismo).
Mas atuando dentro das fronteiras de um país campeão de desigualdade, flagelado pela recessão, doença, desemprego e fome crescentes é sempre possível, além de necessário, avançar na luta material e ideológica para reduzir e quem sabe ultrapassar essa defasagem por outra sociedade. Sim, os tempos nos exigem trabalhar com essa contradição evidente - uma luta na arena nacional sobre a base de determinantes globais e domésticas. Com os pés fincados nos territórios e espaços em que vivem e atuam os agentes sociais da mudança, a esquerda precisa partir da compreensão da realidade global e suas refrações sobre a política nacional, para não se perder nos emaranhados táticos limitantes de uma situação brasileira que há muito já deixou se ser meramente nacional. Só desse jeito será capaz de dar respostas à altura das necessidades populares, estas sim inapelavelmente alinhadas com o mundo real globalizado e turbulento.
[1] Estes últimos têmdiferenças frente às correntes, também chamadas jornalisticamente deprogressistas, que, para responder à radicalidade de seus povos mobilizados,foram empurradas a desafiar alguns pressupostos neoliberais, avançando pararetomar políticas estatizantes e desenvolvimentistas – como o chavismo e o MASboliviano.
[2] De la Coleta, Ricardo e Vargas, Matheus, “Por veto a Huawei, EUA acenam com parceria militar do Brasil na Otan”, Folha de S. Paulo,5/8/2021: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/08/por-veto-a-huawei-eua-acenam-com-parceria-militar-do-brasil-na-otan.shtml