Ana Carvalhaes, publicado originalmente na Jacobin Latinoamérica, em 16/11/2020
Embora tradicionalmente rápida e eficiente, a contagem eletrônica dos votos nas eleições municipais de domingo, no Brasil, ficou paralisada em mais de três horas e meia. O susto não impediu que as tendências gerais do eleitorado ficassem claras antes da meia-noite, no mais importante termômetro do humor do povo desde a trágica eleição de 2018, que levou Bolsonaro ao poder.
Os maiores perdedores do dia, não há dúvida até mesmo entre seus seguidores, são o presidente da extrema-direita e a própria extrema-direita - algo que já poderia ser previsto devido à crescente rejeição de seu governo por parte da população das grandes cidades. Sete prefeitos da capital foram eleitos no primeiro turno, em Florianópolis e Curitiba, no Sul; Belo Horizonte, no Sudeste; Salvador e Natal, no Nordeste; Campo Grande e Palmas, no Centro-Oeste - todos de partidos e perfis pessoais bastante distantes à direita, mas nenhum deles apoiado diretamente pelo presidente e seus filhos. Dos mais de 70 candidatos que adotaram o sobrenome Bolsonaro, apostando numa repetição de 2018, apenas um – o 02 – foi reeleito no Rio de Janeiro.
Das 27 capitais (25, menos Brasília, Distrito Federal, que não tem prefeito; e a cidade amazônica de Macapá, que foi atingida por uma crise de abastecimento de energia há 20 dias), apenas candidatos de 18 capitais vão para o segundo turno no dia 29. E neles há apenas três com perfil semelhante ou diretamente identificados com o campo político do presidente neofascista: em Fortaleza (Ceará, Nordeste, o Capitão Wagner), em Vitória (Espírito Santo, Sudeste, o Delegado Pazolini) e no Rio de Janeiro, onde o atual prefeito Marcelo Crivella - que é o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus - está tentando ser reeleito. As apostas, baseadas no desempenho dos candidatos no domingo 15, indicam que o único com possibilidades é Pazolini.
Qual foi o recado?
Assim que os números finais saíram dos computadores do Tribunal Superior Eleitoral, jornalistas, cientistas e políticos já estavam debatendo qual teria sido a principal mensagem das urnas. É claro que não houve nenhum giro do eleitorado para novos personagens ou para programas contestadores do status quo. A observação mais sensata é que, no conflito aberto em março por Bolsonaro com governadores e prefeitos sobre o tratamento da pandemia – que já matou 165 mil brasileiros e contaminou mais de 5 milhões – o governo federal levou uma surra. Pode-se dizer que o Brasil se realinhou da extrema direita para a direita mais tradicional, fisiológica e igualmente neoliberal (do chamado Centrão), e que a esquerda, embora dividida, mostrou que está bem viva e com futuro.
Foram eleitas ou foram para o segundo turno figuras de direita que tiveram uma política pró-ciência, com algumas medidas de fechamento de atividades, tais como escolas e academias (o Brasil não tinha fechamento a qualquer momento em qualquer lugar), ordens de uso de máscaras e distanciamento social - medidas contra as quais o presidente lutou duramente, com ameaças de judicialização, notícias falsas, demissão de ministros e muitos discursos de baixo nível.
Constatar esse novo quadro não significa para nada que o bolsonarismo esteja morto e que não possa se recuperar, inclusive – tendo em vista que não foi derrotado no conflito direto com setores explorados e oprimidos, mas por ora somente nas pesquisas, no prestígio/confiabilidade e nas urnas. Mas é bom lembrar que, duas semanas antes, o governo já havia sofrido um revés fortíssimo, com a derrota do chefe Donald Trump nos Estados Unidos. Desprovido de seu modelo político-ideológico e apoio externo fundamental, e agora diante do êxito eleitoral do Centrão (que de centro não tem nada), resta a Bolsonaro e seu núcleo duro, em particular a mal chamada “ala ideológica”, um caminho de maior submissão ao setor militar (não menos ideológico) e a composição com essas oligarquias e representantes políticos sistêmicos – caminho que não agrada sua base fanática.
A oposição e a esquerda
Se o cenário político-institucional não muda radicalmente, os grupos mais radicais do bolsonarismoi saem bem prejudicados. A oposição a Bolsonaro não teve uma vitória estrondosa como a dos representantes do Centrão, mas consegue um resultado razoável, no contexto de uma situação política muito reacionária, a sobrevivência de um anti-pestismo/anti-esquerda muito enraizado entre os setores da classe média proprietária (com o discurso da corrupção nos anos petistas) e entre os mais pobres, sob a influência das igrejas neopentecostais amigas do presidente.
Em nove das 18 capitais com segundo turno, um candidato da oposição está competindo - três do PSB (partido burguês-oligárquico mais ao centro do que à esquerda), em Recife e Maceió (NE) e Rio Branco (N, Amazônia). Em duas importantes capitais, o PSOL chegou ao segundo turno (São Paulo e Belém Amazônica). Duas candidaturas são do PT, em Vitória (Espírito Santo) e Recife; e duas são do Partido Democrata do Trabalho (PDT, hoje dominado pelo ex-ministro Ciro Gomes), em Fortaleza e Aracaju (Nordeste). Em Porto Alegre, a jovem candidata ao PCdoB Manuela D'Ávila chega ao segundo turno. A Rede Sustentabilidade (Rede Sustentabilidade, de Marina Silva) não conseguiu a proeza.
Nas 25 maiores cidades (das 55 que terão segundo turno), o PT elegeu 48 vereadoras, das quais 22 são mulheres. O PCdoB obteve vereanças em seis cidades. O PSOL elegeu vereadores/as em 11 das 25 maiores cidades, num total de 33 eleitas, entre as quais 17 mulheres, a maioria negra e as duas primeiras trans - a candidata mais votada de Aracaju, Linda Brasil; e a trans negra Beny Brioli, de Niterói (RJ), além de dois vereadores abertamente eco-socialistas. O PSOL também atinge cinco prefeituras de pequenas cidades: Ribas do Rio Pardo (MS), Potengi (CE), Janduís (RN) e Marabá Paulista (SP).
Mas a coisa mais "surpreendente" para a mídia corporativa, as direitas e o capital em geral foi o sucesso do PSOL na maior cidade do país. Depois de se juntar ao partido em 2018, para concorrer à Presidência, o ativista e líder do Movimento dos Sem Teto (MTST) Guilherme Boulos, acompanhado pela ex-prefeita Luíza Erundina, saiu de pouco mais de 4% das intenções de voto, em setembro, para alcançar mais de 20% e chegar à segunda etapa - na qual enfrentará o atual prefeito Bruno Covas (PSDB), que está próximo do governador de direita João Doria. Na capital paulista, o grupo parlamentar psolista saltou de 2 para 7 vereadores.
Infelizmente para o PSOL e toda a esquerda, o Rio de Janeiro, a segunda capital do país, viveu um cenário eleitoral bastante diferente e vai decidir em 29/11 entre o bolsonarista e o prefeito neopentecostal, Marcelo Crivella, por um lado, e o ex-prefeito do antigo e corrupto MDB, Eduardo Paes, por outro. Com um grande e tradicional espaço político na cidade, o PSOL não pode contar com a óbvia candidatura do agora deputado federal Marcelo Freixo - que desistiu de concorrer em maio, com o argumento de que, diante da impossibilidade de unir toda a oposição sob seu nome e com o PSOL, em uma só frente, não seria possível vencer. Mesmo assim, a jovem deputada estadual Renata Souza representou com entusiasmo o partido e ajudou a garantir aos 7 conselheiros que o partido elegeu ou reeleito.
Haverá uma frente de esquerda em 2022?
A idéia de diversificar a representação política ganhou força à esquerda. E o PSOL foi o maior beneficiário disso. Como a BBC Brasil destacou, houve uma busca geral de renovação em todos os sentidos - Boulos, 38, e Manuela, 39, são a expressão máxima do fenômeno**.
Na verdade, na ponta do lápis, a esquerda em um sentido menos amplo (sem a centro-esquerda burguesa de PDT e PSB) regrediu um pouco na representação parlamentar (devido à queda numérica de vereadores do PT e PCdoB, veja quadro). O PSOL é o partido que mais avançou. Teremos que tirar lições disso.
É muito provável que o chamado eleitorado progressista, com preocupações sociais, ambientais, anti-racistas e feministas, nos próximos anos, se una em torno de uma identidade frontalmente anti-bolsonarista e coloque ainda mais pressão sobre a esquerda (PSOL, PT, PCdoB) para tentar seriamente alianças eleitorais viáveis para derrotar toda a direita. A ausência da esquerda no segundo turno no Rio reforça a tese, embora seja necessário superar a parte mais difícil: a recusa de Lula e uma grande parte da liderança do PT em negociar alianças sem sua hegemonia (hoje bastante contestada).
É igualmente importante, entretanto, que os pequenos e grandes sucessos e vitórias desta difícil campanha sejam, para a esquerda e o ativismo no Brasil, como gotas de chuva que fertilizam a terra, reanimando o povo para as lutas de resistência aos planos de Bolsonaro, dos governadores e prefeitos de direita neoliberal. Que a pressão pela unidade da esquerda seja principalmente a partir de baixo, nos movimentos sociais e nas comunidades, para que consigamos a força necessária para derrotar o genocida nas ruas.
(*) Devido à legislação eleitoral brasileira, as cidades com 200 mil ou mais habitantes têm direito a realizar segundo turno caso o mais votado não tenha obtido mais de 50% dos votos válidos. Este ano seriam 95, mas em 41 o primeiro colocado obteve mais de 50% dos votos. Assim, há 54 com o segundo turno em 2020.
(**) "Ida de Boulos ao 2º turno em São Paulo sinaliza avanço de esquerda jovem pelo país”, in BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54954586