Partidos tentam impedir desfile militar na Praça dos Três Poderes, enquanto Marinha diz que evento já estava planejado. Segundo presidente da Câmara, votação pode ser adiada caso os deputados desejem
Afonso Benites, El País Brasil, 9 de agosto de 2021
Sem votos para evitar a iminente derrota da PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados, o presidente Jair Bolsonaro resolveu apelar para tanques de guerra. E, para que sua estratégia funcione, eles não precisarão disparar um tiro sequer. O mandatário recebe na Esplanada dos Ministérios na manhã desta terça-feira um desfile de 14 blindados da Marinha, que estão a caminho de um exercício militar nas proximidades de Brasília, em Formosa (GO). Sem força para derrubar o projeto no Legislativo, Bolsonaro se refugia mais uma vez no simbolismo. Os militares estariam ao seu lado, contra tudo e contra todos —e junto, claro, dos políticos profissionais do Centrão. O presidente mina mais uma vez a legitimidade das instituições, que voltaram a responder nesta segunda-feira: o Tribunal Superior eleitoral (TSE) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma notícia-crime contra o presidente por divulgação de dados sigilosos
A manobra diversionista do presidente, mais uma para sua infindável coleção, gerou uma série de repercussões ao longo do dia. Partidos políticos e congressistas protestaram e recorreram ao STF para impedir que os militares façam o desfile na região que concentra os três Poderes no dia em que o projeto criado para animar a militância bolsonarista estará em votação. A proposta em análise foi apresentada pela deputada governista Bia Kicis (PSL-DF). Rejeitada na Comissão Especial que tratava do assunto, ela será levada ao plenário por uma decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Indagado nesta segunda sobre sua avaliação sobre o desfile, Lira disse que parecia se tratar de uma “coincidência trágica”. “A coincidência trágica da agenda da Câmara com a passagem dos blindados para Formosa, realmente, apimenta esse momento [de polarização do Brasil]”, disse em entrevista ao portal O Antagonista. Durante a entrevista, o presidente da Câmara diz que “se os deputados quiserem e a população achar que é conveniente, a gente pode adiar a votação”. Lira disse ainda que os políticos eleitos pelo atual sistema eleitoral não deveriam questionar a urna eletrônica. “Nós, que fomos e somos eleitos por ela, não podemos estar questionando um sistema que funciona e até hoje não houve maiores esclarecimentos sobre fraudes.”
Em nota, a Marinha disse que a entrega do convite ao presidente Bolsonaro e ao ministro da Defesa, Walter Braga Netto, “foi planejada antes da agenda para a votação da PEC 135/2019 no Plenário da Câmara dos Deputados, não possuindo relação com a mesma, ou qualquer outro ato em curso nos Poderes da República”. Estarão envolvidas no desfile 150 viaturas, mas apenas “algumas das principais” delas farão o caminho até o Palácio do Planalto, diz a mesma nota, afastando os receios de que a mobilização militar tenha como objetivo pressionar ou constranger os congressistas. A mensagem da Marinha não teve força, contudo, para conter os ânimos provocados pelo anúncio da manobra militar em Brasília.
“O último presidente que inventou ficar passeando de tanque terminou mal o governo e foi preso: Alberto Fujimori, no Peru”, criticou o deputado e ex-presidenfe da Câmara Rodrigo Maia (sem partido-RJ). “Tanques na rua, exatamente no dia da votação da PEC do voto impresso, passou do simbolismo à intimidação real, clara, indevida, inconstitucional”, reforçou o coro a senadora Simone Tebet (MDB-MS), completando: “Se acontecer, só cabe à CD [Câmara dos deputados] rejeitar a PEC, em resposta clara e objetiva de que vivemos numa democracia e que assim permaneceremos”. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), disse que, caso o ato se trate de uma tentativa de intimidação, “aprenderão a lição de que um Parlamento independente e ciente das suas responsabilidades constitucionais é mais forte que tanques nas ruas”.
Enquanto a Marinha botava panos quentes, o presidente provocava em seu perfil no Facebook. Na mensagem em que convidava os chefes de instituições como STF, Senado e Tribunal de Contas da União para acompanhar o evento, Bolsonaro assinou como “Chefe Supremo das Forças Armadas”.
Ainda que os veículos militares não percorressem as ruas da capital federal na manhã de terça-feira, como se aventou ao longo desta segunda, o efeito do desfile já estaria posto. Tanto a esperada derrubada da PEC do voto impresso quanto a presença de tanques militares no coração do poder reforçam a imagem do antissistema que Bolsonaro ainda projeta para seus apoiadores. E, a tudo isso, somam-se os recentes ataques e xingamentos feitos contra dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Assim como a desconfiança alimentada sobre o processo eleitoral, esses símbolos ajudam a manter a militância mobilizada.
“Bolsonaro vai poder alimentar a narrativa de que enfrentou o status quo, mas que infelizmente não permitiram que ele fizesse o que ele gostaria. Da mesma maneira que ocorre na crise sanitária do coronavírus, sobre a qual ele atribui ao STF a culpa pelos seus erros”, avalia o cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria Vector Relações Governamentais. “O que Bolsonaro faz é diversionismo, mas também é uma ação para enfraquecer a legitimidade do sistema político brasileiro, acrescenta a professora Flávia Biroli, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Na visão de Biroli, a presença ostensiva de militares em um ato na capital federal se trata de mais uma das indicações de que eles estão dispostos a participar de um espetáculo ao lado do presidente, ainda que um ou outro representante do Alto Comando reforce o discurso de que os militares estarão sempre ao lado do Estado Democrático. “Há conflitos entre os militares, mas não tenho esperança de que por ali venha uma oposição ao Bolsonaro.”
Entre líderes partidários e analistas que acompanham o cotidiano de Brasília, há a sensação de que o voto impresso era uma espécie de bode na sala colocado por Bolsonaro e Lira. Algo que acaba desviando a atenção do que realmente interessa: a reforma eleitoral que tramita na Câmara. É a maior mudança desde a redemocratização do país, uma espécie de mudança do código fonte do sistema político. Enquanto Brasília aguardava a chegada dos tanques, uma comissão especial da Câmara aprovava por 22 votos a 11, a comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o relatório da deputada Renata Abreu (Pode-SP) para a PEC 125/11, que altera as regras eleitorais.
As propostas incluídas no relatório, e que ainda serão analisadas e votadas em plenário, preveem, dentre outros, o enfraquecimento da Justiça Eleitoral, a não criminalização de delitos como boca de urna, a permissão para que candidatos condenados judicialmente disputem as eleições, o desincentivo às atuais políticas de cotas para financiamentos de candidaturas femininas e de negros, assim como a implantação do distritão —que prevê a eleição apenas dos deputados que forem os mais votados, ignorando os votos proporcionais, dados à chapa ou diretamente aos partidos. “É uma eleição para a manutenção de quem já está no poder. Serve apenas aos atuais líderes partidários”, explica Fabro Steibel, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
Notícia-crime contra Bolsonaro
Os contra-ataques a Bolsonaro têm partido, quase que exclusivamente, do TSE. Nesta segunda-feira, a corte informou que apresentou uma notícia-crime contra o presidente para que ele seja investigado pela divulgação de dados sigilosos contidos no inquérito da Polícia Federal que apura um ataque hacker sofrido pela corte em 2018. Os sete ministros afirmaram que o presidente e o deputado Filipe Barros (PSL-PR) podem ser enquadrados no artigo 153 do Código Penal, pelo crime de divulgação de segredo.
Nas suas redes sociais, Bolsonaro e Barros disseram, sem provas, que as eleições de 2018 haviam sido fraudadas. Na visão dos ministros do TSE, ambos tiveram “o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito”. Na semana passada, o TSE já havia aberto um inquérito administrativo e pedido a inclusão do presidente no inquérito das fake news.