Ignacio Fariza, El País Brasil, 11 de maio de 2021
Finalmente uma boa notícia, algo razoavelmente sólido a que se agarrar. A pandemia cobrou um preço particularmente caro na América Latina: na saúde, com uma das taxas mais altas do mundo de mortalidade na população; e na economia, com uma das recessões mais duras e uma das recuperações mais lentas. Hoje, porém, o sul da região tem em vista uma surpresa positiva: uma gama cada vez maior de matérias-primas, incluindo cobre e soja, ultrapassou nas últimas semanas as cotações de antes da pandemia, abrindo uma rota de fuga inesperada para a crise. Os desafios são enormes, mas as coisas, enfim, parecem um pouco melhores do que há alguns meses.
O rápido retorno à atividade normal na China e a recuperação dos EUA em decorrência dos estímulos introduzidos pelo Governo Joe Biden sacudiram o pessimismo mundial. Os planos musculosos de investimento em infraestrutura aumentaram substancialmente as expectativas de consumo de alimentos e metais. E os gargalos nas cadeias produtivas desses produtos, pressionados por duas grandes tempestades em um curto espaço de tempo —primeiro foram os confinamentos, mas a última gota foi o recente colapso do Canal de Suez—, complicaram o quadro, desencadeando uma escalada de inflação nas matérias-primas sem precedentes na última década.
“É um claro elemento de otimismo”, afirma a titular da Secretaria-Geral Ibero-Americana, Rebeca Grynspan, que prevê a revisão para cima nas projeções de crescimento para toda a América Latina e, em particular, para a parte mais ao sul. “Mas o ponto de partida é muito pior do que no superciclo de 10 anos atrás: a pobreza aumentou, os déficits fiscais são mais altos e o endividamento, maior”, alerta. Os dados são claros: o coronavírus levou a pobreza na enorme extensão de terra entre o Rio Grande e Ushuaia para indicadores de 12 anos atrás, enquanto a escassez extrema recuou para níveis de duas décadas atrás. E o Fundo Monetário Internacional (FMI) acredita que a renda per capita não retornará aos níveis anteriores à crise no mínimo até 2024. Com ou sem o aumento de preço das matérias-primas.
Da dependência como lastro para capitalizar a ascensão
O mergulho no abismo dos preços dos produtos básicos na pior parte da pandemia foi a gota d’água para algumas economias, as sul-americanas, paralisadas pelas restrições para conter a disseminação do vírus. O petróleo, uma figura de proa, chegou a ter cotações negativas, ou seja, os investidores pagavam para se livrar dos barris em razão da impossibilidade de estocar mais em depósitos lotados; os metais despencaram por causa da parada repentina na demanda; e apenas os alimentos aguentavam os preço, por se tratar de produtos de primeira necessidade.
Um ano depois, tudo isso parece distante, remoto, quase passado. As economias da região ainda sofrem as consequências da paralisação, mas o mercado de matérias-primas —como as Bolsas e os títulos — deu um giro de 180 graus. E, com ele, as expectativas dos países mais dependentes da América do Sul: Chile, Peru e Bolívia, impulsionados pelo cobre e o lítio; e Brasil e Argentina, titãs globais do agronegócio.
Toda a América Latina, mas especialmente o Cone Sul, há anos tenta superar —sem muito sucesso— sua perene subordinação às commodities e a progressiva reprimarização de suas economias.
No entanto, quando o vento sopra a favor, como agora, a maldição se torna uma bênção: a soja, de longe o produto mais exportado pelas duas maiores economias sul-americanas, quase teve seu preço duplicado nos últimos 12 meses no calor da maior demanda asiática e de choques pontuais de oferta, como as secas. O cobre trafega em uma zona de altas históricas. E o ferro, segunda maior fonte de renda do Brasil, acaba de ultrapassá-las.
Os anos dourados: sem vestígios do superciclo
Passou pouco mais de uma década desde aqueles anos dourados em que o petróleo era negociado a três dígitos, a soja triplicava de valor em apenas cinco anos e o cobre o quintuplicava em tempo recorde. Daí que o paralelismo entre o recente surto de demanda dos materiais básicos e aquele seja tentador. Tanto quanto irrealista: apenas um em uma dezena de economistas consultados pelo EL PAÍS se atreve a falar de um superciclo como aquele que deu uma arrancada na economia sul-americana e permitiu a maior melhoria nos indicadores sociais desde que há registros. O boom de hoje, eles acrescentam, tem mais conotações de transitório do que estrutural.
“Não esperávamos por isso, é muito positivo. Mas há tanta incerteza sobre se vai sustentar-se ou não ao longo do tempo que acho necessário optar por um olhar prudente. Não se pode falar em superciclo”, sentencia por telefone Martín Castellano, economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais para a América Latina. “Tenho a impressão de que pesam, sobretudo, fatores conjunturais como a busca de proteção contra a inflação por parte de muitos investidores. Antes compravam ouro e agora apostaram em outras matérias-primas”, completa José Luis Machinea, ex-presidente do Banco Central da República e ex-ministro da Economia da Argentina.
Entre o superciclo, o ciclo e o miniciclo, as apostas se voltam pais para o terceiro. “Depois de dois ou três anos, será muito difícil continuarem crescendo porque o PIB mundial não se expandirá como nos anos 2000, quando a China se tornou a potência que é hoje”, diz Marcos Casarin, chefe de análises sobre a região para a consultoria Oxford Economics. Nem o chefe do FMI para o Hemisfério Ocidental, Alejandro Werner, vê sinais de um aumento duradouro nas commodities. “Seria muito otimista pensar de outra forma e isso evitará um choque de crescimento como o que vimos entre 2003 e 2014”, diz Werner. Pelos seus cálculos, a cada 10% de melhoria nos termos do intercâmbio, as economias sul-americanas crescerão entre um e dois pontos a mais em três anos.
Os minérios ‘verdes’ tomam o lugar do petróleo bruto
O petróleo foi o fator-chave no último ciclo de alta das matérias-primas. Desta vez, porém, a história parece bem diferente: desde o abismo de abril, sua recuperação tem sido mais rápida do que o esperado, mas sem comparação com a daquela época. “A grande diferença entre os dois episódios é o petróleo bruto, que não está acompanhando o aumento dos preços de alguns minérios e alimentos. E isso impedirá que os países produtores de petróleo compartilhem o impulso na economia”, explica Werner.
Os tempos mudaram. Com os carros a combustão prejudicados pelas guinadas verdes dos Governos para cumprir as metas climáticas, o petróleo caiu em desgraça, mal sustentado pelos cortes de oferta da Opep. Ainda tem mais alguns anos de domínio na matriz energética global, mas cada dia que passa é um a menos em direção ao tão esperado mundo pós-petroleiro.
Essa mudança de era já está deixando sua marca no mapa geoeconômico latino-americano: os grandes exportadores de petróleo —Venezuela, México, Colômbia, Equador—, que viveram dias de vinho e rosas com o barril acima de 100 dólares (522 reais), dificilmente poderão tirar proveito do retorno à vida das commodities.
O outro lado da moeda é o cobre e o lítio. O primeiro é essencial na indústria de painéis solares e na linha de montagem de carros elétricos, entre outros. O segundo, fundamental para as baterias. E a oferta mundial de ambos passa, em grande parte, por quatro países sul-americanos, que saem ganhando em um cenário de alta de preços como o atual: Chile, Peru e, em menor medida, Bolívia e Argentina.
Chile: lição aprendida?
O aumento projetado no consumo mundial de cobre excede em muito a expectativa de expansão da oferta. Um déficit que está em vias de ser estrutural e que é um atrativo ainda maior para os interesses chilenos, país que sozinho contribui com quase uma em cada três toneladas consumidas a cada ano no mundo.
Mas o Chile também é, quase certamente, a nação mais consciente na América Latina da efemeridade que esses processos podem ter: após o último grande aumento do preço do cobre, há 15 anos, as decisões de investimento foram feitas à luz das projeções de preços de curto prazo e a onda de novos projetos extrativistas acabou matando temporariamente a galinha dos ovos de ouro. Quando o preço começou a cair, em 2014, a indústria chilena do cobre teve que lidar com a pior equação possível: projetos de construção superdimensionados, com altos custos associados e baixos valores de venda.
Essa é a lição deixada por aqueles anos em que, por alguns momentos, a festa do setor extrativista parecia não ter fim. E parece bem aprendida. As empresas produtoras apostam na cautela em suas decisões de investimento e novos projetos só verão a luz do dia se dois requisitos forem atendidos: que sejam competitivos em termos de custos e que haja clareza na trajetória dos preços no longo prazo.
O perigo da inflação
O aumento dos preços das matérias-primas permitirá “uma aterrissagem menos difícil no setor fiscal e na dívida”, diz Nora Lustig, professora da Universidade de Tulane (Nova Orleans, EUA) e presidenta emérita da Associação de Economia da América Latina e do Caribe (Lacea). “Dará mais margem de manobra para manter uma política fiscal menos restritiva e isso é muito importante em plena saída da pandemia”, explica. Com os cofres públicos sob enorme pressão, os países do bloco se dispõem, antes de mais nada, a arrumar as contas. “Uma coisa é certa: mais dinheiro do que o esperado entrará nos cofres públicos e os Governos vão ganhar tempo antes de ter que fazer ajustes”, completa Casarin, da Oxford Economics.
O reverso é a inflação. O petróleo, componente que mais afeta os preços, subiu menos que o resto. Mas subiu. E os alimentos, outro item crucial —especialmente nas cestas básicas das camadas mais pobres da população, as mais atingidas pela crise— explodiram. A ascensão do custo da tortilha de milho, alimento por excelência no México e em vários países da América Central —que pouco tiram proveito da melhoria no que se refere ao intercâmbio—, é o melhor exemplo de como esse fenômeno pode pesar no bolso dos mais pobres.
No Brasil, a inflação acumulada até abril de 2021 atingiu 6,76%, implicando em variações nos preços de produtos farmacêuticos, de higiene pessoal e também no de alimentos. O caso mais emblemático é o do preço das carnes, que no último ano, acumulou uma alta de 35,05% em decorrência do aumento dos custos com a ração animal — produzida basicamente com commodities, como a soja e o milho.
América Central e Caribe, fora da festa
A linha divisória para esse novo boom das commodities é o Panamá: boas notícias ao sul, muito menos boas ao norte. Todos os países sul-americanos —”sem exceção”, enfatiza Alicia Bárcena, secretária-executiva da Cepal, braço da ONU para o desenvolvimento da América Latina e do Caribe— são exportadores líquidos e o aumento dos preços vem a calhar. O oposto ocorre na América Central, importadora líquida de produtos primários, com um punhado de exceções: Costa Rica, Honduras, Nicarágua, Panamá. Para essa sub-região, o vento a favor vem de um fator totalmente alheio às matérias-primas: a melhora da economia dos Estados Unidos, que vai dar impulso às remessas dos emigrantes.
A alta dos preços dos alimentos e dos minérios também será ruim para o Caribe, uma das zonas mais prejudicadas no mundo pela paralisação do turismo. “Será afetado negativamente nos seus termos de troca”, explica Bárcena. As exceções a essa regra se contam nos dedos de uma mão: Guiana (protagonista do último milagre petroleiro no mundo), Suriname (rico em ouro) e Trinidad e Tobago (que exporta gás e petróleo bruto), os três únicos vendedores líquidos de bens primários.
No México, já na América do Norte, a retomada econômica será mais sustentada por sua conexão industrial com a maior potência mundial do que pela recuperação dos produtos básicos. Mas o aumento do preço do petróleo e dos minerais não lhe cairá mal, pelo contrário, é um dado positivo a mais.
Festa na Bolsa de Rosário
É o produto estrela da Argentina, responsável por um de cada quatro dólares que vem com as exportações. Para o terceiro maior produtor de soja do mundo, com 16% do mercado, atrás do Brasil (35%) e dos Estados Unidos (33%), seu encarecimento é uma boa notícia, sem dúvida. No limiar dos 590 dólares (3.080 reais) por tonelada, seu maior valor em oito anos e meio e quase o dobro dos 300 dólares exibidos nas lousas do pregão em Chicago em maio do ano passado, e com o milho —segundo lugar na pauta de exportações argentinas—, que também dobrou seu preço, a Argentina vai exportar grãos este ano no valor de 34,4 bilhões de dólares (180 bilhões de reais), 8,1 bilhões de dólares a mais do que na temporada anterior, segundo a Fundação Mediterrâneo.
A Bolsa de Cereais de Rosário, o maior conglomerado agroexportador do planeta, faturou 5 bilhões de dólares (26 bilhões de reais) entre janeiro e março apenas com a venda de farinha, óleo e soja, segundo informou. Como todos os anos, a China ficou com 90% da produção nacional e, se a receita em dólares não acabar sendo ainda maior, será apenas por causa da seca. Um fator que prejudica, no que se refere ao volume, mas eleva os preços: parte da alta recente tem a ver com a escassez de chuvas em Buenos Aires, Santa Fé e sul de Córdoba, regiões que concentram o grosso da safra.
A segunda economia sul-americana necessita urgentemente do influxo de divisas. Sem o crédito internacional, o Governo de Alberto Fernández cobre o vermelho fiscal, que em 2020 disparou para 8,5% do PIB, imprimindo moeda. Essa expansão monetária tornou estéreis os esforços para conter a inflação, e a conjuntura deixa as exportações como a única alternativa possível para endireitar o curso.
Uma outra consequência na Argentino da alta dos preços das matérias-primas: cada alta provoca o recrudescimento das tensões entre o Governo e os produtores, pois o Estado fica com 37% da receita das exportações de soja, cifra que o campo considera excessiva.
O agronegócio brasileiro volta a apitar
A recuperação das commodities assumiu um protagonismo especial na análise de especialistas financeiros que orientam via YouTube milhões de pequenos investidores que tentam a sorte na bolsa de valores. Alex Agostini, analista-chefe da Austin Rating, é um dos poucos que acreditam que estamos no início de um novo superciclo de commodities, tendo em vista a disparada dos preços: “É uma loucura”.
No Brasil, potência exportadora e líder mundial na comercialização de soja, as expectativas são grandes. Com esses novos preços (graças também a um real muito desvalorizado), os grandes traders do setor estão monitorando os produtores brasileiros com advogados e drones para garantir que cumpram os contratos firmados há um ano.
Felippe Serigati, da Fundação Getúlio Vargas, avalia —como a maioria— que este boom não será tão intenso nem prolongado como o da primeira década dos anos 2000. “A atual subida se explica porque os estoques mundiais de milho, soja e trigo estão muito baixos, mas não tão baixos como vimos em 2007 -2008: só a soja está naqueles níveis.” Tampouco está presente um fator que então contribuiu para fazer pender a balança: a entrada da China na OMC. “Vemos uma demanda adicional de atores já instalados, não a entrada de um novo, como ocorreu então, e que impactou como um meteorito o comércio mundial.”
Agostini prevê que o boom atual beneficiará setores como o agronegócio e a mineração, muito importantes no tecido econômico brasileiro. Mas essa bonança, explica Serigati, dificilmente se estenderá à população em geral. Os tempos de superávits, subsídios e créditos em abundância acabaram. Estes, como no restante da região, ainda são marcadas pelas dificuldades fiscais e o desemprego.
Com informações de Naiara Galarraga Gortázar (São Paulo), Federico Rivas Molina (Buenos Aires) e Rocío Montes (Santiago do Chile).