Asfaltamento da rodovia vai acelerar degradação socioambiental em região que quebra recordes de desmatamento na Amazônia.
Murilo Pajolla, Brasil de Fato, 28 de julho de 2021
O sul do Amazonas, perto da fronteira com Rondônia, é uma das áreas mais preservadas da Floresta Amazônica. A região, entretanto, passa por uma rápida e intensa marcha de degradação ambiental e tem os maiores índices de devastação do país.
Mesmo com metade dos quase 900 quilômetros sem asfalto, um dos principais vetores do desmatamento é a BR-319, construída na década de 70 no âmbito do Projeto de Integração Nacional (PIN) do general Emílio Garrastazu Médici, com o objetivo de conectar Manaus a Porto Velho e ao restante do país.
Sem exigir estudo de impacto ambiental, a Justiça Federal liberou em abril a reconstrução do segmento conhecido como "lote C", de 52 quilômetros.
Agora o governo federal tenta apressar a pavimentação de outros 405 quilômetros do chamado “trecho do meio”, o maior e mais devastador em termos de impactos socioambientais.
Seguindo o caminho da ditadura militar, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ignora os “buracos” do emperrado processo de licenciamento ambiental da BR-319, atropelando direitos humanos de indígenas e comunidades tradicionais.
Carro na frente dos bois
Situado entre os quilômetros 198 e 250 da BR-319, o "lote C" já começou a receber os primeiros maquinários para a obra.
Mas a autorização dada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) não é válida para o "trecho do meio", entre os quilômetros 250 ao 655, alvo da maior preocupação de pesquisadores.
Embora esteja longe de obter permissão para começar a pavimentação do "trecho do meio", o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), ligado ao Ministério da Infraestrutura, confirmou ao Brasil de Fato que a reconstrução do segmento vai começar já em 2022, conforme anunciado anteriormente.
“É preocupante o anúncio do asfaltamento antes mesmo do processo de licenciamento ambiental ser finalizado. Nós vemos isso como uma grande pressão nos órgãos de licenciamento para que essa obra saia. Mas as etapas precisam ser cumpridas”.
A avaliação é da ecóloga Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório da BR-319, um coletivo de organizações da sociedade civil criado para monitorar e divulgar informações relevantes sobre a área de influência da estrada.
Em uma rede social, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, prometeu que a estrada "vai se tornar referência em sustentabilidade", mas há poucas atitudes concretas nesse sentido.
Desde 2007, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já rejeitou três versões diferentes do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da BR-319, etapa obrigatória no rito para a obtenção do licença.
Após análise do quarto estudo, protocolado em julho de 2020, o órgão ambiental acusou falta de informações atualizadas e a insuficiência na avaliação dos impactos ambientais e socioeconômicos, requisitando uma ampla revisão do levantamento.
Indígenas na mira
Outro documento indispensável para a obtenção da licença ambiental do "trecho do meio" é o Estudo de Componente Indígena (ECI), que mapeia as consequências do projeto para os povos originários.
Em junho deste ano, a Fundação Nacional do Índio (Funai) requisitou complementações, ajustes e revisões ao ECI da BR-319, tecendo observações parecidas com as feitas pelo Ibama.
Em audiência pública sobre a BR-319 realizada no Senado em 2018, o Ibama informou que 11 Terras Indígenas (TIs) seriam afetadas pelo empreendimento.
Mas no último relatório de impacto ambiental protocolado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) apenas cinco TIs e três povos foram levados em consideração.
"Os impactos desses empreendimentos são grandes e não há recurso que pague o total extermínio da fauna e da flora da qual sobrevivemos", afirma Nilcélio Jiahui, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
"Com isso continuaremos na luta para que esta pavimentação não aconteça e não atropele nossas vidas. Até por que não teve nem estudo ambiental dos danos que isso causará em nossas terras".
Especulação fundiária
Ao criar expectativa para o início de uma obra ainda não autorizada, o governo federal estimula a especulação fundiária. E aumenta a movimentação de grileiros, que invadem terras públicas na expectativa de vendê-las, após o asfaltamento, por cifras milionárias.
“Essa especulação pressiona para que essas áreas florestas sejam convertidas quase que em mercadorias, para depois serem usadas para produção agropecuária. Só os anúncios já podem impulsionar essa especulação pela valorização da terra na região", afirma a integrante do Observatório da BR-319.
“Caso essas obras aconteçam sem as devidas salvaguardas ambientais e sem a devida governança, nós tememos que exista ainda mais desmatamento”, aponta a ecóloga.
As unidades de conservação mais pressionadas pelo desmatamento são o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, a Floresta Nacional Balata Tufari e a Floresta Estadual de Tapauá. Juntas, as unidades somam 2,7 milhões de milhões de hectares, o equivalente à extensão do estado de Alagoas.
"Essas áreas são de grande importância para o equilíbrio climático e derrubá-las resultaria na emissão de bilhões de toneladas de gás carbônico para a atmosfera", prevê Fernanda.
Outra etapa pendente no licenciamento ambiental diz respeito a um direito fundamental previsto pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela legislação brasileira, conforme aponta a integrante do Observatório da BR-319.
“As consultas prévias, livres e informadas não foram realizadas com os moradores locais. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais não foram ouvidos. Eles têm direito de se manifestar contra ou a favor da estrada, mas ninguém os consultou propriamente”.
Isolamento geográfico
A pesquisadora Jolemia Cristina Nascimento das Chagas tem uma origem familiar usual entre habitantes de cidades do interior do Amazonas. Seus avós viviam em comunidades rurais banhadas pelo rio Manicoré, afluente do rio Madeira, à base da agricultura de subsistência e da pesca extrativista. Quando criança, ela chegou a viajar por uma BR-319 asfaltada, tal como foi inaugurada em 1976.
Hoje é doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e articuladora da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta), uma coalizão formada por organizações comunitárias, movimentos, instituições de governo e não-governamentais voltada a fortalecer a governança local nas áreas de impacto da BR-319.
“A rodovia é de extrema importância para a região porque atualmente o acesso à capital se dá apenas pelo rio ou por avião. As passagens aéreas são muito caras de Manicoré para Manaus. E para Porto Velho não tem [avião]", explica a pesquisadora.
"A estrada vai ser de muita valia para nós, porque vamos poder chegar na capital do estado com cinco ou seis horas de viagem”, completa.
A superação do isolamento geográfico é uma demanda geral da população do município de Manicoré, a 450 quilômetros de Manaus, banhado pelo Rio Madeira e lar de Jolemia. Mas a pesquisadora lembra de casos em que o asfalto colocou as comunidades na rota de criminosos.
“Nosso maior medo é que se repita o que houve em outros territórios: tentativa de expulsar as pessoas das suas comunidades, invasão dessas áreas por migrantes, por grileiros, como aconteceu no caso do lago Mamori, que teve invasões por parte de facções”, conta.
Em 2018, o turístico lago Mamori, a cerca de 90 quilômetros de Manaus, transformou-se em um cenário de guerra entre ribeirinhos e integrantes da Família do Norte (FDN), uma das organizações criminosas que controlam o tráfico de drogas no Amazonas
“Pessoas ameaçaram os moradores da comunidade e, durante um tempo, eles ficaram à mercê dessas facções”, relembra Jolemia.
Só o asfalto não adianta
“Na extremidade norte da rodovia, onde já tem o asfalto, a gente vê que as políticas públicas não chegaram. O Estado está muito ausente, mesmo tendo o asfaltamento. Então é uma área onde a criminalidade é muito alta, com feminicídio e violência no campo”, acrescenta.
O município de Manicoré é cortado pela BR-319 ao norte e pela BR-230 ao sul. A preocupação é que o asfaltamento das rodovias provoque um “boom” populacional capaz de alterar radicalmente a dinâmica interna do município, que já não tem infraestrutura suficiente para acomodar os atuais 56 mil moradores.
“Ruas não são asfaltadas, não temos sistema de esgoto, não temos água encanada, apenas um poço que abastece a cidade inteira, com um polo de tratamento”, afirma Jolemia.
“A gente vê que essa questão do saneamento básico, educação e asfaltamento são coisas que o município não consegue ofertar. São coisas que deveriam ter sido trabalhadas antes do processo de licenciamento e estudo da rodovia. E não foram”, diz a manicorense.
Garimpo
O garimpo, que já foi responsável pela devastação completa de territórios amazônicos, avança silenciosamente sobre a área de impacto da BR-319. A promessa de retorno financeiro imediato induz a população local a abraçar a prática ilegal, sem considerar os danos ao próprio modo de vida a longo prazo.
“As comunidades locais deixam de fazer suas atividades produtivas para migrar para o garimpo. Elas mesmo tiram a madeira de dentro dessas áreas de conservação, de áreas protegidas e assentamentos para construir suas balsas de garimpo”, conta Jolemia.
“Quem migra para essa atividade, com o tempo, vai deixando de plantar e cultivar e se dedicando apenas a ela, perdendo assim a autonomia de produzir a agrobiodiversidade que mantém todo o sistema amazônico”, constata.
Direitos humanos atropelados
A única forma de evitar as consequências mais drásticas do empreendimento seria seguir à risca a realização de um amplo processo de consulta pública. E mais do que isso, adotar medidas de mitigação que levassem em conta os apontamentos feitos pelos moradores.
Mas nada disso aconteceu. As evidências da ausência do diálogo com a população estão em um relatório elaborado pelo Centro de Direitos Humanos e Empresas da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo.
Um grupo de pesquisadoras analisou mais de 700 ofícios, editais, licenças, portarias, decisões judiciais e outros documentos relativos aos processos decisórios da repavimentação. Os registros revelam o desprezo pela população ao longo processo de tomada de decisões sobre a BR-319.
Segundo o relatório, a maioria dos documentos analisados sequer menciona a consulta aos habitantes. Quando o fazem, muitas vezes o procedimento é tratado de forma equivocada e até mesmo confundido com audiências públicas.
“Consulta é muito diferente da audiência pública. Elas se complementam, mas uma não substitui a outra de jeito nenhum, explica a coordenadora da pesquisa da FGV, Roberta Peixoto Ramos
“A consulta tem que ser livre de qualquer pressão, tem que ser prévia ao empreendimento, tem que dar informações de qualidade para essa população, inclusive levando em consideração a língua e os costumes deles”, explica.
“A gente analisou as poucas audiências que aconteceram no território e avaliamos inclusive que elas não foram representativas em relação aos povos e comunidades tradicionais”, destaca Roberta.
Sem conexão
Enquanto isso, o governo federal encontra meios para dificultar ainda mais a consulta às populações locais. Em junho de 2020, foram autorizadas audiências públicas pela internet para grandes obras de infraestrutura previstas no Programa de Parcerias e Investimento (PPI), no qual está inserida a BR-319.
“Especificamente nesse território, audiências públicas on-line ficariam muito fora de questão, levando em consideração que esses povos muitas das vezes estão em áreas isoladas. Não faz sentido nenhum fazer uma consulta virtual em um território que minimamente não tem acesso a internet”, afirma Roberta.
Até mesmo aglomerados urbanos, como Manicoré, cidade natal de Jolemia, sofrem apagões frequentes nas telecomunicações. É comum a existências de “pontos cegos” de telefonia, até mesmo em municípios maiores, em decorrência da falta de infraestrutura.
Comunidades à deriva
Profunda conhecedora da região, Jolemia constata que os povos tradicionais do sul do Amazonas estão, mais uma vez, abandonados à própria sorte, à mercê de uma economia predatória que aos poucos adentra seus territórios, com a complacência do estado.
“Essa é a política que gente tem no país: beneficiar e legalizar o que é ilegal. Enquanto isso, os povos tradicionais ficam à deriva, aguardando esse sistema de políticas públicas que está totalmente desfocado das realidades locais e que não chegam aqui”, afirma a integrante da Reta.
“Esses moradores da floresta estão dentro de um outro nível de conhecimento e também de um sistema de domínio, de poder, de cerceamento da autonomia. Você vê uma política pública voltada para a cadeia produtiva, mas ninguém tem um olhar para a principal característica da Amazônia, que é diversidade”, lamenta a ativista e moradora da área da impacto da BR-319.