Ana Cristina Carvalhaes e José Correa, 19 de janeiro de 2021
Os brasileiros já sequer se surpreendem com as ações negacionistas contra a vacina do Presidente da República, Jair Bolsonaro. Com mais de 68% da população vacinada e o mundo político nacional em plena campanha eleitoral – em outubro se elegem presidente, governadores, deputados estaduais federais e uma parte do Senado –, Bolsonaro começou o ano derrotado em sua guerra midiática e administrativa contra a vacinação de crianças de cinco a 12 anos. Ele ameaçou os técnicos da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) que aprovaram a imunização infantil, convocou uma consulta pública frustrada sobre o tema e continua afirmando que a vacina é perigosa, mesmo sabendo que 800 crianças podem ter morrido da doença, segundo estudo recentemente divulgado (BBC Brasil, 14/1/2022). Apesar das manobras protelatórias e das costumeiras mentiras do presidente, a vacinação das crianças já começou. O desfecho de mais este episódio da novela de Bolsonaro contra a imunização e a fúria do mandatário expressam com nitidez o desgaste, isolamento e o “enquadramento” de Bolsonaro pelo regime político que o ex-capitão tantas vezes desafiou em seus três anos de Presidência.
2021: um ano implacável para o capitão
Foram tantas e tão fortes as pressões que se acumularam sobre Bolsonaro em 2021, que é possível dizer que foi um ano impiedoso para seu governo. Foi o ano da vacinação nos principais países do mundo e da retomada, fortemente desigual, da economia global, que cresceu 5,1%, depois de uma queda de 3,6% em 2020 (contra uma retração de 1,3% em 2019). O presidente colocou todos os obstáculos contra a vacinação que conseguiu, num país com 620 mil mortos oficiais pela pandemia. Apesar dele, de seus ministros “anti-saúde” e das redes bolsonaristas, o Brasil vacinou sua população rapidamente, graças ao Sistema Nacional de Imunização e à pressão política concertada dos governadores, do Judiciário e da mídia.
A situação da economia brasileira só atrapalha os planos de reeleição de Bolsonaro. O quadro é, de conjunto, catastrófico: depois do tombo de 2020 o país cresceu menos que a média mundial, apenas 4,4% em 2021, segundo o Banco Central (16/12/2021), que prevê crescimento de somente 1% em 2022! A estagnação econômica dura quase uma década. Segundo o oficial IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o PIB do país voltou ao patamar do fim de 2019, período pré-pandemia, e ainda está 3,4% abaixo do primeiro trimestre de 2014. Apenas as finanças e parte das exportações primárias mantiveram seu dinamismo no ano passado, puxadas pela alta dos preços das commodities. Apesar disso, até o agronegócio tem dificuldades com o clima: o superávit comercial brasileiro ficou US$10 bilhões abaixo do previsto. A inflação acumulada nos 12 meses anteriores a novembro de 2021 ultrapassou os 10,5%, um sinal vermelho para as finanças.
A agudização da crise econômica provocada pela pandemia mantém 19,3 milhões de pessoas desocupadas e 27,5 milhões sub-utilizadas. Entre os mais de 100 milhões de brasileiras e brasileiros ocupados, quase a metade (48,7%) está na informalidade – sem vínculo empregatício estável. O número de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza só não é maior devido ao auxílio emergencial pago durante 2020: os institutos calculam que, em vez daqueles 34 milhões, somam hoje 28 milhões de pessoas. Num quadro como esse, em que a inflação castiga os mais pobres, mais de 116 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020, dos quais 43,3 milhões não tinham alimentos suficientes e 19 milhões diretamente passavam fome.
Para além dos números frios, o empobrecimento geral pode ser constatado dia a dia nas calçadas e cruzamentos das grandes capitais brasileiras. Na maior delas, São Paulo, onde há alguma estatística, a pandemia fez saltar de 24 mil para 65 mil o número de moradores de rua. O quadro é desastroso e nada indica uma melhora substancial em 2022. Bolsonaro quer recuperar alguma base eleitoral com a repaginação do programa de assistência Bolsa Família, criado por Lula. O atual Auxílio Brasil, de R$ 400 (US$ 72), além de completamente insuficiente, se transformou também em um elemento de estresse com os liberais. Não há perspectivas de reversão da deterioração da renda, agravada pela inflação; o índice de reajuste dos aluguéis e da construção civil no país (IGP-M) teve alta de 17,8% em 2021 (Valor, 30/12/2021).
2021 foi também o ano em que Biden e a Comissão Europeia, pressionados pelas mobilizações em torno da emergência climática, buscaram apresentar algumas propostas na área ambiental, ainda que elas não tenham - em grande medida - ultrapassado o discurso. Os setores empresariais primário-exportadores brasileiros temem boicotes na União Europeia e nos EUA em função das questões ambientais, em especial da carne e soja pelo desmatamento na Amazônia - que se estende ao Cerrado e Pantanal. E, neste contexto, a política do governo brasileiro continuou sendo a de “passar a boiada” sobre a legislação e a gestão ambiental e promover o extermínio das populações indígenas.
Por fim, 2021 foi o ano em que Bolsonaro viu sua margem de manobra para iniciativas golpistas reduzida, notadamente depois dos atos de 7 de setembro – quando, radicalizando suas ameaças às instituições do estado, teve que recuar diante das ameaças do STF.
Origem e apoios do bolsonarismo
A última década acentuou a subordinação da economia brasileira – nos marcos da divisão internacional do trabalho da globalização neoliberal que atribuiu ao Brasil o papel de exportador de produtos primários – a patamares inéditos desde a década de 1920. Desde a abertura da economia no governo Collor em 1990, todos os governos (do PSDB, do PT, do MDB e agora de Bolsonaro) reforçaram essa orientação. Há um grau de associação entre os grandes grupos capitalistas brasileiros e as corporações globais em patamares muito elevados. Não só a economia mas também a política e muito da cultura são determinados a partir “de fora”, pela dinâmica global. Isso é especialmente válido para os projetos políticos: de um lado temos a adesão à globalização neoliberal cosmopolita (na qual se incluem desde o social-liberal PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, até o lulopetismo) e, de outro, a reação conservadora ultraliberal a ela.
Os desdobramentos globais da crise de 2008 levaram a uma redistribuição de poderes entre os setores burgueses no mundo e, no Brasil, também a um questionamento da correlação de forças que vinha alicerçando os governos petistas. Depois do grande levante de 2013 – que também teve como alvo o PT e sua aliança com os políticos do Centrão –, a política brasileira girou à direita (ver box). Resultado disso foi o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e sua substituição pelo seu vice, Michel Temer, num golpe institucional avalizado por dois pilares do Estado oligárquico brasileiro, o Legislativo e o Judiciário. Entrementes, nos EUA e na Inglaterra, se consolidava um projeto ultraliberal reacionário, cuja expressão maior é Donald Trump, eleito presidente em novembro de 2016. Temer, articulador do Centrão (conjunto de partidos de direita fisiológica, em geral baseados em oligarquias regionais e sempre na compondo as coalizões governamentais nos últimos 31 anos), não se mostrou à altura, naquele momento, do que era então o projeto de reação ultraliberal e social-darwinista que radicalizava e galvanizava a cena internacional.
O governo Temer se mostrou igualmente corrupto, ineficiente e impopular, tendo se segurado porque foi capaz de executar duas contrarreformas, a da legislação trabalhista e o ajuste fiscal, com um inédito teto constitucional para os gastos públicos. Isso, combinado com a inexistência de uma candidatura burguesa a presidente que fosse popular, levou ao fortalecimento da candidatura do ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, até então, 2018, marginal no establishment brasileiro. Para que fosse viável o descarte completo de governos do PT, foi necessário inabilitar Lula como candidato, já que o ex-presidente petista mantinha grande popularidade. O processo judicial conduzido contra Lula pelo juiz Sérgio Moro, que resultara em uma condenação em primeira instância em 2017, foi avalizado pelas instâncias superiores do Judiciário, inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), meses antes da eleição de 2018. Lula foi preso e enviado para cumprir a pena em Curitiba.
A coalizão envolvida no golpe institucional de Temer se rearticulou, com um centro de gravidade muito mais à direita, ao redor da candidatura de Bolsonaro, cuja campanha foi reforçada e avalizada por Trump e sua articulação internacional. Diferentemente de outros países onde uma direita fascista prosperava endogenamente, Bolsonaro no Brasil cresceu e se viabilizou em grande medida à sombra lançada por Trump. Em novembro de 2018, Bolsonaro é eleito no segundo turno contra o candidato do PT, Fernando Haddad.
Ofensiva governamental e crise em 2020
Bolsonaro chegou ao governo, em janeiro de 2019, com um enorme apoio das classes dominantes e um importante respaldo de setores populares conservadores. Ultraliberais de todo tipo, o judiciário conservador, os setores ligados ao agronegócio, o extrativismo e o comércio, militares, policiais e grupos ligados à segurança, a maioria das denominações evangélicas neopentecostais, o Centrão… todos tiveram seu espaço no governo, respaldado por Washington. Mas nem a situação do capitalismo norte-americano, acossado pela competição chinesa e pelas transformações tecnológicas, nem a profunda crise brasileira, cujo equacionamento mínimo dentro das novas estruturas econômicas exigiria um novo boom das commodities, tornavam confortáveis a situação de Trump, assim como a de Bolsonaro. Frente ao outsider Bolsonaro (e seu grupo político, encabeçado por seus filhos), a política da burguesia hegemônica foi tutelar o novo presidente a partir do Legislativo, por meio da atuação de Rodrigo Maia (MDB) na Presidência da Câmara dos Deputados, e do Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF). As tensões se multiplicaram no transcurso de 2019, mas ainda eram administráveis; a postura do presidente e seu grupo era muito ofensiva, levantando o fantasma de uma mudança autoritária de regime.
Mas Bolsonaro nunca foi Trump. A capacidade de seu Ministro da Economia, Paulo Guedes (um ex-especulador mal visto no mercado financeiro) de arbitrar e gerir o conjunto dos interesses encastelados no poder revelou-se muito limitada. Sérgio Moro, o juiz da Lava Jato, catapultado a Ministro da Justiça e Segurança Pública, ofuscava a figura de Bolsonaro e a dinâmica internacional oferecia limites à reação ultraliberal (2019 foi um ano de enorme mobilização social pelo mundo). Em janeiro de 2020, o bolsonarismo buscou ampliar seu espaço estreitando sua aliança com o famigerado grupo de partidos fisiológicos chamado Centrão – como fizeram todos os governos brasileiros desde 1985 – e fez Arthur Lira (um político da oligarquia nordestina) presidente da Câmara dos Deputados. Mas o que pareceria uma posição de força representou, na verdade, um esgarçamento de relações com a grande burguesia financeira. A situação começava a fugir do controle, dentro e fora do Brasil, com a pandemia da covid-19, que em 17 de março fez sua primeira vítima no país. O quadro sanitário levou à interrupção do funcionamento normal da economia e ao início da “política dos governadores” para a gestão da saúde.
Bolsonaro deixou de unificar a burguesia em torno dele e de sua coalizão política a partir de abril de 2020. As tensões entre o presidente – que imitava as reações de Trump e Boris Johnson à pandemia – e seu Ministro da Saúde se transformaram em crise aberta. Em 16 de abril, Henrique Mandetta deixa o ministério, substituído por Nelson Teich e, em 15 de maio, assumiria o inepto e obediente general Eduardo Pazuello. A gestão da saúde se transformaria em um calcanhar de Aquiles de Bolsonaro. Na tentativa de recuperar o controle da situação, no mesmo mês, convocou e participou de um ato de simpatizantes contra o Judiciário nos portões do Comando das Forças Armadas, em Brasília. Destituiu, por divergências com o trato da questão sanitária e por considerá-los menos subordinados do que deveriam, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Para interferir diretamente na cadeia de comando da poderosa Polícia Federal (e assim controlar processos ele mesmo e contra seus filhos), forçou a demissão de Sergio Moro. A esta ofensiva, o Judiciário respondeu permitindo a divulgação nacional da gravação de uma reunião de ministério, em que Bolsonaro ameaçou Moro. Foi o início do desmonte do bloco de forças que vinha convergindo desde o final do governo Dilma.
Incapacidade à prova
Um ano de pandemia já mostrava que o grupo de Bolsonaro era incapaz de enfrentar a situação nos termos exigidos pelo grande capital no Brasil, uma situação análoga à de Trump nos EUA em 2020 (lá agravada pela mobilização popular de massas do Black Lives Matters). No caso do Brasil há um agravante contra o governo ultradireitista: jamais existiram no país setores antivacina fortes; mesmo setores conservadores defendiam a política de precauções na área da saúde, estruturada a partir da aliança do “partido da saúde” (uma vasta coalizão de movimentos e técnicos na área, que viabilizaram a formação do Sistema Único de Saúde em 1988) com os governadores. Garantida a oferta das vacinas já no início de 2021, a posição de Bolsonaro mostrou-se cada vez mais obtusa e irracional.
Bolsonaro tentou conter o desgaste, de um lado, incorporando mais militares no governo, e de outro, dando mais cargos para o Centrão. Ele tentou constituir um partido próprio, a Aliança pelo Brasil, mas fracassou. O auxílio emergencial de R$ 600 (algo como US$ 120 à época) ajudou, no segundo semestre de 2020, a conter a perda de popularidade. Mas esgarçou o gargalo da economia, estagnada desde 2014 e que em 2020 recuaria 4,1%. Isso só aumentou a tensão com a burguesia financeira, que cobra competência na gestão dos interesses comuns do capital (frente à pandemia, nas relações internacionais, na política ambiental, na austeridade fiscal…). Em abril de 2021 iniciou-se no Senado a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Covid, televisionada ao vivo durante meses, fator que ajudaria a que a popularidade de Bolsonaro jamais se recuperasse.
Emparedado pelas regras do jogo do sistema político, tentou mais uma vez, em 7 de setembro de 2021, feriado da “independência” nacional frente a Portugal, uma ofensiva autoritária. Convoca atos “verde-amarelos” (cores da bandeira brasileira de que a ultradireita se apropriou), em especial dois com que pretendia acuar o STF e os tribunais como um todo. Naquele momento, o governo estava em guerra aberta contra o sistema eletrônico de votação, que Bolsonaro e o bolsonarismo acusam, sem nenhuma prova, de causador de fraudes, e o Judiciário em defesa intransigente da “urna eletrônica”. O ato de São Paulo, convocado pelos pastores neopentecostais, chega a reunir quase um milhão de apoiadores da região Sudeste. Ali, Bolsonaro faz sua maior bravata: promete que não obedecerá ordens de um ministro do STF. O ato de Brasília fracassa e os demais não são suficientes para impedir que o governo seja obrigado a pedir desculpas ao STF e recuar.
A situação de Bolsonaro na virada para 2022
Embora a correlação de forças do período mais longo seja ainda desfavorável aos de baixo, o governo foi obrigado, a partir do fiasco do 7 de setembro, a recuar de sua prática “antissistêmica”, a soltar bilhões de recursos do Orçamento para fidelizar o insaciável Centrão, a calar a boca sobre as urnas eletrônicas, a pedir desculpas ao STF e a engolir a liberdade e a elegibilidade de Lula. Assim, o governo de hoje é muito mais fraco e impotente do que aquele que tomou posse. E o é porque foi um desastre na gestão da pandemia, porque não tem mais Trump em que se apoiar, porque os ventos na região não sopram a seu favor, porque se mostra corrupto, porque a situação econômica se deteriora no compasso da crise global, por que um setor minoritário mas significativo da burguesia deixou de apoiá-lo e porque houve resistência. E poderia ser ainda mais fraco ou mesmo já ter sido derrubado se a principal liderança de massas do país e seu partido – Lula e o PT – tivessem efetivamente se colocado esse objetivo político.
Todas as pesquisas de opinião mostram uma erosão constante do apoio a Bolsonaro, cujo governo tinha em novembro de 21 a aprovação de apenas 19% do eleitorado, o patamar mais baixo desde o seu início. Na pesquisa Atlas para o Valor Econômico (o grande jornal de economia do país, o verdadeiramente lido pelo empresariado), divulgada em novembro, 60% o avaliavam ruim ou péssimo. Na série histórica dessa pesquisa, a reprovação ficou acima de 53% durante todo o ano de 2021 (El País Brasil, 29/11/2921). As pesquisas dos institutos Datafolha e Ipespe (ex-Ibope) também mostram resultados semelhantes.
Mas é evidente que, apesar de debilitado, Bolsonaro é governo e não está morto. Será um perigo até o fim e um acompanhamento corpo a corpo de suas iniciativas autoritárias é indispensável. Continua catalisando iniciativas de desmonte de toda a legislação progressista estabelecida no Brasil, inclusive aproveitando-se da pandemia para “passar a boiada” (entenda-se destruir toda a legislação infralegal de proteção ambiental, social, racial, de gênero) – como disse o ex-Ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, na reunião de abril, divulgada amplamente. Estimula abertamente iniciativas ilegais dos setores extrativistas em áreas de proteção ambiental, territórios indígenas e nas florestas em geral. Segue se apoiando em madeireiros, garimpeiros, pequena burguesia urbana proprietária, setores populares conservadores e no lumpesinato das milícias (organizações criminosas para-militares).
Ataca direitos trabalhistas, das mulheres, dos povos indígenas, da população negra e da comunidade LGBTQI+. A situação é particularmente grave para as parcelas mais pobres da população, precarizada e plataformizada, majoritariamente negra, e para os povos indígenas. Encontra respaldo, especificamente para esses fins, no Legislativo e nas políticas liberalizantes, também dos governadores, inclusive petistas. As principais forças a conter algumas destas iniciativas são, quando não dizem respeito a privatizações, direitos trabalhistas e ajustes fiscais, o Judiciário e a mídia corporativa. Não está para nada descartado, inclusive, que Bolsonaro se negue a passar a faixa presidencial no caso de derrota bem provável, nem que protagonize algum episódio como a invasão do Capitólio nos EUA pelos trumpistas em 6 de janeiro de 2021.
E o movimento de massas?
A crise pandêmica evoluiu até se tornar uma crise multiforme - além da pandemia, estagflação, fome, ataque a direitos das parcelas mais pobres e vulneráveis, crise hídrica e energética que afetam não só a massa da população, mas também os interesses do capital. O projeto bolsonarista chegou a um impasse nos marcos atuais: o presidente não é capaz de entregar o que prometeu ao seu eleitorado mais amplo e ao empresariado, nem deslocar a correlação de forças a seu favor. Há mais de 130 pedidos de impeachment apresentados no Congresso, que não tramitam porque o Centrão trava. Há também uma enorme rejeição de Bolsonaro pela grande mídia. Ele, entretanto, mantém um esquema da mobilização de sua base social mais fiel, cerca de 20% do eleitorado, pelas redes sociais. O elemento decisivo para resolver o impasse seria uma ampla mobilização social, como vem se dando em outras partes do mundo. O problema é que a mobilização social no Brasil até agora obtida no Brasil vem sendo insuficiente para deslocar a relação de forças contra o governo neofascista.
A mobilização pelo impeachment de Bolsonaro nas ruas, em 2021, ficou limitada à chamada “esquerda social”, a heterogênea vanguarda dos movimentos sindical, popular, da negritude, mulheres e parcela minoritária das organizações das periferias urbanas. A frente Fora Bolsonaro, com participação oficial do PT, da CUT e do MST, além de PCdoB, PSOL, todas as demais centrais sindicais, movimento negro e de estudantes, conduziu, a partir de abril, mobilizações importantes, mas não estas foram capazes de ultrapassar a bolha da militância da esquerda. Em primeiro lugar, porque frente ao social-darwinismo de Bolsonaro, a esquerda se tornou a campeã do lockdown, o que retardou sua ida às ruas. Depois porque a principal força política da oposição, Lula, não tinha (e não tem) interesse em mobilizar pelo impeachment; ele quer manter a polarização política focada na rejeição a Bolsonaro e nele como alternativa na eleição de outubro de 2022. A oposição de centro e centro-direita no Congresso, minoritária, também optou por privilegiar a política de desgaste de Bolsonaro através da CPI da Covid. Somente em setembro, depois que Bolsonaro ensaiou uma radicalização política junto a suas bases, elas reagiram (em boa medida via o Judiciário) e se colocaram favoráveis a comparecer a manifestações (em 12 de setembro). Mas em outubro já estava claro que a dinâmica do impeachment tinha perdido seu momento.
Apenas um setor social, duramente atacado pela direita, manteve uma mobilização sustentada ao longo de todo o ano de 2021: os povos indígenas, que tinham uma luta específica para impedir que a Justiça colocasse como limite retroativo, para demarcação de seus territórios, aqueles que estivessem formalmente ocupados em 1988, quando da promulgação da atual Constituição (aqui chamada luta contra o “marco temporal”). Ainda sem desfecho, é uma mobilização que tem a simpatia da esquerda e dos progressistas, além de galvanizar uma grande solidariedade internacional em um ano em que a questão ambiental e, em especial, a defesa da Amazônia ganharam muito destaque.
Campanha eleitoral a todo vapor
A cena política foi sendo tomada, à medida que as mobilizações de rua não decolavam e o ano chegava ao fim, pela articulação da campanha eleitoral de outubro de 2022. Toda a oposição avalia que, com exceção do Auxílio Brasil, os demais elementos do cenário são muito desfavoráveis a Bolsonaro. A economia mundial deve ter, em 2022, um crescimento menor que em 2021 (na faixa de 4%) e o Brasil projeta um quadro de estagnação (na faixa de 1%) – os únicos prognósticos positivos são para a mineração, porque até o grande agronegócio exportador está às voltas com redução da produção devido às mudanças hídricas e desastres climáticos. A população vai lembrar o que Bolsonaro fez ao longo dos últimos dois anos em relação à pandemia e vai continuar sofrendo com a inflação.
O país vive uma espécie de compasso de “espera ativa” pelas eleições e pelo fim do governo Bolsonaro. A mídia cobre diariamente, além da onda da ômicron, da vacinação e do empobrecimento generalizado, as intensas movimentações de partidos e setores empresariais em busca de alternativa presidencial e de alianças locais e regionais para o pleito de outubro. Não há alma viva entre os agentes políticos fundamentais que duvide da presença de Lula no segundo turno e de seu amplo favoritismo.
Impulsionados pelo desejo das camadas empresariais, há três candidatos disputando o status de “terceira via” para 2022: Sérgio Moro, que divide com Bolsonaro a base social de extrema-direita autoritária, em especial nas camadas médias; João Dória, governador de São Paulo, representando o tucanato tradicional de centro-direita; e Ciro Gomes (PDT), transitando entre o progressismo nacionalista e a centro-direita. Mas nenhum dos três nomes vingou até agora. Bolsonaro mantém um eleitorado fiel na extrema-direita. E as pesquisas dão grande vantagem para Lula.
(continua)