A eleição de Lula representará, sem dúvida, um grande avanço frente à situação atual. Mas em que direção Lula (e Alckmin?) mudará o rumo do país? O que podemos esperar, à luz do que ocorreu entre 2003 e 2010, que seja seu governo?
Ana Cristina Carvalhaes e José Correa, 22 de janeiro de 2022
O ex-presidente foi libertado em 8 de novembro de 2019, depois de um ano e sete meses de cárcere, por uma decisão “técnica” do STF, que reafirmou sua posição contra a prisão depois do veredito em segunda instância. Mas, em 8 de março de 2021, Edson Fachin, ministro do STF, anulou todas as condenações contra o ex-presidente em relação à operação Lava Jato, feitas pela Justiça Federal do Paraná. Com esta decisão, o ex-presidente não estava mais inelegível. Em 15 de abril, o plenário do STF anulou as condenações no âmbito da Lava Jato feitas por Sérgio Moro, desmoralizado pela revelação das mensagens em que tramava a condenação de Lula.
Da mesma forma que o Judiciário tirou Lula da arena política entre 2017 e 2018, no desfecho do golpe de 2016, o recolocou no tabuleiro em 2020. Golpe e contragolpe foram operados por dentro do estado profundo (oligárquico) brasileiro, cuja trama institucional – dinâmica, conflituosa, mas não inocente – zela pelos interesses dos setores mais poderosos das classes dominantes. Lula, a nêmesis de Bolsonaro, estava novamente livre para operar a ação política necessária em defesa do que considera os interesses nacionais.
A libertação e devolução dos direitos políticos ao dirigente petista vieram ampliar a pressão sobre Bolsonaro e o debate sobre alternativas presidenciais. Lula se moveu com desenvoltura, estimulando a polarização, controlando o espaço à sua esquerda e crescendo sobre a centro-direita, fechando caminho para “terceiras vias”. Interessa tanto a Lula como a Bolsonaro a polarização entre as duas candidaturas, que tornam seus discursos confortáveis, profecias auto-realizáveis.
Lula trabalhou, desde que foi reabilitado, com o discurso de defensor responsável das “instituições democráticas” do Estado brasileiro. Afirmou que Bolsonaro teria que ser retirado do governo nas eleições de 2022, não dando destaque para os riscos de um eventual golpe do bolsonarismo. Resgatou também o caráter nacional, policlassista, de seus governos. Ao longo de 2021 não foi favorável nem aos pedidos de impeachment de Bolsonaro – embora o PT, pressionado pelos movimentos, tenha votado no pedido unificado das oposições progressistas – nem foi ou apoiou as manifestações de rua da frente Fora Bolsonaro - da qual o PT, a CUT e o MST participaram. O presidente de honra do PT sempre defendeu a montagem de uma chapa que deslocasse sua candidatura para a centro-direita, idealmente com um empresário de renome como vice; este sempre foi seu projeto político, reafirmando o que já fez entre 2003 e 2010.
O projeto Alckmin
Mas, no fim de 2021, uma alternativa nova veio à luz - impensável para aqueles que levavam a sério a narrativa do PT sobre o que aconteceu no país nas últimas décadas. Lula e Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, da ala direita e conservadora do PSDB, vinculado à Opus Dei, iniciaram conversas para compor uma aliança presidencial. Alckmin foi governador de 2001 a 2006 (quando perdeu para Lula a eleição presidencial) e depois, novamente, de 2011 a 2018. Representa hoje, mais do que qualquer outro nome, a tradição histórica do PSDB como partido do grande empresariado globalizado brasileiro.
Alckmin perdeu o controle de sua sigla para João Dória (uma figura relativamente nova na política, que tomou o partido de assalto na onda Bolsonaro) e abandonou o PSDB, mas ainda não decidiu se se filia ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), um partido bastante institucionalizado do campo progressista, ou ao Partido Social Democrático (PSD) de Gilberto Kassab, um partido da direita fisiológica. Nos últimos dias, Lula tem expressado a posição de que preferiria que Alckmin se filiasse ao PSD, o que estenderia o apoio a sua chapa ao núcleo do Centrão e facilitaria a negociação de candidaturas aos governos estaduais, onde as demandas do PSB são maiores. Isso levou a que dirigentes do PSB afirmassem que Lula está de “salto alto”, com sua convicção de que “já ganhou”. Nessas idas e vindas muita água ainda vai rolar.
Não sabemos se a chapa Lula-Alckmin será efetivada ou não. As negociações seguem soltas; não interessa a nenhum dos dois, agora, explicitar ou negar isso. Mas ela é reveladora de alguns aspectos essenciais da situação brasileira. Em primeiro lugar, o PSDB, partido que dividiu com o PT o controle da arena política do Brasil neoliberal nas últimas três décadas, morreu como projeto globalista alternativo ao PT. Ele sucumbiu à emergência de um projeto global de extrema-direita e à polarização entre Bolsonaro (Dória foi eleito fazendo a campanha “Bolsodoria”, rifando Alckmin como candidato à Presidência em 2018) e Lula, que aparece como um defensor coerente de uma globalização neoliberal cosmopolita, “inclusiva” (tanto para a burguesia como para setores populares).
Depois, que Lula soube capitalizar muito bem sua condição de vítima das armações escusas de Moro em 2018 e defensor ponderado das "instituições democráticas".
Por fim, que o PT como partido, também se revigora institucionalmente no processo: uma pesquisa de preferência partidária aponta que 28% dos entrevistados se identificavam com o partido, contra 2% com o PSDB e o PMDB, o melhor resultado petista desde 2013. O partido está comendo pelas bordas agremiações como o PSOL e a Rede, integrando parlamentares eleitos por estas siglas, a partir de sua afirmação como eixo do próximo governo ou único partido de oposição à Bolsonaro viável para governar. O PT se relegitima como ator central na política brasileira.
Lula e a centro-direita: governabilidade e “união nacional”
Lula e o PT radicalizaram, na melhor tradição do populismo latino-americano, a opção de se apresentar como um projeto policlassista, como um partido “de toda a nação” – o que o dirigente não cansou de afirmar em seus governos anteriores e lembra a cada entrevista, mas que ficou nublado no período posterior ao golpe que derrubou Dilma da Presidência. Lembremos que mesmo quando aplicava políticas de austeridade muito rígidas, o PT sempre recusou a caracterização de neoliberal, auto-definindo-se como “neodesenvolvimentista” e “pós-neoliberal”! Enquanto Ciro Gomes, João Dória e Sérgio Moro disputam algum espaço para uma alternativa à polarização Bolsonaro-Lula, a estratégia de Lula é livrar-se de toda radicalidade e deslocar-se ao centro e compor com a direita liberal para enfrentar a animosidade das classes dominantes.
Alckmin aparece para Lula como o melhor nome para expressar essa política que pretende se estender da centro-esquerda à centro-direita do espectro político brasileiro. Pelo que Lula está costurando, também em suas andanças internacionais, fica evidente que a aliança com Alckmin é muito importante não somente por motivos eleitorais (embora somar votos conte), mas pela governabilidade que poderá propiciar ao seu eventual governo a partir da abertura das urnas.
Lula chama a uma “frente ampla” eleitoral contra Bolsonaro e um governo de "unidade e reconstrução nacional" com um sólido apoio empresarial, nacional e internacional, e, idealmente, uma maioria legislativa alternativa, frente à extrema direita bolsonarista, mas também com a menor dependência possível do Centrão a ela aderida. Alckmin sabe disso e é uma liderança política quase tão calejada como Lula, prospectando um lugar privilegiado para o que vão ser os próximos anos. Lula-Alckmin seria a melhor conformação governamental para levar adiante esse projeto de reciclagem do neoliberalismo cosmopolita no Brasil. Se não der certo com Alckmin – e há vários obstáculos de disputa de poder nos estados no caminho de viabilizar esta chapa – este projeto não será alterado; vai ser encaminhado com outros nomes do mesmo campo que carregam um simbolismo menor.
Coerente com o governo que pretende fazer, em meio às movimentações por alianças à direita, os próceres do PT mais ligados a Lula deixam nítidos os grandes limites do programa desse tipo de frente. Argumentando não ser ainda candidato oficial e nem ter escolhido equipe econômica, Lula atribuiu ao ex-ministro da Economia dele e de Dilma, Guido Mantega, a tarefa de pincelar pela primeira vez o que deve ser o modelo a ser implementado com o PT de volta ao Planalto. Em artigo de opinião publicado dia 4/1/2022, numa série com pré-candidatos ou seus representantes, na Folha de S. Paulo, Mantega anunciou:
“Para enfrentar essa situação desafiadora [o desastre econômico bolsonarista], as forças democráticas deverão elaborar um programa de desenvolvimento econômico e social para a reconstrução do país [com] medidas emergenciais de combate à fome e à miséria, que propiciem condições de sobrevivência da população mais pobre. O governo deve coordenar um ambicioso plano de investimentos públicos e privados, de modo a ampliar a infraestrutura e aumentar a produtividade, gerando muitos empregos. É necessário desenhar um programa de investimentos de longo prazo que dê sustentação ao crescimento e ao aumento da produtividade. [...] É importante também diminuir a taxação dos mais pobres, aumentando os tributos sobre a renda e patrimônio dos 1% mais ricos, de modo a reverter a regressividade da estrutura tributária brasileira. A política monetária deve manter a inflação sob controle, sem exagerar na dose de juros, para preservar o crescimento e, ao mesmo tempo, evitar um serviço da dívida impagável. O novo governo deve retomar as políticas industriais e as de investimento tecnológico, que devolvam a competitividade da indústria brasileira. Claro, sem esquecer as questões climáticas e ambientais”.
Em apoio à costura de uma chapa com Alckmin, o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro, resumiu, em um artigo para o site A terra é redonda (Caminhos do Terceiro Mandato, 6/1/2022), o espírito do programa petista:
“Os caminhos presidenciais para um terceiro mandato de Lula estão se abrindo, não porque Lula seja um ‘radical’, mas porque é um autêntico democrata e republicano, que trabalha as suas ideias sem perspectivas de ruptura com o sistema capitalista. Se ele defendesse um projeto socialista, com o imaginário criado inclusive dentro das classes trabalhadoras sobre este tema, ele não teria chance. O ideário socialista de Lula é um projeto de regulação permanente do sistema, de tal forma que todas as pessoas possam ter três refeições por dia, estudar e educar-se, ter uma moradia decente e viver numa comunidade baseada na solidariedade e no respeito à humanidade de cada um”.
E é justamente para melhor “regular o sistema” e “retomar uma política nacional de desenvolvimento”, que dias depois Lula falou em revogar a famigerada Emenda Constitucional 95, que, aprovada sob Temer, limitou por 20 anos o teto dos gastos públicos - não somente impedindo qualquer governo de qualquer política de indução ao crescimento como complicando enormemente a gestão orçamentária. Na mesma direção, e para agradar seu eleitorado mais à esquerda, o petista lançou o segundo balão de ensaio: uma proposta de revogar parcialmente, a la espanhola, a total flexibilização das leis trabalhistas, perpetrada por Temer e Bolsonaro.
O sentido geral desta política foi defendido, em 19/1/2022, pelo próprio Lula, quando afirmou em uma longa entrevista coletiva:
"Espero que o Alckmin esteja junto, sendo vice ou não sendo vice. Parece que ele se definiu em fazer oposição não apenas ao Bolsonaro, mas ao 'dorismo' aqui em São Paulo. É importante lembrar que o PSDB do Doria não é o PSDB social-democrata do Mario Covas, do Fernando Henrique Cardoso e do José Serra criado no período da Constituinte, no tempo do Franco Montoro (...) Temos divergências, por isso estamos em partidos diferentes, mas isso não impede que, se for necessário, você construa deixando as divergências num canto e as convergências em outro canto. Não terei nenhum problema em fazer chapa com Alckmin para ganhar as eleições neste país."
Aperfeiçoando a governabilidade conservadora
Lula orgulha-se sempre de dizer que “respeita o povo e governa para todos”. Mas estes “todos” são muito desiguais: a “área econômica”, a “área social e ambiental”, as “relações internacionais”, a “elite” política, os “técnicos”, o “equilíbrio de poderes” com o Legislativo e o Judiciário - para no final prevalecer os interesses dos setores na defesa dos quais o Estado está estruturado. Entre 2003 e 2010, Lula incorporou na gestão do Estado um grande número de sindicalistas, ativistas e militantes de esquerda no governo, quadros progressistas e técnicos bem intencionados, esvaziando a radicalidade de movimentos que se mobilizaram nas ruas contra o governo FHC. Decidiu eliminar os processos deliberativos populares, como o orçamento participativo, que constrangiam sua liberdade de negociação, ao mesmo tempo que ampliava os mecanismos consultivos e processos de "escuta".
Mas o petista também puxou para seu governo parte do Centrão, em especial o PMDB (o mesmo que depois capitanearia o golpe contra Dilma), para esvaziar o PSDB na oposição. Utilizou amplamente a sedução fisiológica dos cargos no Estado para reduzir possíveis descontentamentos oligárquicos - quando não a compra de apoio parlamentar, o esquema do "mensalão". Seus governos incluíram, em postos-chaves, figuras como o “anão do orçamento” Geddel Vieira Lima, ex-governador Edison Lobão, um prócer da ditadura militar no Maranhão, ou ainda o ex-presidente mundial do BankBoston, Henrique Meirelles, que durante oito anos geriu o Banco Central do Brasil (veja-se, para o perfil de conjunto, os verbetes da categoria da Wikipedia, “Ministros do governo Lula”; vale a pena rever também o verbete do “Escândalo do Mensalão”). A síntese política que prevaleceu nesta governabilidade conservadora foi o programa afirmado em 2002 na “Carta ao Povo Brasileiro”.
Lula busca agora aprimorar o que considera que deu certo em seus primeiros governos. Ele preservou, estruturou e aperfeiçoou a governabilidade conservadora clássica na política populista e paternalista brasileira, a conciliação de classes. Incorpora no governo tanto lideranças burguesas e oligárquicas tradicionais quanto dos movimentos sociais progressistas e da esquerda, que expressam de forma conflituosa seus interesses de classe e procuram levá-los de forma regrada para dentro das estruturas do Estado, onde o presidente toma as decisões finais, ouvindo os mais fracos, mas respeitando os acordos com os mais fortes, nacionais e internacionais.
Protestos educados no PT
O movimento muito ostensivo à direita, em favor de uma unidade nacional com o grande capital, mesmo capitaneado pelo habilíssimo Lula, ainda mais com um nome como Alckmin - uma liderança política decisiva da burguesia brasileira, que carrega uma enorme a carga simbólica conservadora -, não acontece sem crises entre a militância e simpatizantes do PT e entre o eleitorado em geral. No dia 11 de janeiro, veio a público um manifesto de petistas, com o apoio dos ex-presidentes partidários Rui Falcão e José Genoíno, chamando a rechaçar a possibilidade da chapa de Lula com Geraldo Alckmin. O texto, que busca assinaturas pela rede, aponta o bolsonarismo, o lavajatismo e o neoliberalismo como “as três forças reacionárias deram um golpe em 2016”, diz que as mesmas “participaram e aplaudiram e se beneficiaram da condenação, da prisão e da interdição de Lula em 2018” e lembra que “Alckmin participou e apoiou publicamente toda esta operação golpista e neoliberal”, além de possuir uma “longa trajetória de combate às posições nacionais, democráticas, populares e desenvolvimentistas”.
Mas esse tipo de iniciativa da hoje reduzida “esquerda petista” tem alcance praticamente nulo para alterar a posição do sólido núcleo político em torno de Lula, que há muito definiu trabalhar dentro dos marcos do neoliberalismo. Convém lembrar que, em 1993, foi formado o Instituto Cidadania, um espaço que, gradativamente, concentrou mais e mais poder de decisão frente ao PT (depois de 2010, ele foi rebatizado Instituto Lula). Em meados da década de 1990, a social-democracia europeia era reivindicada por FHC e pelo PSDB, mas em toda a América Latina a esquerda clássica e o nacional-desenvolvimentismo, em crise terminal, se fundiram no progressismo heterogêneo do Fórum de São Paulo, que surgiria como alternativa aos governos defensores do Consenso de Washington, criticando o neoliberalismo para tornar-se, no poder, no mais das vezes, social-liberal. Já em 2003, Lula no governo (como Antonio Palocci como Ministro da Fazenda mantendo a política econômica de FHC) emergia como um contraponto “cor-de-rosa” - depois acompanhado de Michelle Bachelet e da Consertación chilena - ao que seria, dentro do campo progressista, o vermelho de Hugo Chávez.
Os setores que recusaram essa adaptação ao horizonte neoliberal ou rechaçaram seu monopólio total das decisões (um poder praticamente autocrático dentro do petismo) abandonaram o PT nos dois primeiros governos Lula, entre 2003 e 2010. Uma esquerda reformista se acomodou ao PT lulista a partir do momento em que o boom das commodities permitiu, depois de 2005, um crescimento econômico e alguma redistribuição aos de baixo. Adaptada, desde então ela reclama, reclama, para ao final aceitar tudo o que Lula determinar. Não romperam com o PT nem mesmo em seu pior momento, entre 2016 e 2020, afinal apostando que o lastro da liderança “nacional-popular” de Lula justificava seu acesso ao poder e sua permanência. O manifesto contra a chapa com Alckmin é, assim, apenas uma tentativa de dar resposta à perplexidade e desânimo que, com essa aliança, tomaram conta de parcelas do eleitorado e da militância de esquerda não petista – que começaram a se mover com a retomada das mobilizações de rua a meados do anos passado.
O jogo de cena eleitoral
A peça encenada por Lula na campanha presidencial é parte essencial da tradição populista tão enraizada no continente e no Brasil - de Getúlio a Brizola, passando por João Goulart. Comentaristas tucanos de raíz em jornais como a Folha de S.Paulo e o Globo mapeiam com precisão o sentido tático das colocações alternadamente mais “radicais” e mais “moderadas” de Lula e de seu entorno, para sustentarem, para além dos arroubos, a importância da aproximação da candidatura Lula com os “moderados”. Setores críticos que desejam uma política de esquerda de Lula, vêm em qualquer declaração contra a “Faria Lima”, uma guinada à esquerda. Mas nada disso alterará o sentido geral da política de um terceiro governo Lula que venha a se estabelecer.
Helena Chagas, ex-Secretária de Comunicação Social do primeiro governo Dilma, publicou, a propósito da entrevista de 19/1/2022, um artigo com o título “Lula aliancista enquadra PT, acena a militares e acalma o centro” (Site 247, 19/1/2022)
O principal recado do ex-presidente Lula na entrevista aos sites independentes foi o de que está pronto para ter o ex-governador Geraldo Alckmin como vice em sua chapa, numa aliança não só para vencer a eleição, mas para governar. Nos últimos dias, adversários do petista e a própria mídia vinham levantando a cada hora maiores dificuldades para essa aliança, dando grande ênfase aos problemas do PT na negociação com o PSB e à reação interna ao ex-tucano - o que só mostra a importância estratégica do movimento de aproximação com o ex-governador para Lula.
Mas o recado serviu também ao público interno, os petistas que estão vindo a público detonar o entendimento, patrocinando até um abaixo assinado da militância contra Alckmin. Sem confrontar líderes da estatura dos ex-presidentes da legenda Rui Falcão e José Genoíno, seus amigos que vem liderando esse movimento, Lula fez o que sempre faz nas divergências do PT: deixa todo mundo gritar, mas avisou que, uma vez tomada a decisão pelo partido, ela será seguida. “O PT não é problema. É um partido político. As pessoas têm o prazer e o direito de divergir, até o PT decidir. E aí todo mundo cumpre. E vão aparecer rindo, e não chorando", disse Lula, que, a seu modo, acabou por enquadrar o partido. O ex-presidente esgrimiu em seguida o principal argumento para justificar a ampliação das alianças: resgatar o país desmantelado por Jair Bolsonaro, restituindo ao povo a democracia e lhe devolvendo condições de vida que perdeu.
A natureza estratégica das movimentações de Lula
Não há nada mais orgânico ao contexto atual do que a dobradinha Lula-Alckmin. De um lado, PT e PSDB se consolidaram ao longo de três décadas como as duas alas da globalização neoliberal cosmopolita no país, agora ameaçada pela extrema-direita. Sempre existiu uma artificialidade e uma certa hipocrisia, agora desnudada, na polarização que o PT procurava estabelecer contra o tucanato neoliberal como principal “vilão” da política brasileira, enquanto Lula também se aliava com o Centrão, dava continuidade à política econômica e até aprofundava a orientação globalizante de FHC.
Lula e o PT de 2021 estão há muito tempo bem distantes do dirigente sindical combatido forjado nos anos 1970 e do partido político de esquerda dos anos 1980. Ocupam há décadas espaços no Estado, assimilando as práticas de conciliação próprias do establishment político brasileiro, arbitrando as disputas no seio da burguesia e administrando o capitalismo no país. Com a vantagem, sobre os outros partidos, de dispor das ferramentas (todo um ecossistema de organizações sociais que controlam) e de uma certa legitimidade histórica para atenuar as manifestações de descontentamento social - embora 2013 tenha evidenciado que isso tem limites e pode ser rompido (um Acontecimento que grande parte da esquerda ainda não conseguiu digerir).
O PT e o lulismo mudaram qualitativamente sua base de apoio. Se no século XX eram respaldados pelo sindicalismo combativo, os sem-terra e os assalariados médios urbanos ideologicamente referenciados em um projeto de esquerda, essa base social se dispersou com as transformações neoliberais, o mergulho na globalização e os governos petistas. Hoje sua base eleitoral é o chamado “precariado”, ao qual seus governos favoreceram com políticas públicas, crédito para o consumo, desemprego baixo e algum reajuste salarial acima da inflação - o mesmo "precariado" que Lula e Dilma ajudaram a expandir com suas políticas favoráveis às plataformas globais (Lula desmontou a resistência às "big techs" norte-americanas dentro do seu governo em 2005). Lula é hoje a mais acabada liderança social-liberal populista, no sentido que o termo tem na América Latina, incluindo suas práticas caudilhescas de se colocar acima das classes, como representante de toda a nação – nesse sentido superando até mesmo o mexicano Andrés Manuel Lopez Obrador, o AMLO.
Passa longe das cabeças da direção petista que sua política de moderação e governabilidade conservadora com as finanças e plataformas globais, ruralistas, pastores evangélicos e delegados de polícia, de um lado, e de expansão do mercado interno, inclusão pelo consumo e inserção do Brasil na economia mundial via o neoextrativismo e a agroexportação, de outro, rebaixou o horizonte do país e pavimentou seu desgaste na segunda década deste século. Com esta política gradualista, economicista e sem radicalismo político, de expansão do mercado sem mobilização política, o PT e Lula assentaram os alicerces para o crescimento da extrema-direita e do fundamentalismo neopentecostal no país, o fortalecimento do Centrão, o impeachment de Dilma, o governo Temer e a formação da coalizão que chegou ao Palácio do Planalto em 2016 e se moveu muito à direita em 2018.
As políticas econômicas dos governos petistas foram, de conjunto, neoliberais, a começar pela manutenção do chamado tripé macroeconômico: metas de inflação, taxas de câmbio flutuante e austeridade fiscal com metas de superávit fiscal primário. A “âncora cambial” do combate à inflação, cuja gestão foi entregue a Meirelles (que hoje geri as finanças do governo Dória), teve um papel central na desindustrialização do Brasil ao longo dos 16 anos de governos petistas. Estes governos tiveram uma dimensão social; foram social-liberais: a governabilidade conservadora teve então, como contraponto, que políticas sociais de mercado (Bolsa-familia, PróUni…) tivessem impacto sobre a vida de milhões de pessoas, reduzindo a miséria no país. Um balanço detido deveria ser feito também das políticas ambientais, cada vez mais decisivas para o destino da humanidade, mas isso exigiria uma discussão mais larga; basta, para abreviar, lembrar da visão desenvolvimentista rústica de Dilma Rousseff, ministra das Minas e Energia e chefe da Casa Civil de Lula, antes de ser sua sucessora. Os ganhos dos governos petistas foram reais, mas superficiais, passageiros, porque não se mexeram nas estruturas de poder fundamentais, algo que outros progressismos do continente pelo tentaram fazer!
O neoliberalismo não é apenas política econômica, mas principalmente uma forma de organização do tecido social sob o capitalismo que afirma, individualiza e despolitiza as pessoas como consumidores e não cidadãos conscientes, organizados e mobilizados. A inclusão pelo mercado tal como efetivada não significava apenas mais consumo para os pobres, que Lula sempre prometeu (e segue prometendo) em seus discursos - e que está bem descrita na citação de Tarso Genro acima -, e que é responsável pela imagem popular de seu mandato; é igualmente a mercantilização da reprodução social e o enfraquecimento do sentido do comunitário, do coletivo, do público, do participativo, em um círculo vicioso de fragmentação e anomia, aprofundado com o fracasso do governo Dilma e do PT em oferecer uma resposta às mobilizações de 2013. Este caminho conduziu a um impasse histórico, que está agora sendo reafirmado. Essa metamorfose da sociedade brasileira, entendida como “modernização”, foi iniciada por Collor e estruturada por FHC, mas também cultivada de forma zelosa por Lula e Dilma. Foi esse legado que abriu uma avenida para o fundamentalismo religioso e a extrema-direita no país!
O revigoramento do lulismo
Lula e o PT preservaram, mesmo nos momentos de maior ofensiva da extrema-direita, uma base eleitoral importante, cultivada não só por suas políticas públicas, mas também pelos governos estaduais e municipais do PT e do "campo democrático e popular", os partidos que formaram seu bloco de alianças (e rivalidades) mais estreito (PSB, PCdoB e PDT), em especial no Nordeste. Foram integrados ao Estado brasileiro no sentido mais estratégico que isso tem. Beneficiam-se, também, de ter governado o Brasil no último período de crescimento, fruto do boom das commodities, mas que será apresentado como resultado de sua competência - uma narrativa que emergirá como crível para a população face ao desastre nacional do bolsonarismo.
Lula chegou ao governo central há 20 anos e deixou o Palácio do Planalto há 12 anos: as gerações que não viveram o transformismo petista dos anos 1990 e ainda não lutavam na primeira década do século cultivam ilusões de que um novo governo de Lula possa ter um perfil de centro-esquerda, ainda mais porque Lula e o petismo têm evitado se identificar com os desastres dos menos distantes governos Dilma (2011-2016). No mundo das plataformas digitais, a preservação da experiência histórica tem, cada vez mais, que lutar contra o “eterno presente”, a temporalidade dominante que faz do passado um pastiche permanentemente reescrito no ritmo das, “guerras culturais”, memes e fake-news. Os fatos complexos de políticas governamentais “distantes” aparecem, ainda mais depois de dois anos de pandemia, como mais uma versão disputando a adesão de narrativa mais desejável. No Instagram e em lives no YouTube, um Lula de fantasia - que a extrema-direita apresenta como “comunista” e o petismo como “democrata” - teria realmente liderado, vinte anos atrás, um governo de esquerda no Brasil. Para a esquerda mundial nostálgica do século XX, emerge a imagem igualmente fantasiosa dos BRICS substituindo o falido "campo soviético".
O PT segue, além disso, o principal partido do país e construiu um discurso ambíguo, capaz de apresentá-lo simultaneamente como nacionalista e socialista, garantidor dos contratos e do espaço para o capital e defensor dos pobres, capaz de governar de forma a permitir que todos ganhem, trabalhadores e banqueiros – uma narrativa centrada no povo, na nação e no seu lider democrático e redentor, confrontado com as elites, uma mistificação que escamoteia o enfrentamento das grandes contradições históricas acumuladas pela sociedade brasileira.
Dispondo deste cacife eleitoral e apoiando-se nessa narrativa, Lula emerge, para parte importante da população, tendencialmente a maioria, como o instrumento para se livrar do que é um governo de pesadelo, sem paralelo em termos de regressão social, expresso na figura de Bolsonaro. Lula surfará a onda eleitoral não apenas com os setores mais progressistas e politizados, mas também amalgamando uma coalizão com liberais, republicanos e muitos conservadores fisiológicos, interessados em se posicionar ao lado do vitorioso em 2022. A história tem seus imprevistos, mas tudo parece indicar que Lula ganhará a eleição presidencial de outubro e novembro e construirá condições para assumir o governo.
Todavia, caracterizar as alianças que Lula está constituindo como “frente de esquerda”, o programa para desmontar alguns dos maiores absurdos praticados pela extrema-direita como de “esquerda” e o governo que daí emergirá como “popular” é querer transformar desejos em realidade com palavras de ordem. É abrir as portas para o fisiologismo e alimentar os piores apetites da política como gestão do poder estatal. É amesquinhar a política e suprimir o seu horizonte como possibilidade de emancipação.