Enquanto o Governo trata crise hídrica como “fenômeno natural”, fantasma do apagão de 2001 volta a rondar o país e já ameaça o resultado do PIB do terceiro trimestre
Regiane Oliveira e Felipe Betim, El País Brasil, 4 de setembro de 2021
Não são apenas 14,20 reais por cada 100 quilowatt-hora que o brasileiro vai pagar a mais com a bandeira de escassez hídrica criada pelo Governo Bolsonaro para tentar contornar a ameaça de apagão. “O que está sendo precificado na conta de luz é o desmatamento da Amazônia”, explica Pedro Luiz Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Num momento em que a economia ainda ensaia estratégias para se recuperar da pandemia de covid-19, com inflação em alta e renda das famílias em queda, a iminência de uma crise energética acende um alerta sobre o impacto que o descaso com o meio ambiente pode causar à economia do Brasil.
Analistas ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que a crise hídrica era previsível e que o Brasil teria melhores instrumentos para contorná-la, caso tivesse começado a combatê-la no período certo. “Estamos praticamente um ano atrasados. Em agosto de 2020 já sabíamos que a estiagem viria”, lamenta Côrtez.
O Sistema Nacional de Meteorologia (SNM) emitiu em 27 de maio o alerta de emergência hídrica na bacia do rio Paraná, que atende os Estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. Mas só no final de agosto o Governo Federal anunciou uma estratégia para reduzir o consumo, com a criação da bandeira Escassez Hídrica no valor de 14,20 reais a cada 100 quilowatt-hora consumidos, que vale para todos os consumidores a partir deste mês até abril de 2022. Uma exceção é feita aos beneficiários da tarifa social, além de sistemas isolados, como os de Roraima e de outras áreas remotas, que não pagam bandeira tarifária. A nova tarifa representa um aumento de 4,71 reais, quase 50%, em relação à tarifa de bandeira vermelha 2 de 9,49 reais por 100 kWh, até então o maior patamar aplicado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A maior seca em 91 anos é vista como um evento imprevisível pelo Executivo. “Trata-se de um fenômeno natural que também ocorre, com a mesma intensidade, em muitos outros países”, afirmou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, durante pronunciamento em rede nacional nesta semana, em que anunciou o plano de incentivo à participação social para reduzir o consumo de energia no país. A meta é que os órgãos federais reduzam em até em 20% o consumo. No entanto, para os grandes consumidores de energia, como indústrias, hospitais, shoppings, construção civil e metalúrgicas, o plano é incentivar a “redução voluntária do consumo” nas horas de ponta do sistema.
Enquanto o Governo aposta no aumento da conta de luz e no voluntariado para conter a crise, as empresas já começam a calcular os possíveis prejuízos. Levantamento realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com 572 companhias, entre os dias 25 de junho e 2 de julho, mostra que nove em cada dez empresários estão preocupados com o aumento do custo, com a possibilidade de racionamento e a instabilidade no fornecimento de energia elétrica, segundo informações da Agência Brasil.
Fantasma do apagão
O fantasma do apagão somou-se aos recentes conflitos político e a indefinições em relação à reforma tributária para afetar os investimentos no segundo trimestre deste ano, de acordo com relatório do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI). Em um ambiente cercado por insegurança, as empresas recuaram em 3,6% seus investimentos no segundo trimestre frente ao período anterior. Essa é a primeira retração desde o estrago feito pela pandemia no segundo trimestre do ano passado.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Produto Interno Bruto (PIB) ficou estável no segundo trimestre, com recuo de 0,1% da economia ante o período anterior, mas com quedas preocupantes nas indústrias de transformação (-2,2%) e na atividade de eletricidade e gás, água, esgoto, atividades de gestão de resíduos (-0,9%). “A indústria só não recuou mais devido ao ramo extrativo, que registrou alta de 5,6%, estimulado pela melhora do comércio exterior de seus produtos, e também devido à construção, com a reativação dos empreendimentos habitacionais, especialmente nos maiores centros urbanos do país”, informou o IEDI.
Para a economista Juliana Inhasz, do Insper, a conta da crise de energia começará a ser cobrada no PIB no terceiro trimestre. “O aumento das tarifas de energia vai fazer com que os custos de produção aumentem mais ainda. As empresas vão cobrar mais do consumidor, que vai ter que comprar menos, porque a renda não está subindo. Teremos redução do consumo”, analisa a economista. Inhasz afirma que o Brasil vem depositando na vacinação contra a covid-19 toda a esperança de uma virada para a retomada econômica, e se esqueceu de que é preciso “investimento e gestão pública bem feita”. “Vacina é pré-condição para a retomada, mas temos outras variáveis a serem consideradas, como a confiança dos investidores.”
Em julho, a produção industrial nacional já caiu 1,3% frente a junho, segundo dados do IBGE, apesar de ter apresentado uma melhora de 1,2% em relação ao mesmo período do ano passado. “Dos sete meses do ano, cinco ficaram no vermelho”, afirmou o IEDI. Como resultado, “o setor voltou a ficar abaixo do nível de produção do pré-pandemia, perdendo o que havia recuperado na segunda metade do ano passado”, segundo análise do instituto.
O Governo até vem optando por aumentar os juros para dar mais segurança aos investidores. O resultado, porém, não tem sido o esperado. “[O investidor pensa:] tudo bem, esse ano eu seguro as pontas, a inflação foi mais alta, melhora a arrecadação, come um pedaço da dividida...’ Mas esse é um fenômeno que queremos que seja temporário. Não queremos uma inflação permanentemente alta para ajustar conta pública. Queremos conta publica ajustada para impedir a inflação”, explica economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central. No longo prazo, no entanto, o cenário não é de redução de juros, o que encarece os investimentos, inclusive aqueles necessários para contornar a crise energética. “Temos visto as taxas de juros mais longas subindo e, parte disso, é por causa do risco fiscal que se topa ao emprestar dinheiro ao Brasil”, diz.
O economista Nelson Marconi, da Fundação Getulio Vargas (FGV), também atribui a uma “inoperância do Governo” os efeitos que a escassez hídrica terá na economia: “Era uma crise anunciada, que vai influir muito daqui para frente”. Marconi afirma que o problema da matriz energética é antigo, e depende de estímulos do Governo para novas tecnologias, como investimentos em energias alternativas. Ele também critica “a falta de política de combate às queimadas”, essenciais para garantir, inclusive, a sustentabilidade do agronegócio. “A estratégia do Governo de aumentar tarifa e reduzir para quem economizar é paliativa, terá um efeito marginal. Com o risco de um apagão como o de 2001, a recuperação pós-pandemia já arrefeceu e vamos crescer próximo de zero, no mesmo patamar que estávamos antes da crise sanitária”, afirma.
Crise não é a mesma de 2001
A crise de energia atual não é exatamente igual ao que aconteceu há 20 anos, quando, somada à crise hídrica, estava a falta de infraestrutura para transmissão e geração de energia ―o que fez com que o país enfrentasse nove meses de apagão. Pedro Luiz Côrtes, do IEE-USP, explica que dois componentes climáticos distintos estão mexendo com o clima no Brasil: a estiagem provocada pelo fenômeno La Niña, que ocorre quando as águas do Oceano Pacífico esfriam, afetando o clima nas cinco regiões do país; e redução das chuvas causadas pela destruição da Amazônia. “Quando ocorre o desmatamento, a umidade que a floresta passa para a atmosfera diminui. Isso não é um fenômeno natural, é causado pela ação do homem”, explica Cortês.
Segundo ele, o Brasil não precisa só parar de desmatar, “é preciso reflorestar a Amazônia para que voltemos a uma normalidade climática daqui a 20, 30 anos”. Cortês defende que o Governo federal, diferentemente de 2001, tinha melhores instrumentos para lidar com a crise, como “ligar as termelétricas já no segundo trimestre para preservar os reservatórios”. Mas optou por esperar.
Desde o apagão no Governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil vem investindo para diversificar sua matriz energética, mas ainda não chegou a um equilíbrio. Em 2020, o país ultrapassou a marca de 2.000 usinas de geração de energia em funcionamento, segundo dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). As hidrelétricas são maioria (875), seguidas pelas eólicas (615 parques especialmente no Sul e no Nordeste). Além de 114 solares fotovoltaicos e 401 termelétricas, representadas em sua maioria pelas usinas a biomassa (286). De acordo com dados do Operador Nacional do Sistema (ONS), os reservatórios das usinas localizadas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste ainda são responsáveis por mais de 70% da produção. E, em agosto, eles operavam com apenas 22,7% de sua capacidade de armazenamento.