Para Eric Feigl-Ding, epidemiologista e especialista em economia e saúde global, Brasil se tornou um risco em três campos: ameaça epidemiológica, econômica e democrática.
Juliana Sayuri, The Intercept Brasil, 5 de Abril de 2021
#SOSBRAZIL, escreveu o epidemiologista Eric Feigl-Ding em 21 de março, quando o Brasil estava prestes a atingir a marca de 300 mil mortos por covid-19. “Há uma crise em que todos nós precisamos prestar atenção: a do surto sem precedentes da variante P1 no Brasil, com hospitais sobrecarregados e forte pico de mortalidade. Se a P1 sair de controle no mundo todo, todos nós estamos em perigo”, alertou, no Twitter.
Nascido na China e radicado nos Estados Unidos, Feigl-Ding faz parte da Federation of American Scientists, a federação de cientistas norte-americanos, fundada na década de 1940. Graduado pela Universidade Johns Hopkins, especialista em economia na área de saúde e com doutorado em epidemiologia, foi professor da T.H. Chan School of Public Health, a faculdade de saúde pública da Universidade Harvard, entre 2004 e 2020.
No ano passado, Feigl-Ding foi um dos primeiros cientistas a alertar para o risco do novo coronavírus sair do controle e se tornar uma pandemia. Assim aconteceu: em 20 de janeiro de 2020, ele publicou uma série de posts alarmantes sobre o vírus que, até então, se restringia a poucos pontos além da cidade chinesa de Wuhan; em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde, a OMS, declarou a pandemia de covid-19.
Desta vez, o acadêmico está especialmente alarmado com o que está acontecendo no Brasil, que atravessa um dos piores momentos da pandemia no mundo. Ele não está sozinho: “caos”, “bomba relógio” e “ameaça global” foram expressões escolhidas pela imprensa internacional para retratar a crise brasileira e o risco da variante P1, identificada pela primeira vez no Japão a partir de passageiros vindos do Amazonas.
“Não é uma variante brasileira, mas uma variante resultante do fracasso da liderança de Bolsonaro”, diz Feigl-Ding. De Washington, ele conversou com o Intercept por Zoom no dia 25 de março.
Intercept – ‘Se a P1 sair de controle, todos nós estamos em perigo’, você escreveu recentemente. Como a crise no Brasil poderia pôr outros países em perigo neste momento?
Eric Feigl-Ding – Há muitas maneiras, mas gostaria de destacar três, duas óbvias e uma não tão óbvia. A mais óbvia é a epidemiológica. Estudos indicam que a variante brasileira P1 é mais contagiosa, cerca de duas vezes mais transmissível do que as outras versões do vírus. A transmissão seria ainda mais rápida do que a variante britânica B117. O risco de reinfecção também seria maior: pessoas que já foram infectadas com a “antiga” linhagem do vírus poderiam ser infectadas novamente. Portanto, se a variante é mais transmissível e traz potencial de reinfecção, isso poderia desengatilhar uma nova pandemia.
Isso porque o que está acontecendo globalmente é que a antiga linhagem, a do início de 2020, está em queda, enquanto as variantes estão em alta: a B117 é predominante no Reino Unido, na maior parte da Europa e nos Estados Unidos agora; a P1 não é predominante, mas é mais rápida – e o potencial de provocar uma nova onda é real e possível. As vacinas funcionam contra a B117, mas a P1 pode ser ligeiramente mais resistente se comparada às outras cepas. Não estou dizendo que as vacinas não funcionam, mas que podem ser menos eficazes em relação às demais cepas.
A segunda é econômica. O Brasil pode entrar em colapso econômico – e não é um país pequeno. O que está acontecendo é como um crash. E o Brasil está interconectado com o mundo, o que pode afetar muitas outras economias mundo afora.
A não tão óbvia é o precedente aberto por [Jair] Bolsonaro, que minimizou a pandemia, recusou orientações, encorajou alternativas perigosas como hidroxicloroquina e cloroquina – que claramente não funcionam, mas que ainda estão sendo usadas e incentivadas até hoje. Bolsonaro é como [Donald] Trump: minimiza a pandemia, não incentiva o uso de máscara, tenta atrapalhar a atuação de governadores, não incentiva a vacina, ignora a saúde pública.
Em termos de governança, ele está abrindo um precedente perigoso para líderes autoritários ignorarem a saúde, a segurança e o bem-estar de seus cidadãos. O ponto é que ele faz tudo isso e nada acontece, o que leva uma mensagem a líderes de outros países de que eles podem fazer isso também. De que é ok e que eles podem se safar. É por isso que eu digo que o Brasil pode ser uma ameaça: pode provocar uma nova pandemia, pode implicar a economia mundial e pode abrir um precedente perigoso contra a democracia, os direitos humanos e a justiça social.
Dos presidentes que adotaram um discurso negacionista em relação à pandemia, Trump perdeu as eleições nos Estados Unidos; John Magufuli morreu na Tanzânia; e Bolsonaro é acusado de genocídio no Brasil. Na sua opinião, o que pode ser feito agora, para tentar mitigar a crise no Brasil?
Eleições nacionais à parte, governadores poderiam pedir ajuda internacional diretamente. Quanto à comunidade internacional, penso que ela deveriam mandar ajuda mesmo à revelia de Bolsonaro. Um governo deve servir à sociedade, ao povo. Esta é a crise imediata: ajudar os brasileiros.
Haverá um dia em que estudos vão indicar quantas vidas poderiam ter sido salvas se o governo [Bolsonaro] tivesse agido mais rápido no Brasil – recentemente foi publicado um estudo mostrando como o fracasso da administração de Trump na resposta à pandemia custou 400 mil vidas. Vidas foram perdidas por ações atrasadas, informações insuficientes etc. É uma atrocidade.
Mas não adianta esperar por esse dia no caso do Brasil. Quando digo que é necessário chamar atenção para o Brasil, quero dizer que é preciso chamar atenção para os brasileiros. Que o mundo se importa com os brasileiros apesar de Bolsonaro.
Não estou envolvido na política brasileira. Mas sinto que devo me manifestar, pois o que está acontecendo no Brasil é muito grave, o sofrimento é muito alto e se vê que o governo não está fazendo nada. Hospitais estão sem medicamentos para intubar pacientes, há uma crise que precisa ser resolvida agora. Vacinas são necessárias agora, não num futuro distante.
Na imprensa internacional, o Brasil vem sendo retratado como uma ameaça global. Você vê risco de brasileiros se tornarem alvo de discurso de ódio, como aconteceu com asiáticos e seus descendentes, quando a China passou a ser culpada pela pandemia por líderes como Trump e Bolsonaro?
Penso que não. Primeiro, porque a variante predominante atualmente é a britânica, e não sei se há um estigma do tipo “ah, ele/ela é britânico/a”, melhor se afastar. Idem para a variante sul-africana. O que aconteceu com a China foi político, quando líderes, especialmente Trump, tentaram culpar a China. Mas, atualmente, o vírus está em todo lugar, há tantos casos e tantas variantes e não estão sendo ligadas aos países, mas aos governos.
Um vírus não pode ter mutações se não puder circular. Se o vírus está circulando, pode mudar e se tornar mais resistente – tornar-se mais rápido, mais forte, mais invasivo contra o sistema imunológico. E há uma razão para não ter variantes da Nova Zelândia ou da Austrália: esses países adotaram uma abordagem zero covid.
A Nova Zelândia teve 26 mortes por covid – é uma ilha como o Reino Unido, que teve mais de 120 mil mortes. O Vietnã teve 35 mortes – e tem quase 100 milhões de habitantes, quase a metade da população do Brasil. Não é só uma questão de população ou território, trata-se também de uma questão de liderança. Diria então que não é uma variante brasileira, mas uma variante resultante do fracasso da liderança de Bolsonaro.
Israel e Estados Unidos estão vacinando mais rapidamente que muitos países. Na América do Sul, Chile está avançado. Entretanto, a efetividade da imunização não é algo a ser pensado apenas no nível nacional, certo? Como tratar as campanhas como uma questão de saúde global?
Uma pandemia é uma pandemia, porque cruza continentes, envolve diferentes países ao redor do mundo. Sem cooperação internacional, não há saída.
Vacinas são essenciais para dar fim à pandemia, o que deve ser pensado como um esforço coletivo, global. Vacinas deveriam ser mandadas, por exemplo, para o Brasil, mediante doações se necessário. Os maiores com acesso agora são os Estados Unidos e a China, que estão ajudando os países vizinhos. A aliança Covax [o consórcio internacional liderado pela OMS para acelerar compra e distribuição de vacinas contra covid-19] é importante, mas não é suficiente, nem rápida o bastante.
Cada país elege seu líder, que deveria proteger, afinal, seus próprios cidadãos. Neste ponto é que é tão crítica a diferença entre uma visão de longo prazo e uma visão de curto prazo. Sabe o estudo do marshmallow, de Stanford? No experimento, observava-se como crianças se comportavam diante de um doce: uns queriam pegá-lo logo, imediatamente, uma visão de curto prazo; outros preferiram esperar, pois teriam um bônus.
É pensar a curto prazo considerar que basta deixar o mercado aberto e a pandemia acabou, se onde o contágio está crítico as pessoas não estão vacinadas. Ou pensar que se só Estados Unidos, Israel, Reino Unido, Chile e China continuarem vacinando suas populações tudo vai ficar bem, mesmo que o resto do mundo não tenha acesso às vacinas e as variantes continuem se espalhando. Países como Austrália, Nova Zelândia e Vietnã não precisam desesperadamente de vacinas agora, mas países como Brasil precisam. Pensar a longo prazo envolve considerar essas questões, isto é, olhar para a pandemia como uma questão de saúde global.
É como Fukushima, no Japão, após o desastre nuclear. Uma crise localizada, com os reatores nucleares derretendo, o que poderia pôr em risco o mundo inteiro – e teve atenção internacional. O Brasil é como Fukushima, pode pôr em risco o mundo inteiro. E deve ter atenção internacional.
Você é epidemiologista e economista de saúde. Como esses eixos (epidemiologia, economia, justiça e política) se relacionam?
Há quem pense que a ciência está em um tipo de torre da universidade, que cientistas publicam resultados de suas pesquisas e pronto. Na verdade, saúde pública se refere a uma ciência que pode salvar muitas vidas. Saúde pública envolve políticas públicas. Políticas públicas são uma decisão política. Políticas públicas para saúde pública envolvem dinheiro, isto é, quanto dinheiro você investe na ciência e, assim, quanto dinheiro você pode poupar para os orçamentos do governo, que podem ser investidos em outras áreas da economia. Tudo isso está conectado. Tudo isso é política. E a pedra angular de tudo isso é a justiça social.
Você pode ter políticas que beneficiam poucos, mas como isso ajuda o mundo como um todo? Você pode vacinar os super-ricos, mas como isso impede a pandemia? Você pode construir um bunker para ricos e poderosos, mas como isso resolve a mudança climática? Justiça social deve cruzar toda e qualquer questão.
A Olimpíada está marcada para julho, no Japão. Apostaria na realização?
É factível, mas precisa contar com uma combinação de quarentenas, testagens e vacinas para os envolvidos. Estou esperançoso.
Você é otimista? Diria que o fim da pandemia está num futuro próximo?
Sou otimista. Muitos dizem que sou pessimista, mas o motivo pelo qual eu me manifesto é porque quero agir. Por acreditar que, se nós agirmos, nós podemos dar fim à pandemia. Sou otimista em relação à habilidade que as pessoas têm para se mobilizar e agir, influenciar políticas, compartilhar informações que podem salvar vidas. Não acredito que estamos condenados a nada; acredito que nós podemos mudar. Meu alarmismo nasce do meu otimismo de acreditar que podemos mudar o curso da história.