Manuel Pascual, El País Brasil, 15 de maio de 2021
O WhatsApp, principal serviço de mensagens do mundo, está encontrando fortes resistências para implementar a atualização dos termos e condições de uso de seu aplicativo, que entra em vigor neste sábado e na qual está especificado que compartilhará dados de seus usuários com o Facebook, sua empresa-mãe. Vários países, incluindo Índia e Brasil, os dois maiores mercados de WhatsApp, decidiram congelar a sua entrada em vigor por causa das dúvidas que a referida transferência de dados suscitam sobre a privacidade e a posição de domínio da empresa. Ao mesmo tempo, um grupo de ativistas lançou uma campanha para deter a operação, que consideram ter como objetivo a criação de uma espécie de superaplicativo que concentre toda a atividade digital das pessoas, como é o caso do WeChat na China.
A revisão das condições estava programada para ser lançada em fevereiro, mas a onda de críticas que provocou e o êxodo de milhões de usuários para sistemas de mensageria rivais, como Telegram e o Signal, fizeram com que a empresa adiasse a medida para explicar melhor as mudanças. Aqueles que não aceitarem os termos de uso não terão suas contas excluídas, mas receberão mensagens cada vez mais persistentes pedindo-lhes que concordem e terão reduzidas progressivamente as funções do serviço até que, na prática, seja desativado. Na União Europeia, os usuários também terão que aceitar as novas condições, embora estas tenham um efeito muito mais limitado do que no restante do mundo porque o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) não permite o compartilhamento de dados com o Facebook.
Os órgãos públicos brasileiros que zelam pela concorrência e defesa dos usuários solicitaram na semana passada o adiamento do lançamento da atualização no país até que seja esclarecido que tipo de dados serão transferidos de um aplicativo para outro e com que finalidade. Outros países tomaram medidas semelhantes: a Turquia decidiu em janeiro suspender a aplicação do novo contrato enquanto o órgão regulador estuda se oferece garantias de privacidade suficientes para os cidadãos. Em março, a Comissão de Concorrência da Índia julgou que o compartilhamento de dados entre o WhatsApp e o Facebook é um “abuso de posição dominante”, congelou a mudança de condições e iniciou uma investigação que ainda está em andamento.
A esses três países poderão se juntar outros nos próximos dias, como África do Sul, Chile e Argentina, que iniciou uma investigação de caráter oficial. No Chile, onde 90% da população usa o WhatsApp diariamente, representantes da associação Direitos Digitais, partidária do adiamento da entrada em vigor das novas condições, se reuniram nesta quinta-feira com o Ministério Público Nacional Econômico. “A conversa que tivemos foi muito boa. Não estabeleceram compromissos específicos, mas querem continuar estudando o caso. Temos grandes esperanças de que haja avanços”, disse ao EL PAÍS a diretora executiva da associação Direitos Digitais, María Paz Canales. Em sua opinião, o fato de as autoridades chilenas da concorrência terem colaborado muito com as brasileiras pode contribuir para que o país andino decida tomar decisões semelhantes.
Um dos elementos que mais preocupam na América Latina no que diz respeito ao possível abuso da posição dominante do WhatsApp são os chamados planos de zero-rating: as recargas de dados móveis em que o uso do WhatsApp não consome dados. Segundo Canales, as quatro principais operadoras chilenas têm planos desse tipo, muito comuns em toda a região. Essas ofertas permitem que os menos abastados se comuniquem por mensagens instantâneas e, ao mesmo tempo, permaneçam vinculados à empresa do Facebook. Rejeitar os novos termos e condições significaria que eles ficariam incomunicáveis.
A gênese de um “superapp’
Os que estão se rebelando não são quaisquer países: a Índia tem cerca de 400 milhões de usuários, e o Brasil, outros 120. Juntos, respondem por mais de um quarto dos 2 bilhões de telefones celulares que têm o aplicativo ativo. Além disso, nos dois territórios já opera uma de suas grandes apostas para o futuro: seu sistema de pagamento, o WhatsApp Pay, por meio do qual se pode enviar ou receber dinheiro sem sair do aplicativo. Na Índia, está operacional desde o ano passado; no Brasil, após ter sido proibido inicialmente pelas autoridades que monitoram a concorrência, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), e pelo Banco Central (Bacen), está em funcionamento desde o início do mês.
O serviço de pagamentos do WhatsApp e a mudança nas condições que lhe permite a troca de dados com o Facebook podem estar relacionados. Essa é a avaliação de Juliana Oms, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações que pediram a intervenção das autoridades. “A nova política de privacidade se refere explicitamente aos dados coletados pelo serviço de pagamentos do WhatsApp, que serão compartilhados com o Facebook”, afirma a advogada.
O temor desses defensores da privacidade e dos direitos do consumidor é que com o WhatsApp aconteça o mesmo que se passou com o aplicativo WeChat, a rede social mais popular da China (1 bilhão de usuários). No país asiático, dinheiro em espécie e cartões de crédito agora são totalmente dispensáveis nas grandes cidades. De barracas de rua a shoppings, todos pagam com seu celular usando o WeChat, que também é uma plataforma de pagamento e que hospeda quase todos os serviços imagináveis, desde aluguel de bicicletas até compras online.
“Acreditamos que a atualização dos termos de uso do WhatsApp tem a ver com seus planos futuros. O Facebook quer que seus produtos se tornem a sua internet; que você compre, pague, telefone, navegue e faça tudo sem sair do app”, diz a advogada e ativista dos direitos digitais Renata Ávila, que fez parte da equipe de defesa da liderança indígena Rigoberta Menchú na terra natal dela, a Guatemala, e trabalhou com o espanhol Baltasar Garzón na defesa de Julian Assange.
“Nas praias da China não se consegue pagar em dinheiro, em alguns lugares desse país tudo passa pelo WeChat. Esse é o próximo passo que o Facebook quer dar na Índia e no Brasil.” Para que um superapp no estilo WeChat tome forma, continua a advogada, é necessário o consentimento expresso para a triangulação de dados pelos usuários.
Existem outras maneiras para que o compartilhamento de dados entre o Facebook e o WhatsApp seja lucrativo. Uma das apostas da empresa é o WhatsApp Business, um serviço dirigido a empresas que “ajuda a se conectarem pessoalmente aos seus clientes, a destacar os seus produtos e serviços e a responder às suas dúvidas por meio de sua experiência de compra”. Para que esta ferramenta funcione bem, os dados do usuário coletados nos últimos anos por ambos os aplicativos serão essenciais.
Essas suspeitas sobre as verdadeiras intenções por trás dessa operação deram impulso à campanha internacional Stop Facebook, Save WhatsApp, coordenada por Ávila e que exige que o grupo dirigido por Mark Zuckerberg reconsidere a adoção dos novos termos e condições. Seus organizadores pedem às autoridades de concorrência dos diferentes países que exijam que a atualização do WhatsApp seja opcional ou que sejam instaurados casos de abuso de concorrência contra isso. Desde que a campanha foi lançada no final de abril, diz a advogada, os executivos do Facebook têm se encontrado um a um com as organizações de cada país integradas na plataforma. Fontes da empresa confirmaram esses contatos ao EL PAÍS. “Eles sabem que se mais algumas autoridades da área da concorrência, além da Turquia, Índia e Brasil, agirem, isso pode gerar um efeito em cascata que não lhes convém”, acrescenta Ávila.
Reação internacional
Os Estados Unidos são um dos poucos países onde o WhatsApp não domina as comunicações por mensagens. Lá os serviços mais usados são o Facebook Messenger e o iMessage. Apesar disso, um grupo de congressistas enviou esta semana uma carta aberta a Mark Zuckerberg pedindo-lhe que reconsiderasse a adoção da atualização do aplicativo, que é amplamente utilizado por imigrantes. Também estão sendo tomadas medidas na Europa, embora a atualização tenha pouco efeito na UE. O órgão regulador alemão emitiu uma “proibição de emergência” de três meses em que a empresa não terá permissão para “continuar com a coleta de dados” e pediu aos outros Estados membros da UE que façam o mesmo, de acordo com a AFP.
O WhatsApp destaca que os novos termos e condições do serviço não incluem o compartilhamento dos dados dos contatos com o Facebook nem sobre as pessoas com quem se fala. “Claro que o Facebook não pode ver as nossas conversas, mas consegue ver os nossos metadados, que, afinal, são os mais interessantes: por quanto tempo me conectei, de onde, que itinerário fiz ou que tipo de dados são partilhados”, ilustra Ávila .
“Passamos os últimos meses fornecendo mais informações aos nossos usuários sobre a atualização. Nesse período, a maioria dos que receberam o aviso de atualização a aceitou “, afirma um porta-voz do WhatsApp. Segundo estudo da consultoria Appinio, 82% dos espanhóis aceitarão a atualização, apesar de 77% dos entrevistados se sentirem preocupados com a forma como o serviço de mensagens instantâneas utiliza seus dados.
A EVOLUÇÃO DAS CONDIÇÕES DE USO
“O WhatsApp não coleta nomes, e-mails, endereços nem qualquer outra informação de contato [da agenda, anuário digital] ou da lista de contatos de seus usuários. Somente coleta os números de telefone celular (…) Não coletamos dados de localização (…) Não vendemos nem compartilhamos seus dados pessoais (como número de telefone celular) com outras empresas para uso comercial ou comercialização (marketing) sem o seu consentimento.” Esses eram os termos da política de privacidade do WhatsApp em 2012.
O Facebook comprou o WhatsApp em 2014 por cerca de 13,8 bilhões de euros (88,3 bilhões de reais). Naquela época, era uma próspera 'startup' que fazia sucesso na Europa e tinha cerca de 400 milhões de usuários. Zuckerberg então garantiu que não tocaria na política de privacidade do serviço de mensagens instantâneas. No entanto, isso aconteceu apenas dois anos depois, em 2016, quando já contava com 1 bilhão de usuários. A empresa disse na época que a coordenação com o Facebook serviria para divulgar anúncios mais relevantes. Deu aos usuários 30 dias para aceitar as novas condições.
“Acho que nos últimos anos ficou claro para todos que o Facebook é uma empresa que vive dos dados das pessoas”, diz Carissa Véliz, especialista em privacidade digital. “E isso começa a não agradar. É preciso mostrar ao Facebook que seu modelo de negócio está trazendo mais problemas do que benefícios.”