Paulo Capel Narvai, a terra é redonda, 1 de novembro de 2019
Outubro de 2019 não foi, assim, nenhum outubro de 1917, mas desta vez não foram terremotos que fizeram a terra tremer no Equador e no Chile. A insatisfação com o neoliberalismo, sobretudo em sua versão ultra, levou às ruas milhares de manifestantes. No Chile, especialmente, foram recorrentes cartazes, faixas e discursos motivados pelo abandono de doentes e as importantes restrições no acesso aos serviços ofertados pelo sistema de saúde.
No Brasil, não faltaram os que apontaram para o SUS, o “nosso SUS”, inclusive liberais de carteirinha, argumentando que o Sistema Único de Saúde seria uma espécie de antídoto contra os males que assolam chilenos e equatorianos. Aqui, disseram, “os pobres contam com o SUS e a escola pública. Tudo muito ruim, mas os pobres sabem que podem contar com esse suporte. Aqui, eles têm o que perder. Lá, não.”
São argumentos bem problemáticos para “explicar” o outubro chileno. Mas parece-me significativo que as manifestações tenham registrado o impacto do ultraliberalismo, das políticas de “austeridade” se o leitor preferir, sobre a saúde da população, a democracia e os padrões de convivência impostos pela ideologia do empreendedorismo, em tempos de “uberização” da vida e de proliferação de aplicativos.
Neste contexto, cabe assinalar que o SUS nem é “muito ruim”, nem serve de antídoto para coisa alguma, embora esteja muito longe de ter se transformado no “projeto civilizatório” sonhado por Sérgio Arouca, um dos seus idealizadores. O cenário do “nosso SUS” não é de terra plana, nem redonda, mas de terra arrasada, a expressão mais adequada para caracterizar sua situação sob o governo de Bolsonaro.
Desde a destituição de Dilma Rousseff (2016) venho colecionando qualificativos que ouço de conselheiros de saúde, de lideranças de movimentos sociais, estudantes, gestores e profissionais de saúde dos mais variados níveis. Desfinanciado é, de longe, o mais citado. Mas tenho ouvido também que o SUS está desvalorizado, sucateado, precarizado, ideologizado, fragmentado e ocultado, dentre outros qualificativos. Muitos também o consideram ineficiente.
É preciso reconhecer de antemão que o SUS de 2019 é o avesso do almejado por seus formuladores do Movimento da Reforma Sanitária que, ainda nos anos de combate à ditadura civil-militar, delinearam e propuseram a criação do nosso sistema universal, o que ocorreria na Assembleia Nacional Constituinte, em 17 de maio de 1988.
Mas o SUS começou a ser inviabilizado antes mesmo da histórica sessão de 5 de outubro de 1988, quando Ulysses Guimarães anunciou ao país a promulgação da Carta Cidadã. Cauteloso ao anunciar a nova Constituição da República, o “doutor Ulysses” avisou: “Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”.
Os dispositivos constitucionais do SUS foram regulamentados dois anos após, em 1990, com as leis 8080/90 e 8142/90. Desde então, um conjunto de normas infralegais foi dando ao sistema as configurações atuais. Uma das principais inovações, pioneira em escala mundial, é a participação social, que na Constituição de 1988 foi consagrada como “participação da comunidade”. A lei 8142 oficializa as conferências de saúde, realizadas periodicamente, e os conselhos de saúde, em níveis municipal, estadual e nacional, com atuação permanente, como os meios pelos quais essa participação deve ocorrer, institucionalmente.
Mas o modo de fazer a gestão do direito social à saúde, em um país continental e federativo como o Brasil, exigiu a criação de instâncias administrativas com essa competência, criando-se comissões intergestores, reunindo representantes da União, estados e municípios. Forjou-se um modelo de administração pública bem-sucedido, a ponto de servir de referência para outros sistemas federativos como os de Assistência Social, o SUAS (Lei nº 12.435, de 6/7/2011), e o de Segurança Pública, o SUSP (Lei nº 13.675, de 11/6/2018). A experiência brasileira tem atraído ao país muitos estrangeiros interessados em conhecer nossa situação institucional.
Internamente, porém, a imagem pública do SUS não é boa, predominando nos noticiários, em todo o país, informações negativas. São, por vezes, notícias que partem de fatos, mas que são, na maioria dos casos, deformados pelo viés ideológico da mídia comprometida com operadoras de planos de saúde, interessadas na reprodução dessa imagem negativa, útil à venda de seus produtos. Raramente os casos relatados em notícias rápidas, superficiais, são aprofundados em reportagens cujas análises poderiam chegar à suas causas, desvendando a “terra arrasada” do SUS.
Desfinanciado
Uma dessas causas é o subfinanciamento crônico que, com a Emenda Constitucional 95/2016, a do “teto de gastos”, impôs ao SUS o congelamento por 20 anos dos recursos públicos que deveriam ser utilizados para manter a rede de serviços, desde a UTI às vacinas, passando pela urgência-emergência e as ações de vigilância em saúde. A EC-95/2016 marca a passagem do subfinanciamento crônico para o desfinanciamento do SUS. O que era insuficiente se transforma em verdadeira terra arrasada, pois não é possível tratar doentes e prevenir doenças e epidemias contando com apenas 3,7% do PIB, quando a maioria dos países investe, como gasto público, pelo menos o dobro. Quer dizer, possível, é; mas em cenário de terra arrasada.
Desvalorizado
Outro motivo frequente de “notícias ruins” sobre o SUS são as filas, o longo tempo de espera por consultas, cirurgias e exames. Mas desde 2016 também a falta de medicamentos e vacinas são recorrentes e estão se transformando, perigosamente, em rotina. Fala-se em má gestão pública, o que em muitos casos é correto, mas há muitas situações em que há padrões de gestão de excelência que, per se, não bastam para resolver a insuficiência de recursos, apenas atenuando-a. Sem ter seus problemas resolvidos, sobretudo os que requerem atenção imediata, a população tende a desvalorizar o SUS e seus profissionais. Hostilidades são corriqueiras.
Sucateado
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Lei Complementar nº 101, de 4/5/2000) fixa limites ao gasto público com pessoal (até 54% da receita líquida, nos municípios). Muitos veem a LRF como algo positivo justamente por isso, por “colocar freios” em governadores e prefeitos “gastões” e irresponsáveis com as finanças públicas.
Mas há uma dificuldade com relação aos serviços de saúde, que dependem intensivamente de profissionais de vários níveis e setores de atuação, cujos salários e encargos representam em geral mais de 70% dos custos de funcionamento dos estabelecimentos. Por isso, a conta não fecha e os prefeitos, para “se livrar” da saúde, terceirizam tudo o que podem. É o caminho para o sucateamento dos serviços da administração direta e de precarização trabalhista por terceirizados.
Precarizado
A tendência de terceirizar serviços do SUS é arrebatadora. Em cidades como São Paulo os serviços de saúde da administração direta já são minoritários e caminham para serem residuais. Organizações ditas “sociais” e de “saúde”, as OSS, são empresas de propriedade de particulares que vêm assumindo, crescente e avassaladoramente, a gestão de serviços do SUS e, em muitos casos, do sistema municipal.
Os mecanismos de controle público são frágeis e muito vulneráveis ao clientelismo. Cresce também o número de reclamações na Justiça por calotes trabalhistas aplicados por OSS e as denúncias de trabalho precário, aviltamento salarial e péssimas condições laborais. Três décadas após sua criação, os profissionais do SUS seguem sem contar com uma carreira de Estado, a Carreira-SUS.
Ideologizado
Em tempos de predomínio da ideologia de que “tudo que é estatal não funciona e deve ser privatizado”, o SUS é atingido fortemente, pois até mesmo em municípios cujas experiências bem-sucedidas são reconhecidas e premiadas, nacional e internacionalmente, as pressões para “privatizar tudo” são diárias. Têm origem, basicamente, nos legislativos municipais, mas também no Judiciário, pois predomina nos poderes da República a ideologia da “excelência do privado”. Jogado na vala comum dos “serviços públicos que não funcionam”, por um Estado refém de rentistas e incapaz de reconhecer e valorizar suas ações de interesse público, o SUS padece.
Fragmentado
Embora a Constituição de 1988 afirme que o SUS terá “comando único” em cada ente federativo, as privatizações e terceirizações vêm, na prática, quebrando esse preceito constitucional nos municípios. Em muitos, o território está fragmentado: a capital paulista, por exemplo, está subdividida em algumas dezenas de territórios, comandados por diferentes OSS que operam o SUS municipal, por meio de contratos de gestão. O Conselho Municipal de Saúde, incumbido legalmente de aprovar planos e programas de saúde é, na prática, ignorado.
Ocultado
O SUS é ocultado deliberadamente pelos meios de comunicação. Funciona mais ou menos assim: tudo que dá errado, ou não funciona, ou é um problema, é atribuído ao SUS. Mas o SUS, por suas marcas e símbolos, desaparece para a população, pois tudo o que lhe deveria dar visibilidade, do vestuário dos profissionais às ambulâncias, incluindo fachadas e demais espaços de visibilidade pública, simplesmente some da vista e da percepção das pessoas.
Em peças publicitárias institucionais, no rádio e na TV, os “agentes de saúde” não são “do SUS”, mas “da Prefeitura”; os edifícios de ambulatórios e hospitais públicos, não são “do SUS”, mas “do governo do Estado”; serviços de excelência mantidos com recursos públicos, não são “do SUS”, mas deste ou daquele grupo étnico-religioso etc. Ocultado de si mesmo, o SUS não é reconhecido nem pelos trabalhadores que lhe dão vida. Não há por que ter “orgulho de ser SUS”, se a imagem do nosso sistema universal de saúde é achincalhada diariamente por autoridades públicas que deveriam promovê-la.
Mas esta é apenas uma parte do ocultamente do SUS. A outra parte decorre do fato de que o trabalho em saúde pública requer a concomitância tanto de ações assistenciais a doentes, quanto preventivas dirigidas ao conjunto da população. A ironia relativa à prevenção de doenças é que, quanto mais eficazes em evitar enfermidades, menor a visibilidade das ações bem-sucedidas.
Há, assim, um “SUS invisível”, cujas atividades não são percebidas pelas pessoas uma vez que, por sua natureza, seu êxito produz um não-fato, uma não-notícia, segundo a perspectiva jornalística. Assim, quando o SUS é mais eficaz, quando funciona melhor, é justamente quando ele não é percebido pela população. Esta é uma das razões por que segue sendo tão difícil valorizá-lo e defendê-lo em tempos de fundamentalismoterraplanista e de arautos da objetividade das planilhas e dos “indicadores”.
Ineficiente
Não obstante o cenário de terra arrasada imposto ao SUS, sobretudo e notavelmente após a destituição de Dilma, o sistema resiste, graças aos movimentos sociais que lutam em sua defesa e a gestores locais e servidores públicos que não desistem e que buscam tempos melhores. Creem no verso da canção O que foi feito devera (de Vera) (Milton Nascimento & Fernando Brant) que assegura que “outros outubros virão, outras manhãs”, anunciando alguma esperança (https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=BLAEK2xRoWA).
Deve-se a esses segmentos o fato de que, apesar de todas as agressões diárias, a produção anual do SUS é de aproximadamente 1,9 bilhão de ações e procedimentos na atenção básica (vacinas, curativos, consultas e atendimentos ambulatoriais variados) e o país vem mantendo, apesar dos problemas apontados, níveis de cobertura vacinal superiores em alguns casos aos registrados nos Estados Unidos e países da União Europeia.
Na atenção secundária e terciária, também denominada de média a alta complexidade, o SUS registra mais de 13 milhões de internações e aproximadamente 200 milhões de exames por ano, realiza mais de 2,5 milhões de partos, 3,5 milhões de cirurgias e mais de 260 milhões de procedimentos odontológicos.
Disponibiliza mais de 700 milhões de unidades de medicamentos e três quartos dos atendimentos de urgência e emergência são feitos por unidades do SUS. O sistema é também responsável por 96% dos transplantes de órgãos (no Brasil são realizados um transplante de pulmão a cada três dias e um de pâncreas a cada dez dias e, diariamente, em média, 16 transplantes de rim, 6 de fígado e 1 de coração).
É por “fazer tudo isto” que o “nosso SUS” acabou entrando no noticiário e nas análises sobre o outubro chileno, elogiado até por liberais notórios. Ainda assim, os ministros Guedes (da Economia) e Mandetta (da Saúde) querem acabar com o piso (o piso!) de gastos com saúde. Consideram que se gasta muito e reproduzem Bolsonaro, para quem seria “possível fazer muito mais com os atuais recursos” da saúde.
Vale registrar, a propósito, que em 2017 foram de R$ 265 bilhões os gastos públicos consolidados em saúde, incluindo todos os entes federativos. Economistas da saúde estimam que esse gasto corresponde a aproximadamente R$ 3,60 por pessoa/dia, sendo que a participação do gasto federal foi de 43,1%. Há consenso de que, ao contrário do que se diz, com esse nível de desempenho o SUS é provavelmente o sistema de saúde mais eficiente do mundo.
À custa, decerto, de baixos salários, instalações e equipamentos precários, falta de instrumentos, materiais e medicamentos e tantos outros problemas bem conhecidos. Ulysses Guimarães talvez nos dissesse que o SUS é “luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”, pois o cenário é de terra arrasada. Mas em terra arrasada também há vida, apesar de tudo. E onde há vida, há esperança. Sim, “outros outubros virão, outras manhãs”.
*Paulo Capel Narvai é professor titular de Saúde Pública na USP